O filho botou o pé na soleira da porta e olhou de rabo de olhos para checar minha atenção. Dei uma franzida na testa que deveria ter soado como apito de advertência para o trânsito. O pequeno, com o meu mesmo cenho, cabeça baixa como despercebido, avançou o pé para fora da soleira. A transgressão era grave. O sinal de ultrapassagem proibida estava enroscado na cabeça como se estive no umbral. Ah! Não houve titubeio nem contar a até três: lá foi a palmada no acolchoado sem rabicho. Anos depois, o menino amadurecido acompanhava a irmã na volta da escola, quando, ao atravessarem a rua, apareceu um carro dirigido por um desses “sem palmadas”. Do alto da escada, gritei: Para! O “com palmadas” deteve a irmã a centímetros do infortúnio. Palmas para a palmada!
Hoje, dei de cara com a notícia: deputados da nova legislatura declaram suas posições sobre punição de pais que adotam castigos físicos a criança e adolescentes (http://www.hojenoticias.com.br/tecnologia/punir-pais-que-batem-nos-filhos-140-deputados-a-favor-207-contra/ 29/01/11). Palmas para os 207 contrários e palmadas nos pais dos 107 favoráveis. É, não é fácil não. A conhecida como “lei da palmada”, do ECA, alterado no art. 18, é matéria para ser discutida na esfera de autoridade da família e não decidida por uma sociedade anônima. Família tem nome, sobrenome e domicílio conhecido. Não tem essa de filho da nação nem mãe do estado. Isso é conversa de “sem palmada”. No entanto, essa é minha opinião, não minha argumentação. Essa última, a visão objetiva, tem perguntas para as quais só há uma resposta. Primeiro, as perguntas:
a) O Estado decide quais sejam os direitos do indivíduo identificável em nome de uma sociedade de quem só se ouve gritos na turba: “Meus direitos, deveres dos outros”? (Você já pensou que seríamos bons vizinhos, se nós pensássemos mais em termos de “meus deveres e direitos dos outros”?)
b) O Estado assume a responsabilidade de educar os filhos, ditando aos pais o mérito e o método da educação, enquanto furta aos pais a autoridade pátria e os meios para a disciplina? (O que é pretendido – que filho seja bom cidadão sem noção da autoridade necessariamente gerada no relacionamento familiar?).
c) Quem pregava a revolução armada, agora, vai dizer que toda dor é má? (Não, não sou sádico nem masoquista; a questão é que, se parar de sentir dor, eu viverei uma experiência como de hanseníase, incapaz de prevenir danos físicos; e, ainda, insensível à dor dos outros. Dores são amigas quando controladas por um espírito gracioso, honesto.)
d) O Estado não ensina aos pais, mas poderá puni-los se não lerem a cartilha dos desarmamentos e da submissão à ditadura da “lei do ventre livre com efeitos retardados”? (Lembre-se de que a Lei Áurea foi desdobramento político da Lei do Ventre Livre, que jamais produziu liberdade; a verdadeira liberdade requer remissão mediante preço e restauração efetiva.)
A resposta, como eu disse, é uma só: recompensa e punição somente serão instrumentos efetivos se forem realmente afetivos.
A realidade de tal disposição afetiva é coisa do coração e não poderá ser apreendida sob influência do ambiente, quer material quer social. Indivíduos são as pinceladas corretas que compõem a beleza do quadro. Por isso, quando Deus diz por meio do autor de Hebreus (ver Bíblia), que uma nuvem de testemunhas nos rodeia, não fala de um conjunto nebuloso e amorfo, mas de pessoas e de relações interpessoais (v. 12.1; ver cap. 11). Especialmente, a Bíblia diz que, estimulados pelo exemplo de fé e disciplina dessa sociedade, o indivíduo deveria se desembaraçar de todo peso e pecado, a fim de correr com perseverança a boa carreira proposta. Contudo, que carreira?
Como a coisa é pessoal, Hebreus diz, ainda, que a boa carreira é aquela em que olhamos para nosso Criador, o Verbo Jesus (12.2). Ele ditou que, neste mundo de servidão (a homens, ao dinheiro, ao poder, ao prazer, ao egoísmo etc.), a remissão só ocorre com base em sua obra de encarnação, vida de obediência, morte, ressurreição e ascensão. E disse mais, que seria necessário que sofresse a dor do aguilhão do pecado em nosso lugar a fim de que, para nós, conquistasse a vitória e garantisse a perseverança (12.3). Vitória sobre o quê? Permanência em quê?
Certamente, vitória sobre tudo que é mau e perseverança em tudo que é bom. Mal é todo comportamento que não procede dos bons propósitos de Deus para nossa vida e bem é todo ato de culto racional traduzido em obediência à bondade de Deus (ver Romanos 12.1-3). Assim, Hebreus diz que ainda não temos dado o sangue para viver por aquele que deu seu sangue por nós, da maneira como vivido para os compromissos com homens e coisas (12.3-4). Assim, vamos desmaiando em nossas almas diante de crimes e abusos, social e economicamente descriminados, em uma carreira de direitos que não podem ser cobrados e deveres a que não nos dispomos. “É para a disciplina que" perseveramos (12.7), a fim de sermos como aquele que nos criou para sermos à sua imagem (12.10b).
Por isso, Hebreu continua, dizendo que não podemos nos esquecer que Deus nos trata como filhos, e que, quando somos reprováveis, ele nos corrige, pois, de outra forma não haveria afeição genuína (12.6). Quem não é corrigido não é filho, é bastardo (12.8). Finalmente, o Espírito Santo diz que, por que dói, a disciplina não parece ser motivo de alegria, mas que seu fruto é de justiça e de paz (12.12) – como manga madura chupada no pé, da árvore que meu pai plantou.
Uma pergunta dentro da resposta é: “Mas tem de doer?”. Não; nem sempre. Há o que cai da bicicleta e precisará de encorajamento e disciplina para montar de novo a magrela; há o que rouba bicicleta e uma repreensão poderá ser disciplina bastante. Mas, até que amadureçamos, quer aos seis quer aos sessenta, nossa falta de capacidade de abstração para o mal será tão grande que não aprenderemos suas consequências a não ser por meio de uma dor. Se o piloto de velocípede começar a roubar bicicleta, precisará de disciplina mais severa, senão, o tombo será pior. Nesse caso, a dor de uma palmada quase sempre reflete na consciência e cria grandes ciclistas.
O Sábio de Provérbios diz que os pais deveriam “criar um gosto” pelo caminho em que os filhos deveriam andar e, assim, eles perseverariam nele (22.6). Na mesma linha, Paulo diz que os pais não deveriam criar um senso de injustiça no coração dos filhos; e, da mesma forma, os filhos deveriam honrar aos pais e obedecê-los (Efésios 6.4). O problema é que, pretendendo criar filhos em um ambiente de irrestrito conforto e ausência de dor, criamos neles um gosto pela reivindicação de direitos sem nenhum compromisso com a verdade – que dizer com a própria lei! A disciplina paterna não somente retira a estultícia, mas concede saberia, e quem não a recebe vem a se envergonhar dos pais. (ver Provérbios 13.14; 29.15.)
É claro que ninguém deve dizer, com falsa piedade: “Meu filho, uso palmadas porque o amo”. Nós disciplinamos por que amamos. A palmada é um instrumento que repreende e ensina o resultado da transgressão, como símbolo da dor maior a ser evitada. Em Provérbios 23.13,14 diz ainda que a disciplina dentro dos limites da afeição, sem abuso, não só não mata quanto dá vida.
Daí, dá para ver por que é que creio que não é missão do Estado dar palmadas nos pais que bem procedem e que é missão dos pais aplicar palmas e palmadas aos filhos, segundo a necessidade e regras do bem querer. É missão do Estado, sim, dar palmas e palmadas aos pais que obedecem ou transgridem a lei, abusando ou não exercendo corretamente o poder pátrio. Mas, veja bem: palmada afetiva não configura abuso. O Estado, sim, comete abuso quando vai contra a lei de Deus. Palmas à palmada e palmada no de quem a retém.
Wadislau Martins Gomes
Nenhum comentário:
Postar um comentário