quinta-feira, outubro 11, 2018

DON'T WORRY: BE HAPPY



Nos anos oitentas, uma música de Bobby McFarren, de letra simples e quase sem melodia, apenas um contagiante ritmo caribenho repetitivo de fundo melodioso, teve sucesso no mundo inteiro, e até hoje mexe com gente que está preocupada com a vida, gente que não sabe que rumo tomar – gente comum que enfrenta problemas normais da vida, gente que faz apologia a drogas, sexo livre e qualquer espécie de afirmação do status quo, pessoas colhendo das inconsequências na família, no trabalho, gastos financeiros, nos relacionamentos, nas decisões e falta de decisão em tudo que faz e deixa de fazer – “Don’t worry: be happy” (não se preocupe: seja feliz). Trinta anos depois, ainda soa agradável o mantra que, na verdade, era cantado com outra letra pelos flower children dos anos sessentas, os amantes dos sucessos do cinema dos anos cinquentas e, bota velharia nisso, românticos de todos os tempos.
Eu estava assistindo a uma série canadense sobre uma família de rancheiros criadores e domadores de cavalos, com cenas incrivelmente belas da natureza em volta das montanhas rochosas, nas escarpas, planícies, rios e lagos, e até as praias do Pacífico. A série é apresentada como repleta de bons valores de família, em que os contrastes nas escolhas entre casamento e carreira, cuidar da natureza e dos animais versus poluir e devastar o ambiente, fidelidade em meio a dificuldades e separação e divórcio, novos e seguidos namoros, trabalho árduo produtivo versus indolência e mentiras na vida desde crianças, passando por conflitos e sofrimentos de adolescentes, jovens, adultos maduros imaturos, até relacionamentos de idosos com todos dos outros estágios da vida – tudo faz a série envolvente em que peões trabalham e ganham a vida com dignidade e ricaços ora esbanjam ora vivem a simplicidade na família e suas tramas complicadas. Confesso que eu, boba por uma boa história, fiquei fascinada, e tive dificuldade em ver apenas um ou dois capítulos de cada vez. Mas as fantasias verossímeis o são “true to life” (aí vai mais uma dificuldade para o tradutor), porque embora verdadeiras como a vida, não são verdade para a vida.
Lembrei de uma conversa com amiga prestes a se divorciar, que chorava, dizendo “Ele não me faz mais feliz. Deus não quer a nossa felicidade? ... Tenho de me livrar desse peso ...” A solução seria levantar a cabeça e dar volta por cima, divertir-se até esquecer, afirmar-se para não afundar na lama...
Através dos anos ouvi inúmeros sermões que concluíam: “Aceite a Cristo e você será feliz – todos os seus problemas serão resolvidos”. Mesmo quem não era adepto da teologia da prosperidade dava ideia de que ser cristão verdadeiro implica vida vitoriosa, felicidade perene, alegria inconsequente em tudo que faz ou deixa de fazer. Para o crente brasileiro, essa era uma feliz resposta contra a lúgubre religião masoquista do catolicismo medieval que, por sua vez, se apresentava contra o hedonismo desenfreado do país do carnaval.
A gente não aceita a idolatria de procissões e penitências de um catolicismo sombrio nem a folia doida dos que bebem até cair e vivem num mundo de fantasia – então a gente faz de conta que tudo vai às mil maravilhas; crente tem a salvação da alma, cura do corpo, e uma vida maravilhosa, sem o mínimo problema – se você duvida disso, estoura a bolhinha de sabão e você perde até a salvação...
Hoje tem muitos na igreja que continuam com esse discurso, sem falar nos inúmeros desigrejados que rejeitaram a hipocrisia, mas não encontraram vida verdadeira em Jesus.
Um dos hinos mais tocantes que cantamos é “Sou feliz com Jesus”. Muitas vezes cantamos sem saber que o autor, Dr. Horatio Spafford, advogado bem-sucedido que sustentava missões (especialmente de Dwight L. Moody), escreveu depois de um trágico naufrágio em que perdeu toda sua família: “It is well with my soul”. Uma tradução mais real não diria apenas “sou feliz”, mas “está bem com minh’alma” – mesmo que tudo esteja mal e todos se perderam, meu ser interior está bem porque tudo está nas mãos de um Deus soberano que é bondoso.
Esta semana sentimos o choque de saber de uma jovem família de servos de Deus ceifada por um acidente de carro, em que só ficou vivo o caçula. Tenho certeza que os familiares cristãos ativos, bem como a igreja que Alessandro pastoreava, não estão dizendo “sou feliz” ou “está tudo bem aqui” – mas podem afirmar: “Com minha alma está bem”.
Revendo o livro de Edith Scheaffer sobre “Aflição”, deparei com este parágrafo que expressa sentimentos iguais aos meus:
 Às vezes são dadas idéias tão erradas que não é de admirar que estejamos confusos. Os cristãos têm de ser felizes todo o tempo? Temos de ser realizados sempre? Temos de olhar para dentro e nos examinar para ver se nos conhecemos? A vida deve ser uma jornada centrada no eu? As idéias que nos levam nessa direção são atalhos falsos que levam só para becos sem saída, tornando necessário retraçar os passos e desperdiçando tempo valioso para chegar lá — onde quer que seja esse “lá”. Se cristãos devem ser sempre felizes (se todos os seus males forem curados e tiverem suficiente fé) ..., e nós estivermos tristes (chateados com alguma coisa, doentes... enxaqueca, dor nas costas, preocupados com pessoas que amamos muito, ou sobre decisões que têm de ser tomadas hoje ou amanhã ... odiaríamos ter de definir o que deva ser “realizado ... então a conclusão será que não somos cristãos. Damos um sorriso rápido e dizemos palavras que parecem fazer tudo ficar certo, caso o sorriso seja o que vale e compense essas coisas interiores que pareçam ser o contrario. Em vez de estarmos sensíveis às necessidades de outros... correndo ao Senhor quanto a nossas próprias carências, podemos nos endurecer e viver superficialmente em medo — ou nos afastar de tudo e procurar outra base para nossa vida. Existe o perigo de não sermos verdadeiros... – Edith Schaeffer, AFLIÇÃO, Monergismo, 2018.
O desejo humano de ser feliz vem desde o Éden. Eva foi atraída para o fruto proibido porque este era “bom de comer e agradável de ver” (Gn 3.6). Na competição entre irmãs no casamento polígamo de Jacó, Lia até deu nome a um filho dizendo “é a minha felicidade porque as filhas me terão por venturosa...” Gn 30.13) – e olhe que Aser nasceu da sua escrava Zilpa; ela estava pensando no que outras pessoas (as filhas) pensariam. A lei mosaica previa que o homem recém-casado “ficará livre em casa e promoverá felicidade à mulher que tomou” (Dt 24.5). O salmista descreve como “feliz” quem enche a aljava de filhos (Sl 127.5) e no Salmo seguinte fala sobre a pessoa bem-aventurada porque teme ao Senhor, anda nos seus caminhos, come do trabalho de suas mãos e “será feliz e tudo te irá bem” (128.1-2). Salomão estende o conceito de felicidade ao que acha sabedoria (Pv 3.13), guarda os caminhos do Senhor (Pv 8.32), dá ouvidos ao Senhor (Pv 8.34); se compadece dos pobres (Pv 14.21), confia no Senhor (Pv 16.20), é constante no temor de Deus (Pv 28.14).
Jó disse que sua felicidade foi varrida pelo vento e passou como uma nuvem. Eliú, amigo (!!) de Jó, argumentou que se os justos ouvirem e servirem a Deus, seus dias acabarão em felicidade e delícias (Jó 36.7); o pregador disse: “Vamos, eu te provarei com alegria; goza, pois, a felicidade”— mas concluiu com realismo que “também isso era vaidade” (Ec 1.1-2).
Jesus Cristo, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz... (Hb 12.2) Foi só com sua vinda ao mundo tenebroso em que vivemos que veio a alegria dos homens (Lc 2.10), mas esta foi encarnada no “homem de dores, que sabe o que é padecer”. Suas palavras de despedida não são de alegria superficial:
chorareis e vos lamentareis, e o mundo se alegrará; vós ficareis tristes, mas a vossa tristeza se converterá em alegria. A mulher, quando está para dar à luz, tem tristeza, porque a sua hora é chegada; mas, depois de nascido o menino, já não se lembra da aflição, pelo prazer que tem de ter nascido ao mundo um homem. Assim também agora vós tendes tristeza; mas outra vez vos verei; o vosso coração se alegrará, e a vossa alegria ninguém poderá tirar. Naquele dia, nada me perguntareis. Em verdade, em verdade vos digo: se pedirdes alguma coisa ao Pai, ele vo-la concederá em meu nome.  Até agora nada tendes pedido em meu nome; pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja completa. (João 16.20-24) e explicou ter dito isso “para que tenhais paz em mim (v 33).
O apostolo Paulo escreveu sua epístola de maior alegria quando preso, aguardando ser executado em Roma:
"Alegrai-vos no Senhor sempre” (Fp 3.1), descreve-os  como “minha alegria e coroa” (Fp 4.1), pede que completem essa alegria deixando de partidarismo e contendas (2.2), ele mesmo aprendeu o contentamento em Jesus: “aprendi a viver contente em toda e qualquer situação.  Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo e em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome; assim de abundância como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece. (Fp 4.11,12), e "grande fonte de lucro é a piedade com contentamento" (ITm 6.6).
Não somos Jós na vida, nem mesmo Paulos, Pedros, Tiagos ou João. Somos gente comum que suporta, nem sempre com paciência, as aflições que surgem. Se quisermos que a alegria do Senhor seja nossa força, temos muito a pensar sobre essa questão de não nos preocuparmos e ser feliz! Não só com os antigos e os novos da vida, que aprendamos que grande fonte temos: piedade com contentamento!
Elizabeth Gomes