Lá de casa, eu ouvia o carregado sotaque italiano do sacerdote, através do autofalante da igreja: “Tenho certeza que esse casamento vai dar certo e torço para que o amor fique aceso, a fim de que vocês possam habitar juntos”. Então, eu pensei: “aí (tchan!), o contorcionista mental dá um salto, mete os pés na boca e se engole”! Não ria não; poucos pensam de maneira diferente.
No entendimento popular, fé tem o sentido de “poder de um pensamento positivo”, esperança é o mesmo que torcer (por exemplo, pelo Corinthians) e amor significa um desejo que “pega” a gente de paixão. Se fosse assim, a fé seria uma crença e uma confiança no próprio entendimento pessoal, a esperança seria um desejo romântico de que as coisas fossem como imaginadas, e o amor seria um sentimento, no máximo, de autogratificação. Por quê?
Ora, a fé tem de ter um ponto de partida; se esse for o da própria fé, será como o cachorro que corre atrás do próprio rabo. Ninguém jamais se eleva do chão, puxando os cordões dos próprios sapatos. Por sua vez, a esperança é sempre baseada na expectativa de que a realidade do mundo corresponda à “verdade” dessa fé. Se o que se espera não tem base na realidade, será como segurar a chave da porta enquanto aguarda a casa passar nas voltas que o mundo dá. Esse tipo de esperança romântica só sabe esperar, sem certeza de que algo aconteça. O amor, então, é consequência dessa “verdade” e dessa “realidade”. Se formos involuntariamente “pegos” por ele, será como montar um rabo de foguete até que exploda em faíscas coloridas... se não der chabu.
Tudo começa com esse negócio de habitar juntos. Se o amor fosse como querem, as pessoas não teriam de soprar o fogo da paixão que as assalta nem torcer para não chover na fogueira. O poeta não desejaria somente que ele fosse eterno enquanto durasse nem nós mesmos diríamos: “É, o amor acabou” ou “tenho de amar a mim mesmo para poder amar a outros”. Não se trata de habitar em si mesmo (você não é caramujo!), mas com o outro. Uma casa bem construída tem alicerce e telhado. Essa habitação não é uma quitinete divida para dois. Habitar é morar na mesma vida, fazê-la hospitaleira para o outro. Habitar junto é mais do que estar junto; como diz minha alma caipira, “a gente se achega junto para pensar, conversar e fazer a vida”. Eu sei que pensar é algo que dói, que conversar é como parir ideias, e que atuar em favor do outro em detrimento de si mesmo é como oferecer o último pedaço de goiabada com queijo. Mas Deus mesmo é o ambiente de nossa habitação, e isso faz tudo mudar de cenário.
Nele [Deus] vivemos, e nos movemos, e existimos... que fez o mundo... de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra (Atos 17.28,24,26); E plantou o Senhor Deus um jardim... e pôs nele o homem (Gênesis 2.8); Quem, Senhor, habitará no teu tabernáculo? Quem há de morar no teu santo monte? (Salmo 15.1); E o Verbo se fez carne e habitou entre nós (João 1.14); Não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós (1Coríntios 3.16)?”
Quando o apóstolo Paulo escreveu o poema do amor melhor do que o sino, maior que do que o monte e mais quente do que a fogueira (ver 1Coríntios 13), depois de dizer que o amor atua e jamais acaba, terminou com esta expressão: Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior destes é o amor (v. 13). No conceito da passagem bíblica, esses três termos – fé/esperança/amor – formam uma unidade inseparável e sem diferentes graus de valor (logo você vai saber por que o amor foi enfatizado).
Lá no fundo do coração de todo mundo, consciente ou inconsciente, palpita uma crença básica de que alguma verdade existe (até mesmo, a crença de que não exista nenhuma verdade absoluta é uma crença básica). Não é um salto mortal tentativo, mas uma crença ou uma descrença que fornece chão firme para a vida. Essa crença tácita é aquilo que é chamado de fé. Para ilustrar o sentido do termo “tácito”, é como quando você acorda, ainda carregando o peso do sono, e não para e pensa: “Será que eu me acordei ou acordei meu irmão?” Nem é preciso olhar no espelho; você tem fé que é você mesmo. Também não vai pela casa, se perguntando se as coisas são reais ou se são sonhos... senão a água não ferve e você fica sem café. Você sabe que alguma coisa existe, especialmente, se tropica no banquinho.
Pois é, essa fé, consciente ou inconsciente no coração de crentes e incrédulos, é um movimento para o alto, em busca de duas coisas principais. (a) Uma ideia de Deus (ou ele existe, com todas as implicações na vida, ou não existe e, aí, a gente é que se implica); o que não dá para evitar é o fato de que crer ou não crer é um ato de fé (ver Romanos 1.18-32; Hebreus 11.6,3). (b) Uma ideia de tempo sem fim; sabemos que a morte é certa, mas será que dá para mais umas respiradas? Dez anos, vinte? No fundo do coração, nós bem que queríamos permanecer. Não dando, porém, sempre poderemos virar nome de rua ou de escola municipal (ver Eclesiastes 3.11). O certo é que essa fé – que busca alguém ou alguma coisa além de nós mesmos e além do tempo – habita o nosso coração. E nosso coração procura lugar em que habitar (Salmo 84.3-4). Quando alguém é chamado para habitar “em Cristo”, sua fé é vivificada pelo Espírito Santo e se torna a certeza de coisas esperadas, porque reveladas, e convicção de fatos que explicam a aparência de tudo que é visto por olhos humanos (Hebreus 11.1).
No mesmo lugar do coração, os óculos da esperança observam a vida e o mundo e segundo o que ela crê, assim vê e assim espera. Se as coisas não forem como se crê, então, os óculos não bastarão para reconhecê-las. Será como disse o cético, considerando o camelo, no zoológico: “Esse bicho não existe”. Eu, por exemplo, “amo” camelos. Já escrevi até poema para um deles: Tem lá suas manias / como todos os camelos que conheço / com a mesma função que o meu/ numa casa que me encerra / que me enterra e me agita / e ressuscita... (O camelo, 1971). Só quem não tem olhos para essa beleza de camelo interior é que o acha feio! Se habitarmos no Senhor, toda a sua criação espelhará a beleza do criador (até mesmo, eu e meu camelo!).
Realmente, encarapitado na raiz do nariz, os óculos enfocam linhas, sombras e cores, tal como a esperança interpreta o mundo aos olhos da fé. A esperança é, portanto, um movimento para dentro. É o espelho que reflete a luz que a todos esclarece (ver 1 Coríntios 13.12; João 1.4-5) e a luz da glória que a tudo ilumina (Salmo 19.1-4). Essa esperança anseia pelo conhecimento da realidade aí fora; quer saber o sentido do mundo, dos outros e da própria vida. De onde vem a esperança que alenta o filho, o pai e o avô? Que dá força na fraqueza e enfraquece a prepotência incrédula? Que prossegue, positiva ou negativamente, quando tudo mais acaba? De onde, senão da fé? E para onde vai a esperança? Se não for a esperança que provém da fé será para o desespero. Mas a esperança da fé tem um objeto (é como dar um beijo na namorada – estando ela presente!).
Aqui é que se explica a grandeza do amor. As afeições do coração brotam da fé alçada, recolhem no lago da esperança as águas que chovem sobre crentes e incrédulos e, em seu tempo, dão de beber amor ao mundo e às gentes sedentas. Amor não é um sentimento, nem inato nem aprendido – e se ele existe como sentimento é só por que sua dádiva mexe com o coração. A fé atua pelo amor e a esperança coerente o motiva à ação. O amor é a atuação da bondade movida pela esperança de que todas as coisas sejam como o coração crê (ver Gálatas 5.6). É um movimento para fora. Amor é crer no coração que alguém fora de nós vale a pena de ser conhecido, e é capaz para receber nosso afeto e nosso empenho. Quem não crê em Deus como ele quer ser crido (Hebreus 1.1-4) não tem esperança de conhecer ou de ser conhecido e, assim, em vez de atuar em amor, deseja apenas ser amado e sentir o gosto da fruta roubada. (ver Romanos 5.1-5). Mas aquele que ama a Deus também ama ao que é criado por Deus (1João 2.8-11).
De tudo, o que fica, é: o amor é a finalização da fé expressa na esperança e, por isso mesmo, é maior, pois é a expressão da verdadeira fé, da real esperança. Tanto é assim, que a única maneira para saber o que cremos realmente, é pela constatação de nossa expectação de vida por meio de nossa atitude e comportamento. Não podemos fugir a esta verdade: fazemos segundo o lugar em que habita nossa fé, o que cremos fica patente naquilo que esperamos, e o que cremos e esperamos é sempre traduzido naquilo que fazemos. Círculo vicioso? Não, antes, círculo virtuoso! (Eu “amo” o “meu” camelo porque creio que ele foi criado pelo Deus que me fez e me amou, e que me deu a esperança para amar todas as coisas e aprender o dom de seu amor. Eta! camelo importante entre as ricas bênçãos do Senhor; ver Gn 24.35.)
Wadislau Martins Gomes
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