sábado, dezembro 02, 2017

À LEI, AO DIREITO, À JUSTIÇA, À GRAÇA!




Antes, o menino era pego com o dedo no nariz e, pronto, tirava os olhos da menina e punha-o debaixo da cadeira juntamente com outras vergonhas. Hoje, é possível que ele mostre a caca. Antes, caráter e clareza eram esteios da vida de um casal; se uma falta de caráter levava o marido a mentir sobre o motivo do atraso, por respeito aos sentimentos da esposa, ela sofria, mas relevava. Hoje, ela já não liga para a mentira nem para onde ele esteve nem para o atraso. O que é que está havendo com a gente?
                Qualquer um que tenha um pouco de clareza mental desconfia, até mesmo, dos motivos por trás da maioria das propagandas da TV e da net. Claro que deve haver algum grau de honestidade no meio do ruído do comércio, mas a regra é desconfiar primeiro. Você acredita na ocular miraculosa que bate todas as lentes mais acreditadas? Nas notícias que não adiantam a que vêm e querem que você clique e pague pra ver? No conhecimento e sabedoria de cabos eleitorais bolsonaros ou lulistas ou de revolucionários ameaçando intervenções destras e canhotas?
                A coisa ainda fica mais pesada quando precisamos falar que nem todo político é safado a fim de dizer que a política governamental está safada. O certo é que, “se gritar: pega ladrão! não fica um, meu irmão” – nem mesmo quem cantou o verso. Quem não está com a espada no pescoço por ter sido pego com dinheiro na mala ou na cueca, também não aprova projetos que promovam lavagem a jato das coisas morais e éticas. Na área da justiça e do direito, o bicho pega feio. O que é que um ministro da injustiça tem que consegue fazer e acontecer?
                E nós, onde ficamos? De acordo com a Palavra de Deus: A ti, ó Senhor, pertence a justiça, mas a nós, o corar de vergonha ... a nós pertence o corar de vergonha, aos nossos reis, aos nossos príncipes e aos nossos pais, porque temos pecado contra ti (Dn 9.7-8). É isso aí, envergonhados da nossa falha de caráter e de clareza espiritual, que nos levam a esperar em redenções morais políticas, que não procedem de toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo (Ef 1.3). É por causa de nossas ações erradas ou de nossas omissões suspeitas que o mundo não reconhece o direito e a justiça do evangelho que a igreja deveria pregar e viver. Deveríamos ser exemplos de caráter santo e de desempenho social amoroso. Ou, no mínimo, deveríamos estar sob perseguição.
Tenho pedido a Deus que levante pessoas estudiosas do direito para ensinar e motivar as nossas igrejas a cumprirem a parte da missão de Deus que trata da cidadania (cf. O Sermão do Monte, Mt caps. 5 a 7). Poucos são os advogados, nas igrejas brasileiras, que conhecem os fundamentos bíblicos da lei e da justiça aplicados ao direito exercido em nossa terra. Isso se dá, em parte, por causa da quase ausência de boa literatura a esse respeito. Há algumas publicações recentes, mas muito do que existe, são tentativas de práticas jurídicas ou justificativas de opiniões de um e outro dos grandes sistemas do direito “secular”, utilizando textos bíblicos isolados.
A Bíblia, sem sombra de dúvida, é um livro de lei, de justiça, de direito privado e público, e daí em diante — tratando todos esses sub-itens a partir de um ponto de vista teológico. Será bom lembrar que muitos dos reformadores eram acadêmicos de direito, entre eles Lutero e Calvino. De passagem, menciono os muitos escritos de Kuyper e de Dooyeveerd, os quais serão indispensáveis ao pesquisador. Além desses, entre outros de igual importância, há livros que mostram aspectos práticos do direito bíblico: Law and the Bible, Eds. Robert Cochram Jr and David VanDrunen (www.IVPress.com/books), The Ten Commandments, Thomas Watson (1692, diversas editoras); The Ten Commandments: Manual for the Christian Life, de J. Douma (P&R Publishing); A lei da perfeita liberdade, Michael Horton (Editora Cultura Cristã, 2000), e daí em diante.
O que segue é uma tentativa de provocar um gosto pelo estudo do assunto e pela educação das nossas igrejas no exercício de nossa dupla cidadania celestial e terreal.
Aprecio muito os livros seminais. Não livros simplistas, mas sementes férteis que plantadas em solo arroteado e bom, crescem a cem, a mil por dez. Como disse David Powlison, não se trata da simplicidade aquém, mas além da complexidade. O The Law, de Frédéric Bastiat, é um desse livros (Auburn, AL, USA: Ludwig von Mises Institute, 1850; 145 pp). Já nas últimas cinquenta páginas, Bastiat repete perguntas e respostas que procurou levantar na mente do leitor: “O que é a lei? O que ela deveria ser? Onde, de fato, termina a prerrogativa do legislador?” A sua resposta é pronta: “A lei é a força comum organizada para prevenir a injustiça – em suma, Lei é Justiça” (p. 115).
Se o leitor for criativo, lembrar-se-á de que a lei escrita na Palavra de Deus foi dada para servir de consciência ao homem decaído de seu estado original. A questão é que, antes do pecado, nossos primeiros pais acatavam a lei preveniente e evidente na criação. Depois da Queda, sem o temor de Deus no coração e diante dos olhos, veio a lei de Deus a fim de calar qualquer justificativa humana e colocar a todos sob condenação – as obras da lei a ninguém justificam, antes, fornecem a consciência do pecado. 
A obra redentiva da lei apontou e sempre aponta para o Redentor, o Filho de Deus que no devido tempo se encarnou para cumprir a lei fazendo-se justiça em nosso lugar. Toda a humanidade está sob o juízo da lei de Deus, quer pessoas regeneradas quer naturais, mostrando “a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os” (Rm 2,15; cf. 2.11-14; 3.18-22; 1Co 1.30).
A missão da lei dos homens, como diz Bastiat, não é a de “regular nossas consciências, nossa vontade, nossa educação, nossos sentimentos, nossos trabalhos, nossos intercâmbios, nossos dons, e nossas diversões” (p. 116). Essa é a função da lei de Deus, na Palavra escrita e no testemunho interno do Espírito, assegurando ao regenerado a justiça de Cristo e suas bênçãos, e ao não regenerado, a consciência e a final consequência do pecado. Em relação à humanidade em geral, a missão da lei humana é a de “prevenir que os direitos de uma pessoa, acima descritos, sofram interferência por parte de outras”.
A lei garante tais direitos por meio do exercício de sua força, isto é a justiça. “Como cada indivíduo tem o direito ao recurso dessa força somente em caso de defesa pessoal, assim também a força coletiva, a qual é a união de forças individuais, não pode ser racionalmente usada para qualquer outro fim” (p. 116). A lei somente será justa se for a organização dos direitos individuais que existirem diante da lei. Pois a lei é justiça. Daí, Bastiat depreende o que deveria estar em nosso coração e evidente aos nossos olhos: se a lei for usada para oprimir o povo seja por meio do controle da consciência do indivíduo (em termos de sua linguagem, educação, associações e identidade social, de gênero etc.) seja por meio do despojo de sua propriedade, mesmo com alegada motivação filantrópica – nesses casos a justiça deverá ser reclamada por parte de uma união de forças individuais.
O ideal de justiça, diz Bastiat, não “pode ser mais claro e mais simples, mais perfeitamente definido e unido, ou mais visível a cada olho; pois justiça é uma dada quantidade, imutável e constante, que não admite aumento ou diminuição.” Ideal, eu digo, porque a justiça não existirá em um mundo decaído, sendo atingida única e exclusivamente em Cristo por meio da ação do seu Espírito. “A partir daí, faça a lei humana ser algo religioso, fraternal, equalizador, industrial, literário, ou artístico, e você estará sobre terreno desconhecido, uma utopia forçada, ou, pior, uma multidão de utopias em contendas para obter a posse da lei a fim de impor [sua versão de justiça] sobre” o indivíduo.
Como é que poderemos impor limites à consciência? Mudar identidade de gênero? Fornecer educação igualitária a pessoas com diferentes dons e motivos? Administrar o labor criativo e recompensador? Como operar justiça a uns sem fazer injustiça a outros? Pessoalmente, sei que a perfeição não existirá aqui e agora. O mundo jaz no maligno e seus caminhos são tenebrosos e mortais. Há, entretanto, uma esperança baseada na promessa divina. Deus concedeu os Dez Mandamentos a um povo que, ainda que carente da habitação do Espírito, tinha a promessa dessa graça para a própria política como povo organizado e para o cumprimento de sua missão política externa.
Ninguém jamais cumpriu a Lei senão o Filho do Homem, Jesus. Ele é a nossa justiça. Assim, o indivíduo regenerado, enxertado na Videira, recebe dele a vocação e os dons para a própria vida e para a missão de Deus no mundo. Em uma aplicação bem prática, o apóstolo Paulo discorre sobre como, individualmente, ele lidou com os seus valores e motivos internos, e com suas posses externas, à luz do conhecimento e da comunhão com Cristo:
Mas o que para mim era ganho reputei-o perda por Cristo. E, na verdade, tenho também por perda todas as coisas, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como escória, para que possa ganhar a Cristo.
Estas palavras, Paulo escreveu a uma igreja, falando sobre a vida dos membros na unidade da fé e sobre a missão da igreja no mundo. Ele continua:
E seja achado nele, não tendo a minha justiça que vem da lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a justiça que vem de Deus pela fé; para conhecê-lo, e à virtude da sua ressurreição, e à comunicação de suas aflições, sendo feito conforme a sua morte; para ver se de alguma maneira posso chegar à ressurreição dentre os mortos.
Sua motivação não era mais uma de reivindicação de direitos, mas de cessão dos próprios direitos em função das virtudes de Cristo a serem vividas e proclamadas. É assim que Paulo, considerando as fraquezas humanas e os poderes de Cristo, convoca-nos e anima-nos a viver do mesmo modo:
Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus. Por isso todos quantos já somos perfeitos, sintamos isto mesmo; e, se sentis alguma coisa de outra maneira, também Deus vo-lo revelará. Mas, naquilo a que já chegamos, andemos segundo a mesma regra, e sintamos o mesmo (Fp 3.7-16).

Wadislau Martins Gomes