sexta-feira, outubro 21, 2016

MEDICINA, CINEMA E LIDERANÇA

Cena do filme The Physician

Com minha leitura mais recente, fiquei pensando no que faz tantos médicos tornarem-se exímios escritores. Certamente, as qualidades necessárias para um clínico – observação precisa, ler nas entrelinhas do que o paciente diz e do que não diz, observar o corpo e os seus sinais silentes, muitas vezes, fisicamente invisíveis – dão respaldo para um escritor de primeira grandeza. Outra característica do bom médico que vem a ser melhor escritor, também, é o hábito da pesquisa constante, renovada sob novas perspectivas. Ele não se contenta com o que aprendeu na faculdade de medicina, mas é ávido por aprender sempre, sem superficialidade, ainda que consiga ver “de cara” aquilo que vai pesquisar “mais a fundo”. Vejo isso em minha amiga jovem neurologista, Dra. Claudia, que irradia profunda sensibilidade juntamente a um experiente conhecimento – enquanto, humildemente, diz: “Não sei. Vamos pesquisar...”

Lembro-me de ter visto a mesma característica em velhos médicos missionários que fundaram hospitais pioneiros e tornaram-se referências em suas cidades – Dr. Gordon, em Rio Verde, e Dr. Fanstone, em Anápolis. Seu conhecimento ia muito além da medicina – foram engenheiros arquitetos, administradores, músicos, e pregadores da Palavra de Deus, cuidando do físico e alma das pessoas, porque as viam como uma totalidade.

Na literatura, muitos dos livros que mais me empolgaram foram escritos por médicos: os diversos livros de Oliver Sacks (O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, Alucinações musicais), Raízes, de Alex Hailey, Cutting for Stone, de Abraham Verghese, a ficção científica de Michael Crichton, os livros históricos de diversos períodos de Noah Gordon (especialmente O último judeu e O físico), e até mesmo nosso Dráuzio Varela, que consegue fazer suas biografias de prisioneiros e carcereiros, de enfermos e sarados, leituras fascinantes. No terreno bíblico, há o Dr. Lucas, companheiro e biógrafo do apóstolo Paulo e de todos os primeiros momentos da Igreja, até autores cristãos modernos, como Henry Brand, Roger Hurding e D. Martyn Lloyd-Jones.

Não sou aficionada ao cinema, e quando meu filho emprestou-me o livro Lições de liderança no cinema, de Pablo Gonzalez Blasco, não imaginava que seria uma experiência tão enternecedora, educativa e provocante. Como educadora cristã que escreve, pensei que essas lições de liderança resultariam em algumas “dicas” para palestras ou escritos futuros. O autor é médico com pós doutorado em medicina de família, e autor de diversas obras sobre a humanização da medicina. Cristã que sou, pensei que a sua ênfase no humanismo e constantes citações do papa Bento e de santos católicos romanos de diversas épocas não coadunaria com minha visão da soberania de Deus e de cristianismo bíblico segundo nosso enfoque. Mas suas constantes referências ao pensamento e doutrinas cristãs de Agostinho e C. S. Lewis derrubaram os muros mentais que eu tendo a erigir, e eu quis aprender com Dr. Pablo, que afirma “o amor pela verdade é o substrato necessário para todas as reflexões sobre liderança... o amor pela verdade nos configura e consequentemente nos atinge também o relacionamento com os outros” (p. 24). Lembra a declaração de Jesus em João 8.32: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” e sua suma relacional em João 13.35 e João 15.14.

O livro é prenhe de filosofia prática. “Sim, é possível transformar-se, tornar-se melhor, buscar caminhos novos para a vida, sem aceitar a idade como desculpa para o conformismo” (p. 156), lembra-me Romanos 12.2: “E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus”.

Como um professor/escritor poderia descartar este livro que diz: “A pedagogia bíblica, com suas histórias e parábolas, nos ensina que a gratidão é atitude rara, que deve ser ensinada como um hábito a incorporar desde a mais terna infância. Lá encontramos um exemplo gráfico de um grupo de leprosos curados milagrosamente; apenas um voltou para agradecer?” (p.180)

“A adaptação da maturidade requer entendimento dessa realidade e passar por cima das ingratidões, lombadas naturais no curso da vida, sem queixar-se, sem desistir. É o momento de lembrar os motivos que nos levam a agir, e viver, de verdade, com a convicção de que ninguém nos deve nada, porque nunca nos passamos a conta: o nosso balanço contável situa-se em outro nível”. A citação seguinte parece tirada do velho apóstolo Paulo no capitulo 4 de Filipenses: “aprender a envelhecer sorrindo (Alegrai-vos no Senhor, outra vez digo: Alegrai-vos” (4.4), um sorriso que resume a paz, a adaptação, a atitude aberta que convive com qualquer mudança”(p. 181) “porque aprendi a viver contente em toda e qualquer situação. Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo e em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome; assim de abundância como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece” (Fp 4.11-13).

Referido-se ao filme da história de Nelson Mandela, Gonzalez Blasco diz: “Invictus aponta para uma liderança que é cuidado fino, atenção pessoal, verdadeiro coaching – palavra que logo cairá também no desgaste conceitual pois o nosso mundo não perdoa. O verdadeiro líder não é um gestor macro, mas alguém que olha com carinho no micro, na pessoa, em cada um, no interior. Não lhe interessam estatísticas nem apenas resultados no conjunto, embora saiba que deverá prestar contas, porque o mundo é assim avaliado. Vai atrás de cada um, e tira dele o melhor, e o mundo melhora assim, mais do que com políticas globais...” (p. 221,22). Lembro da parábola das noventa e nove ovelhas no aprisco e o Bom Pastor que vai atrás da uma ovelha desgarrada e perdida (Mt 15.24; Mt 18.12).

Ao ler os comentários cinematográficos, que o Dr. Pablo aplica tão propriamente à medicina da família e geriatria, lembro do dito, (vantiliano, schaefferiano) que “toda verdade é verdade de Deus”, julgo criticamente as suas posições humanistas, mas louvo a sua visão de servir o ser humano: “Responder com generosidade a situações alheias ... é porta que descortina horizontes formidáveis, perspectiva que coloca em jogo os talentos que Deus nos deu, e os faz render. Servir é sempre caminho de crescimento. E todos têm jeito para isso; basta querer” (p. 233).

Concluo com o que diz Dr. Pablo sobre perdão: “Compreender, desculpar e perdoar é possível mediante o amor de Deus e a nossa humilhação. Quer dizer: para perdoar de verdade, sem guardar contabilidade, é preciso esmagar o ego e pedir emprestado o amor divino capaz de cicatrizar as ofensas” (p. 237)

Não tenho a habilidade, precisão e cultura de um médico familiar que escreve com beleza sobre a graça de aprender com cinema. Longe de mim achar que escritos de uma would-be writer pecadora, a quem falta conhecimento apesar da maturidade, tenha escritos para a eternidade. Mas quero ter a humildade e sabedoria de outro exímio escritor e médico, que afirmou em seu prólogo:

“Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído” (Lucas 1.1-4).

– escrevendo sempre narração coordenada, depois de acurada investigação desde sua origem, dar por escrito uma exposição em ordem, com a finalidade de que meu leitor tenha plena certeza da verdade.


Elizabeth Gomes