terça-feira, janeiro 25, 2011

SOBRE A BOA EDUCAÇÂO

Tem crente que não percebe que o fundamento determina o método. Em vez de ser professor cristão, contenta-se com ser cristão nas horas vagas e professor na vida real. Deveria ler alguma lista de “Por que não sou...”: não sou tradicionalista por que não creio que o saber esteja centrado no professor; não sou novaescolista nem construtivista por que esses são métodos humanistas que pressupõem a doutrina da autonomia do aluno para ser ensinado segundo suas próprias luzes; não sou tecnicista por que não aceito que o aluno seja uma máquina a ser treinada para funcionar conforme as solicitações ambientais; não sou progressista libertário, por que o ensino da pedagogia crítica cristaliza o aluno em seu próprio cenário social (o pobre aprende carroça e, o rico, Lamborghini), e daí em diante. Mas, então, o que sou? Sou cristão, (e paulista do interior). Como Schaeffer gostava de dizer, o evangelho é um sistema com método próprio.

O método cristão é o do discipulado. Só que não se parece em nada com esse discipulado evangelicalista que há por aí. É um discipulado de conservos aprendizes que guardam uma ordem hierárquica baseada no Senhorio de Cristo, sensibilidade ao Espírito Santo, fidelidade à Palavra de Deus e acato aos mestres no Senhor (cf. Hebreus 13.17). Para que o método seja aplicado, o professor terá de ser experiente no conhecimento do Senhor e naquilo que Deus ensina sobre o conhecimento, sendo obediente a Deus na prática das virtudes cristãs na vida pessoal, familiar, profissional e eclesiástica (2Timóteo 3.10-17). Da mesma maneira, o aluno deverá ser obediente, disciplinado, motivado pela injunção bíblica quanto à obrigação do conhecimento e ao deleite do aprendizado. O aluno deverá ter mudanças em seu senso de valores (pessoas antes do estudo, saber antes de notas de avaliação, e crescimento espiritual antes de sucesso pessoal) e em seu senso de propósito do conhecimento e do treinamento: “e de o que de minha parte ouviste através de muitas testemunhas, isso mesmo transmite a homens fiéis e também idôneos para instruir a outros (cf. 2Timóteo 2.2).
           
O método cristão de educação, com efeito, é baseado, de parte do mestre, na congruência entre o que diz e o que faz; e, de parte do aluno, no entendimento do testemunho de vida do professor e na disposição para sua própria coerência de vida. Se o professor é motivado por necessidade, isto é, se é professor por que precisa do salário, gosta de exercer autoridade sobre os pobres ignorantes ou de demonstrar seu imenso saber, ele formará estudantes, não das matérias lecionadas, mas das táticas de manipulação vivenciadas em sala de aula (cf. Tiago 3.1-2; 1Timóteo 1.5-7; Lucas 6.40).
           
Na mesma linha de pensamento, o método cristão de ensino não poderá ser entendido como “aula de religião”. Trata-se de educar a mente e o coração para pensar após os pensamentos de Deus (frase de Van Til), interpretando o mundo como Deus interpreta. Não basta fazer uma oração antes de estudar economia sob os perdigotos de John Locke e Adam Smith ou de Karl Marx e Proudhon. Há uma “teologia de economia”, e o professor cristão de economia deverá ser mestre no assunto. Há uma teologia de justiça e lei, e o mestre cristão deverá dominar essa área. Há uma teologia do homem a que todo antropólogo, sociólogo, psicólogo ou administrador cristão, deverá submeter seu pensamento. [1] “Ah! – você dirá – “mas o que fazer com as ciências exatas; há uma teologia da física, da química, da matemática?” Vern Poythress fornece uma longa argumentação[2] que sintetizo, aqui: a Palavra de Deus, Viva e Escrita, produz uma unidade harmônica que permite harmonia na matemática e física e entre essas disciplinas. Acho que isso é suficiente, aqui.

O Senhor Jesus estabeleceu exemplo para a interação mestre/aluno:

(1) Há uma só fonte primária para o ensino da verdade, e essa é pessoal: “Vós, porém, não sereis chamados mestres, porque um só é vosso Mestre, e vós todos sois irmãos. A ninguém sobre a terra chameis vosso pai; porque só um é vosso Pai, aquele que está nos céus. Nem sereis chamados guias, porque um só é vosso Guia, o Cristo” (Mt 23.8-10, cf. vv. 11-12; cf Mt 20.16); “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que ensinas o caminho de Deus, de acordo com a verdade, sem te importares com quem quer que seja, porque não olhas a aparência dos homens” (Mt 22.16).
(2) Professores humanos pertencem à mesma categoria dos alunos, e o alvo da educação é o de reproduzir nos alunos o conhecimento e o caráter do professor: “O discípulo não está acima do seu mestre... Basta ao discípulo ser como o seu mestre” (Mt 10.24-25).
(3) A tarefa do mestre é uma de servir ao aluno na reprodução do caráter de Cristo: “Vós me chamais o Mestre e o Senhor e dizeis bem; porque eu o sou. Ora, se eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros” (João 13.13-14).
(4) O Senhor Jesus concedeu mestres aos alunos “com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação da igreja” por meio de trazê-los à unidade do conhecimento de Filho de Deus, “à medida da estatura da plenitude de Cristo”. Essa tarefa implica no discernimento entre o ensino confessional e o ensino secular: “para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro e levados ao redor por todo vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro” (Efésios 4.11-14; ver vv. 15-18).
(5) Quanto ao aluno, Paulo instruiu Timóteo a permanecer “naquilo que aprendeste e de que foste inteirado, sabendo de quem o aprendeste”. A Palavra de Deus é o elemento essencial para interpretação de toda a realidade e para a implementação da verdade em todas as fases da boa educação (2Timóteo 1.14-17).

Quando comecei a usar o termo “implementação”, algumas sobrancelhas levantadas me perguntaram se a palavra aplicação não seria mais familiar. Por isso mesmo – eu respondia; é familiar demais para denotar a nuance de sentido que eu quero dar. Aplicação poderá ser uma abstração da verdade, assim como aprender a nadar por correspondência. “Olha, isso se aplica àquilo”, ou “isso se faz assim”. O sentido que eu quero dar é o da experiência prática dessa aplicação. O ensino cristão é definitivamente pré/pós/teórico (De novo!? Está bem, eu explico: uma dada aplicação da verdade existe no pensamento de Deus [pré] que, uma vez revelada, torna-se verdade para o nosso pensamento, quando entendemos seu enunciado, apreendemos sua realidade e atuamos de conformidade com ela [pós]).

O melhor exemplo de implementação, na Bíblia (ih! acho que deveria ter dito “de todos os exemplos”) é o contexto da família, registrado em Deuteronômio 6.1-9. Primeiro, porque o conceito de família é mais amplo do que sexo e filhos; o próprio construto divino (gostou dessa?) é pedagógico, ensinando a aprender amor gracioso e dependência amorosa, o que, por sua vez permite a relação discípulo mestre. Por isso que me oponho à soberania do estado em questões do ensino; creio que o governo tem um papel a desempenhar, mas não é o de assumir meu filho para fazer dele um cidadão da terra; antes, o filho é meu e eu tenho o dever de educá-lo para exercer dupla cidadania, como embaixador dos céus na terra que também é de Deus. A tarefa dos pais é uma de acatar e usufruir os “mandamentos, os estatutos e os juízos que mandou o Senhor, teu Deus, se te ensinassem, para que os cumprisses” (v. 1), “tu, e teu filho, e o filho de teu filho, todos os dias da tua vida” (v. 2b). A motivação para a implementação está no v. 3: “para que bem te suceda, e muito te multipliques na terra que mana leite e mel, como te disse o Senhor, Deus de teus pais”. A experiência prática vai assim implementada:

1. Para realmente aprender conforme manda o figurino, os pais/mestres terão de botar para funcionar mente e coração, vontade e músculos, com a disposição do turista nadador, levado pelo refluxo da maré. “Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força. Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração” (vv. 5-6).
2. O ensino deve ser constante, repetido, a tempo e fora de tempo, em todos os lugares, que é para o filho perceber que não se trata de “arranjar diploma”, mas que é questão de vida ou morte; e para que o temor do único Senhor lhe seja por sabedoria, isto é, para aqueles que, pela prática, têm as suas faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal” (Hebreus 5.14).
3. Uma vez entendido o ensino na mente e no coração, e compreendida a aplicação, os pais são instados a realizar junto com os filhos, os atos implicados na verdade ensinada e, então, requerer que eles mesmos repitam as tarefas. “Também as atarás como sinal na tua mão, e te serão por frontal entre os olhos. E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas” (vv. 8-9).

            É, entendo que me estendi demais e apreendo a sua apreensão; agora, é melhor guardar a viola no saco e ir saindo. Mas não sem pôr em suas mãos, para você pôr na testa e pendurar na porta de casa – até que entre em seu coração:

Filho meu, se aceitares as minhas palavras e esconderes contigo os meus mandamentos, para fazeres atento à sabedoria o teu ouvido e para inclinares o coração ao entendimento, e, se clamares por inteligência, e por entendimento alçares a voz, se buscares a sabedoria como a prata e como a tesouros escondidos a procurares, então, entenderás o temor do Senho e acharás o conhecimento de Deus. Porque o Senhor dá a sabedoria, e da sua boca vem a inteligência e o entendimento (Provérbios 2.1-6).


Wadislau Martins Gomes



[1] Um bom exemplo da aproximação de matérias deste mundo sob a luz de uma bio-cosmovisão cristã é a dissertação de mestrado de Cláudio da Silva Cruz: “Governança de TI e Conformidade Legal no Setor Público: Um Quadro Referencial Normativo para a Contratação de Serviços de TI”. http://www.cscruz.org/publico/CRUZ,2008,DissertacaoFinal.pdf  .
[2] Poythress, Vern S., Redeeming Science: A God-Centered Approach: Crossway Books Wheaton, Illinois, p. 317. Ver capítulo sobre matemática, em forma de artigo, em http://www.frame-poythress.org/ .


quinta-feira, janeiro 20, 2011

SOBRE EDUCAÇÃO E FALTA DE EDUCAÇÃO

Quando o mundo ainda não vinha pela net, mas já andava de TV, um humorista inventou um ovo que para em pé: a faculdade de cinco anos em cinco minutos. Em uma entrevista, o anfitrião introduziu a ideia e o humorista explicou: “Você, por exemplo, quando é que terminou a faculdade? “Há uns cinco anos”. “O que é que estudou?” “Inglês e espanhol”. “E o que você se lembra, hoje?” Uns dez segundos, contando nos dedos, e o apresentador ensaiou um espanglês que mal encheu cinco minutos. “E só isso?” “És todo”. “Então, por que não ensinar em cinco minutos só o que será lembrado depois de cinco anos?”

É claro, você vai pensar, o raciocínio está incorreto. Mas quem é que falou de raciocínio; estamos falando de educação no Brasil! Será que há mais raciocínio nessas luzes de cinco minutos do que as que brilharam nas cabeças que deram à luz nossa estrutura de ensino? Conta só: elaboração do ensino massificado, diluição do conteúdo programático, popularização da academia, aprovação quase automática, aumento da carga horária do aluno com diminuição do tempo de preparo dos professores em função de salários mais baixos para o ensino basilar. A falta de raciocínio é a piada. Imagine que, desde segunda-feira, os estudantes que tentam se inscrever no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) do Ministério da Educação (MEC) esbarram na lentidão do programa da internet “e os que conseguem entrar no sistema correm o risco de serem direcionados aos cadastros de outras pessoas”.

Educação ou falta de educação? O que falta para ser educação: cinco anos ou cinco minutos? Vamos lá: os 2.632.320 minutos que totalizam cinco anos não serão mais do que lembranças de escola, se for mantido tipo de estrutura educacional que temos nesta Terra de Santa Cruz. Claro que tem quem aprenda de verdade, mas esse não se limitou a cinco anos e cinco minutos de traseiro do banco escolar. Com efeito, esse é o que comprova o que eu digo. A recíproca também é verdadeira e sintomática: se o próprio órgão que cuida da badalada educação brasileira carece de competência para aplicar as matérias de administração, de informática e de cuidado ético moral propostas no ensino, aonde é que estaremos daqui a cinco anos?

Lembra-se de como era há cinco anos? Começávamos a sair da alienação, mas ainda sem conseguir “se libertar desse mal”.[1] A frase teve cinco minutos de razão quanto à persistência do mal, mas, o resto do tempo, ficou na velha política de educação homogeneizada. A questão não é uma de elevação do ensino por meio de ingerência do estado social. A continuar o tratamento da educação com base nesse princípio, vamos prosseguir no esbarro da ineficácia do Estado e nos pressupostos políticos, econômicos e ideológicos correntes. A proposta clássica de nossas agências educacionais[2] comete um erro central. Conquanto tenha a ver, e muito, com comunidade, a educação não pode ser fundada na sociedade, sob risco de cair em um círculo vicioso de julgamentos individuais subjetivos, sendo substituídos pela consciência do Estado que, por sua vez, determina a educação do indivíduo.


Ensino não é apenas comunicação de informação e treinamento para passar de ano, fazer teste do ENEM ou se dar bem, financeiramente falando. Ensino que leva o sobrenome de educação tem de ser um de conhecimento verdadeiro que prepara para a vida, e seu primeiro nome é sabedoria. A falta de sabedoria distorce o conhecimento e leva o povo a essa falta de educação espiritual e moral que está aí, à mostra, em todas as esferas de autoridade da Nação. Michael Polanyi expressou sua crença em que o homem moderno deveria retornar a Deus para clarificação de seus propósitos culturais e sociais.[3]

A proposta cristã é uma de ensino confessional baseado na Escritura Sagrada. E não adianta pôr nota contrariada na Istoé nem na Folha, pois todo ensino, religioso ou secular, é confessional. O que muda é o catecismo: seja do Manifesto Humanista II seja do marxista modelo latino seja de um bom catecismo reformado. Para tratar extensivamente desse tema, eu teria de gastar muito teclado e tempo, e ainda correria o risco de ser anti-didático. Por isso, limito-me a um comentário de cinco minutos: o ensino cristão é pessoal, revelado, verdadeiro, sábio, e perene.

Verdade e sabedoria, irmãs gêmeas, iguais nos mínimos detalhes, são, no entanto, duas entidades diferentes. A primeira é uma propriedade, pertencente a alguém; a segunda é uma qualidade, uma virtude decorrente. É simples: você é uma pessoa? Então, é proprietário de uma consciência cujos atos finalizam no corpo; por exemplo, o “seu” Carlos, que vive com construções na cabeça, e que as executa com as mãos. Você tem uma ocupação? Ora, você não é sua profissão, mas desenvolve uma qualidade funcional; por exemplo, “seu” Carlos é pedreiro, mas poderia ser engenheiro. Note que eu usei o termo entidade, que significa existência real, essência da coisa, um ser com qualidade distintiva.

Ora, o “seu” Carlos não tirou a ideia de construção do nada, mas derivou-a da vontade do Criador que nos fez criativos (à sua imagem). Ou teria ele pensado em construção primeiro e, só depois, em gente para morar nela, tal como quem já sabe nadar e tem necessidade de inventar a água? Ou teria conhecimento das relações de pessoas e habitações? Como ele constatou essa verdade? Certamente no relacionamento Criador/criatura. A despeito da rebelião, descrença e infidelidade humana, Deus assegura aos homens a sua verdade a fim de que as propriedades e qualidades do seu caráter sejam conhecidas, para esplendecência de sua sabedoria em amor, na nossa vida (cf. 2Pedro 2.7-11.)

Siga o pensamento, no Evangelho de João. No capítulo 14.6, ele diz: Jesus Cristo é o caminho, e a verdade e a vida. Na proposição inicial (João 1.1-14), a tese é a de que Jesus Cristo é Deus, o Filho, segunda pessoa da Trindade, que encarnou nossa humanidade para reunir todas as coisas no propósito eterno; nesse sentido, ele é o caminho que liga o homem Deus. Também, essa ligação não opera no vazio, mas têm realidade e significado próprios que finalizam em Jesus Cristo, Verbo criador e iluminador (Gn 1.1-3) para interpretação das coisas criadas; nesse sentido, Jesus é a verdade. Ora, como a verdade é reprimida pelos homens, por causa do pecado que o restringe a uma esfera de morte, foi do propósito eterno de Deus que o Verbo encarnasse nossa condição até a morte – e além dela, na ressurreição – a fim de nos conceder vida; nesse sentido, ele é a vida.

Vamos lá, explicando tintim por tintim: a verdade é uma propriedade pessoal; pertence a Deus como parte essencial do que ele é, e, ao mesmo tempo, é uma abstração da realidade. A verdade está para Deus assim como o pensamento está para a consciência do homem. Para que a verdade exista, tem de haver um pensamento que a mantenha. A verdade existe porque Deus pensa com propriedade. Assim, a verdade é o conhecimento sobre a realidade real. Que é que isso quer dizer? Simplesmente isto: a verdade é pessoal. Se for menos do que pessoal, é menor do que você eu, e não precisamos dela. Contudo, de fato, nós pensamos sobre ela e, portanto, há um ser que pensa a verdade e esse ser é Deus, o “Verbo” que explica a si mesmo e a criação, “Luz que ilumina a todo homem, e “Vida” que motiva o conhecimento. (Cf. Provérbios cap. 8). Portanto, a base do conhecimento é Deus e não a sociedade.

Tendo separado os ingredientes, batamos o bolo da verdade. Conhecimento e cozinha requerem ciência. Com um ou dois punhados, começamos a massa. É importante seguir os passos porque, se não, o bolo desanda. A verdade é uma só, pois, se houver duas verdades, uma se opõe à outra e se anulam. Hoje, costuma-se inventar duas verdades, mas isso é falsidade. Se a verdade não for absoluta, ela será meia verdade, e meia verdade é uma mentira inteira. Para evitar isso, usa-se uma pitada de sabedoria (tão potente que basta uma pitada). Sabedoria tem dois elementos que, juntados, provocam uma reação agregadora da massa de conhecimento, a saber, o discernimento e a arte. O discernimento é que permite que o conhecimento seja estabelecido – mediante observação, pesquisa, coleta de dados, interpretação, formulação de teoria, realização de experimento, proposição descritiva do construto, repetição da experiência e derivação aplicativa a outras relações. A arte implica a habilidade para reconhecimento das fontes do conhecimento, estabelecimento do propósito do conhecimento e treinamento para o bom desempenho das ações necessárias derivadas do conhecimento.

Em um sentido, não há como escapar ao tipo de forno usado para assar o bolo. Crentes e descrentes vivem nesta terra em chamas (nenhuma insinuação quanto ao aquecimento global, tão falto de discernimento e de arte), e têm de processar o conhecimento no mesmo ambiente natural. Outra condição inescapável é que crentes e descrentes começam a observação da realidade a partir de uma revelação.

Os descrentes (e muitos crentes) interpretam o mundo sob a revelação dos raios do sol, clarão da lua e brilho pálido de estrelas, e da soberba das lâmpadas inventadas e comercializadas pelos homens, com direito a apagões. Freud, por exemplo, recebia revelação interpretada do cliente, reinterpretada por ele mesmo, e (tri)interpretada pelo relacionamento analítico. O problema é que, sem uma cosmovisão da unidade e diversidade que há no mundo, e tomado de individualismo interno e pluralismo externo, o descrente opta por um tipo de conhecimento totalmente perspectivo e de fácil manipulação intelectual. Por exemplo: o indivíduo é uma pessoa e a sociedade é uma organização de pessoas, sem vida própria; sem esse discernimento, confundem-se as esferas de autoridade (divina, individual, familiar, vicinal, escolar, governamental etc.).

No caso dos crentes, a revelação natural continua existindo, mas sob a “luz que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem” – o Verbo de Deus, cuja Palavra escrita, a Bíblia, é a interpretação do Criador que guia os passos do conhecimento. Com as pressuposições reveladas na natureza, na consciência justificada por Deus, nas definições e descrições da Palavra e na obra e comunhão de Cristo, o crente ganha uma cosmovisão que discerne as diversas perspectivas do conhecimento, e da arte de fazer todas as perspectivas convergirem nele (cf. Efésios 1.10). Para isso, o crente tem a promessa do Espírito Santo – que conhece as profundezas de Deus, do homem e de toda a criação (cf. 1Coríntios 2.1-16) o conduziria a toda verdade (cf. João 16.13).

Resumindo, não vejo uma luta entre ensino secular e ensino religioso, mas um conflito entre confissões seculares e confissão cristã. Nenhuma tentativa deveria ser feita para submeter uma à outra, senão por meio do convencimento do coração e da mente com base no encontro apologético. O mundo acadêmico secular só poderá ver até onde os olhos enxergarem, e pedir mais do que isso seria estultícia. No entanto, o mundo acadêmico confessional reformado (sociedade informal de indivíduos com as mesmas capacidades e habilidades humanas que os seculares) tem um distintivo: reconhece a carência humana de boa educação e almeja obtê-la à luz do conhecimento de Deus.


Wadislau Martins Gomes




[1] Claudio Henrique Mascarenhas de Azevedo (18/06/06): “Estamos caminhando de uma sociedade totalmente alienada para uma outra consciente de sua alienação, mas que não consegue se libertar desse mal”: http://www.artigos.com/artigos/humanas/educacao/tracos-da-politica-educacional-brasileira-313/artigo/
[3] Michael Polanyi, Science, Faith and Society (1946). Chicago: U. of Chicago, 1964, p. 84.

sábado, janeiro 15, 2011

DEPOIS QUE A CHUVA CHOVEU, DEPOIS QUE A DOR DOEU...


Chuva que chove e dor que dói é mais do que frase de efeito, lugar comum ou redundância – é pura realidade! A chuva tem efeito, a dor dói e esse tipo de coisa vai ficando redundante. De modos diferentes, o choque da tragédia na região serrana do Rio abala o homem desconsolado, o povo desolado e os espectadores solidários. Os números se somam, quase que desconexos: mais de 500 mortos, mais de 6.000 desabrigados, mais de 8.000 desalojados. O governo federal destina R$100 milhões, o estadual R$35, os Estados Unidos doam US$100 mil e entidades diversas levantam doações assistenciais. Além do Rio, tem São Paulo e Minas, e muito mais, debaixo de água e carentes de cuidado.

As notícias também chovem e doem, e os comentários não podem evitar juízos e soluções redentivas: “Não tem nada a ver com pobre ou rico. É provável que cada vez mais essas ocupações irregulares provoquem danos à natureza que causem esse tipo de tragédia. Agora é hora de solidariedade e trabalhar pela recuperação, e, principalmente, a limpeza dessa região”, diz o Governador do Rio, Sérgio Cabral; e a Presidente Dilma Rousseff distoa: “Houve um absoluto desleixo em relação à população de baixa renda, que foi morar na beira de córrego, do rio e em encosta dos morros... será necessário desenvolver um amplo trabalho de prevenção para evitar novas tragédias”.

É muita chuva, muita dor, e, depois delas, os pontos de interrogação ficam enroscados na cabeça, fisgando a alma. Caladas fundas no peito, no meio de pasmo, do sofrimento e da solidariedade humana, há perguntas que alguns calam na boca e outras que calabreiam alto: Tudo isso, por causa da natureza? Ou “ato de Deus”? (Um editor saiu pelo escanteio: A culpa é de São Pedro). Essas indagações não são novas. Não contando no Dilúvio (o original da Bíblia, e os derivado nos épicos de Gilgamesh e de Atrahasis) nem nas tragédias de Pompéia, Cracatoa ou nos desatinos das grandes guerras, as perguntas correram soltas nas tragédias das Torres Gêmeas, Sumatra, Haiti, Chile, Golfo do México, etc. – e surgem nas nossas tragédias particulares. Naturalmente, somos pequenos diante do porte desses desastres, e, sem explicações que aplaquem nosso senso de injustiça, emitimos juízos e projetamos redenções (guarde isso).

Quando algumas pessoas (Lucas 13.1-5) “falavam a Jesus a respeito dos galileus cujo sangue Pilatos misturara com os sacrifícios que os mesmos realizavam”, o Senhor respondeu: “Pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem padecido estas coisas?” Note que Jesus não disse que seria culpa dos galileus. Da mesma maneira, ele não atribuiria culpa dos eventos atuais somente aos “pobres” que constroem em lugar de risco nem aos “ricos” que permitem esse estado de coisas nem aos maus administradores “políticos”. Antes, ele disse que ninguém é menos pecador do que outros: “Ou cuidais que aqueles dezoito sobre os quais desabou a torre de Siloé e os matou eram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não eram...” A realidade, do ponto de vista de Jesus, era mais ampla, como ele continuou: “Mas, se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis”. Certamente, ele não quis dizer que todos seriam imolados ou que experimentariam morte catastrófica, mas, sim, que todos estamos sujeitos a uma ordem cuja realidade decorre da verdade de Deus e não de nossos juízos e planos redentores. É claro que, pela graça comum de Deus, sua bondade não é totalmente apagada da mente humana, e nós nos condoemos e procuramos ajudar. Contudo, mesmo nessa ajuda, há juízo e esperança de redenção. O crente quer defender Deus da acusação de maldade, o descrente reprime a noção da existência de Deus, maliciosamente, perguntando: “O seu Deus, onde está?”; o ecólogo autônomo põe a culpa no homem que agride a natureza, o político de esquerda, nos ricos, e, os ricos, nos pobres que constroem “em qualquer lugar”. Os crentes dizem que Deus é bom, os humanistas aproveitam para fazer discurso, e os poderosos pagam “para não perder o investimento”.

Como é que poderíamos obter clareza e paz de mente e de coração para enfrentar a miséria que está aí (contingente) e a bondade que é a única razão para a vida (necessária)? Talvez, se, do alto do morro vizinho à desolação (em que todos nós, espectadores preocupados, nos postamos) e do fundo do vale soterrado (em que choram os afligidos), voltássemos os olhos para Deus a fim de ver suas perspectivas, então entenderíamos a parábola de Jesus, na sequência do texto acima (Lucas 13.6-9). Um homem plantou uma vinha, entregando-a ao cuidado de um viticultor. Por três anos, não achando fruto, deu ordens para que fosse cortada, mas ouviu: “Senhor, deixa-a ainda este ano, até que eu escave ao redor dela e lhe ponha estrume. Se vier a dar fruto, bem está; se não, mandarás cortá-la”.

A primeira perspectiva dessa realidade é que o mundo não é o que deveria ser. Paulo, na carta aos Romanos 8.20-23, diz que “a criação está sujeita à vaidade [destituída de verdade e sem vigor], não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou”, aguardando ser redimida; “sabemos”, ele diz, “que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora”. Se esse fato não for levado em conta, nenhum juízo de responsabilidade e nenhuma contabilização de saldos, perdas e lucros corresponderão à realidade. Tenha isso em mente: o mundo não é como deveria ser; ele se encontra decaído desde a ocorrência do maior de todos os desastres: a queda, no Éden (Gênesis 3).

A segunda perspectiva é que nós também não somos quem deveríamos ser. No mesmo lugar, o apóstolo escreveu: “todos pecaram e carecem da glória (reflexo do caráter) de Deus” (Romanos 3.23). Isso implica que nossa visão está cerceada pela culpa do pecado e pela rebelião contra Deus, de forma que não apenas pensamos ao contrário da sua verdade, mas que nos colocamos em seu lugar como juízes e redentores para a situação. Não reconhecendo ao Deus que se revela, em níveis diferentes, na natureza e na consciência, na Bíblia e em Jesus Cristo, vivemos sob a maldição de considerar a presente realidade como sendo verdadeira, e de desconsiderar aquele que é o único Juiz e Redentor (cf. Romanos 1.18-32).

A terceira perspectiva é a da natureza da esperança, a qual não é a que deveria ser. De um lado, somos inundados pelo humanismo realista pessimista, que nos move morro abaixo nas encostas da “sobrevivência do mais apto” e da motivação da “instintividade humana” (quer dizer, “quem pode mais chora menos” e “eu quero levar vantagem em tudo”). De outro lado, somos soterrados pelo humanismo romântico, quem nos soterra sob os escombros da perfeição que deveríamos ser e da ânsia por uma salvação que pressentimos, mas que está fora de nossas mãos (que dizer, a felicidade existe, em algum lugar por aí). A perspectiva de Deus é uma de realismo com esperança. O bem existe, pois vemos resquícios dele, por exemplo, na solidariedade do povo; o mal também existe, pois está aí, no desastre da natureza e no oportunismo de alguns (que elevarão os preços e desviarão o socorro). Contudo, tal realidade não abala aquele que confia no Senhor, pois sua esperança não é uma de conforto e abastança, mas de graça e verdade. Isso, finalmente, nos leva à perspectiva seguinte.

A quarta perspectiva é trazida por Moisés, homem de Deus e estadista, cujo realismo com esperança ficou marcado como prova de fé (Hebreus 11.23-29). Nascido na escravidão, no Egito, sob uma lei real que legalizava o infanticídio, foi protegido pelos pais que não temeram o “decreto do Rei”, e criado em palácio real como “filho da filha de Faraó”; não obstante, rejeitou o otimismo dos ricos e o pessimismo dos pobres, preferindo a sorte com o povo de Deus “a usufruir prazeres transitórios do pecado... porquanto considerou o opróbrio de Cristo por maiores riquezas do que os tesouros do Egito, porque contemplava o galardão”. Foi libertado por Deus, juntamente com seu povo, da opressão do Egito para uma terra que não conhecia, mas que possuía mediante promessa do Senhor. Pela mesma fé, ele celebrou a páscoa que antecipava a obra de Cristo, atravessou o Mar Vermelho, e instruiu o povo para a conquista da terra. Sabedor de que não entraria na terra prometida, assim completou sua missão, por que era “firme como quem vê aquele que é invisível”.

Em cântico de oração, o Salmo 90, Moisés descreve sua experiência com Deus como o Senhor da história (“de geração em geração”) em virtude de ser ele o Criador: “Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus”. O contraste da sua visão do presente à luz da eternidade é mostra da convicção de que a palavra de Deus era verdadeira, e mentirosa toda perspectiva humana decaída. Os dias da terra nada são em comparação com a eternidade de Deus a que fomos chamados para viver. O mundo sem Deus fica à mercê da ira de Deus que se revela contra a rebelião humana, contra a inversão da verdade pela mentira, contra a elevação da autonomia humana. O homem sem Deus é arrastado na torrente como num pesadelo; é frágil como a relva que viça pela manhã e, à tarde, é consumida. Todas as nossas iniquidades, morais, pessoais e sociais, estão diante de Deus; os nossos dias estão todos diante do único Juiz de nossa consciência e de nossos atos. “Acabam-se os nossos anos como um breve pensamento. Os dias da nossa vida sobem a setenta anos ou, em havendo vigor, a oitenta; neste caso, o melhor deles é canseira e enfado”. A única maneira de aclarar a mente e acalmar o coração será por meio de saber que o maior desastre já ocorreu – o pecado – e que a grande esperança já se realizou: o Juiz e Redentor de nossas almas já cumpriu a promessa, sendo inundado por nossos pecados e soterrado pelas nossas culpas – ressuscitando para que vivêssemos.

Quem assim crê, sabe por que o mundo está sujeito a enchentes, terremotos, revoluções de classes e conflitos pessoais. Contudo, ele é saciado pela promessa de que, mais do que uma terra prometida, o Senhor está preparando um novo homem para essa terra. A grande pergunta é: somos servos de homens e de coisas, como pintos molhados no atoleiro, ou somos servos de Deus, na chuva e para se molhar, mas pessoas cujo caráter firme persiste na fortuna ou no infortúnio – porque contemplamos o que não se vê, mas que é real?

Wadislau Martins Gomes


Obs.: Um pastor da região, o Rev. Carlos Augusto, da Igreja Presbiteriana de Magé, presidente do Presbitério de Magé, está responsável pelos esforços de coleta e distribuição de auxílio aos sobreviventes, que se encontram em dificuldade. Eles esperam doações de roupas em perfeito estado, roupas íntimas novas; roupas de cama, mesa e banho; alimentos não perecíveis, velas, material de higiene pessoal, limpeza, etc. Esse tipo de material pode ser entregue ou remetido para o seguinte endereço: Avenida 02, No. 21, Jardim Novo Mundo, Magé.

Para doações em dinheiro - Presbitério de Magé (CNPJ 01.264.150-0001/75), Banco Bradesco, Agência 1546-6, conta corrente, 7806-9.


sexta-feira, janeiro 14, 2011

Amoraldo, um evangélico sem nenhum escrúpulo


Mostram-me uns “youtubs” com figurantes que eu conheço. Se houvesse testemunhado, eu não os exporia. Uns têm coisas que o apóstolo Paulo disse que são vergonhosas só de serem repetidas. Outras são tão desrespeitosas que fico vermelho de vergonha – no lugar dos envolvidos e dos distribuidores da infamação. Entretanto, por que está   feito, saio a campo para advertir e proteger incautas ovelhinhas de Jesus, para que chorem com essas piadas e riam com coisa melhor. Aí vai uma historinha que ilustra o porquê de tanta chocarrice (lembra desse termo?) em um meio que deveria ser sério e de tanto abatimento em um ambiente que deveria ser de contentamento.

Converteram-se à igreja evangélica depois de um período de insucessos financeiros. O casal que os convidara era líder do grupo de louvor. Amoraldo falava de boca cheia que sequer se lembrava da mensagem. Quando o pastor fizera o apelo para que fossem à frente os que quisessem uma oração “pelos negócios”, ele se viu de mãos dadas com Malamada a caminho “do altar”. Nem das palavras da oração tinha memória. Só sabia que a vontade de receber a bênção era tamanha que cerrou os olhos até ver faíscas coloridas “para dar partida na fé”. Durante a semana, resolveu experimentar e levou uma oferta à igreja; coisa pouca, pois não tinha “como” nem muita fé. No entanto, como disse o amigo, o do louvor, Deus ainda conquistaria aquele dízimo. Fato foi que a vida mudou. Vendeu um terreno por um total, pelo menos, vez e meia maior do que valia, fez mais contatos no culto de sucesso da quarta-feira do que no último semestre inteiro, e as vendas de cosméticos da companheira quase que dobraram. “Oh glória!” Breve, o dízimo saiu. Agora, Amoraldo, que não canta nem prega, arranjou um lugar no ministério de casais.
           
A igreja é uma dessas de passado tradicional, mas bem contemporânea, agora. Tem tudo o que é preciso para crescer: muito louvor, orações poderosas terminadas em Jesusss, apresentador carismático, mensagens curtas e “relevantes”, boa apresentação de mercado e daí em diante. “O bom”, diz ele, “é que nem parece igreja”. Não é dessas que dizem às pessoas o que fazer; “é só cumprir os votos, que Deus é fiel”.

Foi por falar em cumprimento de votos que Amoraldo e Malamada se sentiram desconfortáveis. Em conversa com a equipe do ministério de casais, alguém tinha usado uma ilustração: “são como os votos do casamento; se não forem cumpridos, a gente perde a bênção”. Seria essa a razão por que, em casa, os negócios não iam lá essas coisas? “Malamada e eu optamos por não casar no papel porque achamos que o amor não pode ser forçado. O senhor concorda?” Quem, eu? Detesto quando a pergunta vem assim, de cara; prefiro quando há um namoro antes; pelo menos, uns carinhos. Mas, como veio de chofre, dei corda: “Você quer dizer, espontâneo?” Ele foi rápido: “É isso, é isso” – e deu para ver o alívio sentido. Dei mais corda: “Tudo que é verdadeiro tem de ser voluntário, não é?” Ele titubeou. “Tudo, tudo, não; tem coisa que precisa ser forçada” – falou, amarrando a ponta solta. Amoraldo não era ingênuo como parecia. “Quando é que não precisa ser espontâneo?” – joguei a bola para o seu campo. “Ah, nos negócios, por exemplo.” Ele prosseguiu, dizendo que venda é uma arte, não é? Ninguém não poderá dizer tudo que sabe a respeito a respeito de um imóvel, condições do forro, situação da vizinhança; “senão não vende”.

Em um sentido, Amoraldo estava certo: existe isso de espontaneidade. O ponto cego, no entanto, é que, hoje, ela é uma virtude que perdeu a autenticidade. Depois do pecado, Adão e Eva se esconderam de medo, cobriram-se por causa da vergonha e mutuamente se desnudaram com acusações (cf. Gênesis 3.6-13). No lugar da boa qualidade ficou uma tendência natural para uma voluntariedade enganosa, que a Bíblia descreve como inclinação da carne; os pensamentos nos parecem genuínos, mas são resultados de um falso senso de justiça (cf. Efésios 2.3) – isto é, o sentimento de que, de alguma forma, fomos injustiçados. Parece-nos genuína, mas, na verdade, essa espontaneidade é usada para justificar a imoralidade dos nossos atos. Esse discernimento é vital para a verdadeira religião cristã.

– Amoraldo, você acha que é possível, para um crente, viver em dois mundos, o da verdade e o da mentira, o da bondade e o da maldade, o das boas e o das más obras?

– Isso eu aprendi na minha igreja: a Bíblia não tem aquela história de uma mulher, acho que Raabe, que foi elogiada por ter mentido para proteger uns israelitas? Às vezes, será preciso mentir. É como o ator que finge ser outra pessoa ou como o jogador que dribla o adversário. Sem mentir ninguém levará vantagem.

– Vamos separar as coisas. O ator desempenha para uma plateia que espera que a verdade da peça seja bem interpretada, e, no caso do jogador, tanto o oponente quanto a audiência esperam que ele faça a finta. Lembre-se, especialmente, de que Raabe não foi elogiada; antes, a Bíblia diz que ela foi justificada. Isso quer dizer que ela cometeu uma injustiça, mesmo que com boa intenção, e que Deus gratuitamente a perdoou, atribuindo-lhe sua própria justiça – e essa justificação vem da justiça de Cristo, que a conquistou para nós, na cruz.

– Pode ser, mas eu não vejo como isso diz respeito a Malamada e eu termos de nos casar no civil.

 Será que tem a ver com a leviandade no trato da palavra, do culto público, da intimidade conjugal, da honra aos que nos ensinam e do valor do valor do bom aprendizado? Mostramos duas caras, e isso têm causas e consequências. Sem dúvida, a Palavra de Deus orienta a que exibamos um coração transparente, mas isso nada tem a ver com mostrar os intestinos. Não fica bem nos tubes da vida nem na igreja.

– A questão, Amoraldo, é que as coisas que se passam nas situações particulares refletem a realidade do grande quadro da vida. Você não pode ser uma pessoa no casamento, outra na igreja e outra nos negócios. Você ama a quem ou àquilo a que sua vida é comprometida. Por exemplo, você venderia um terreno de alguém, sem nenhum documento de propriedade?

Entendo que a experiência da vida desprovida da glória de Deus é uma de falta de paz (cf. Romanos 3.23, 10-18) e solidão (cf. Mateus 19.6); separamos nossa vida da do nosso cônjuge, coisa que a Palavra não permite (cf. Gênesis 2.18); e separamos a igreja, do evangelho; enfim, separamos a vida cristã, como se fosse uma fantasia, da vida que achamos ser real. Contudo, a vida verdadeira é a que procede de Deus e suas virtudes têm de alcançar todas as suas áreas. Deus nos salvou da dissolução para uma inteireza de vida naquele que é a essência de todas as coisas, Cristo. Deus marca sua relação conosco com a adoção selada pelo Espírito e com o casamento da igreja com Cristo. É um pacto em que, por causa de sua graça, ele permanece fiel a despeito de sermos infiéis, e em que, nós, pela fé, temos de ser leais e obedientes – isso é amor. Ambas as marcas se aplicam à totalidade da vida – ao relacionamento com Deus e entre os homens.

– Sabe, Amoraldo, hoje, para ser evangélico basta entusiasmo e vantagem pessoal; mas para ser cristão verdadeiro, tem de haver no peito mais do que simples ar. O amor de que o evangelho fala é um de compromisso, de fazer o bem e de elevação do caráter – primeiro em relação a Deus e, depois, em relação ao próximo da mesma maneira que a nós mesmos.

– Querido, você me ama de verdade? – Malamada sempre leva as coisas para o lado pessoal...

Wadislau Martins Gomes

terça-feira, janeiro 04, 2011

AS TRÊS CARETAS DO MAU DESEJO

Ira e Desamor Natura tiveram três filhas feias como o pecado: Ciúme, Inveja e Cobiça. Ciúme até que era passável; a verruga na cara, diziam as tias Ressentimento e Amargura, dava-lhe um ar de zelo amoroso. Inveja, a do meio, não apenas tinha a boca riscada como traço de desenho infantil, mas o nariz de batata se abria em narinas estufadas, ora congestionadas ora pingando como torneira com carapeta vencida. Cobiça, a mais velha, achava que era bela, mas a coisa ficava pior; tinha os olhos voltados para o lado, dissimulados, e os braços compridos pareciam tentáculos que se moviam insatisfeitos. Ciúme se casou, mas, como não podia controlar a vida do marido, também não conseguia confiar nele; o casamento acabou logo, e ela voltou para a casa dos pais . Inveja não se casou nunca; ficou a ver os maridos de mulheres mais venturosas; alegrou-se quando a irmã voltou para casa com uma mão atrás e outra na frente. Cobiça também não se casou, mas (como direi?) encheu-se de aventuras; primeiro se juntou com aquele negociante e proprietário (mas, você sabe, com o preço dos insumos...); depois, foi com o profissional liberal, “ficou” com o facultativo, o informal... até que se cansou. As três foram morar no mesmo quarto, entre o dos pais e o das tias. O relacionamento não era lá essas coisas. Ira e Desamor sentiam-se abusados porque nem as parentes de lado nem as de baixo pagavam aluguel, pouco ajudavam na casa, e comiam como quê! Ressentimento e Amargura sentiam-se donas da casa, pois estavam lá há mais tempo, e achavam que as meninas seriam umas sanguessugas dos pais. As três donzelas frustradas faziam caretas estranhas e gozadas a cada vez que uma reunião se tornava necessária (aniversário, enterro e coisa e tal).

Em suma, a família era dominada pelo mau desejo, mas mantinha um tipo de acordo não verbalizado, de manter as águas calmas. O septeto conseguia, por algum tempo, cumprir o código do silêncio. Entretanto, as águas calmas na superfície escondiam fundos de lodo que as novelas da TV, os jornais e as conversas dos vizinhos teimavam em levantar. Chegou uma hora em que os sete tiveram de sanear o lago, oxigenar a água parada. Foi aí que ouviram dizer que havia uma igreja nas proximidades, prometendo paz sem igual. Paz é bom, pensaram; e lá foram, em roupa de domingo, sorriso encomendado para fotografia e a expectativa dos visitantes. A falta de jeito ficou por conta da primeira vez; não sabiam se e quando deveriam se levantar ou sentar. Contudo, logo se deixaram conquistar pelo calor dos “irmãos”, pelo ânimo dos “cânticos espirituais” e pelo entusiasmo do “pregador”. Esse pastor João de Deus da Silva tinha um carisma que jamais haviam visto igual. Falava de Jesus Cristo como se o tivesse conhecido. O certo é que, depois de um tempo, até em casa a coisa mudou. Aprenderam a orar pela manhã, à tarde e à noite. A Bíblia, então, era um apoio: começaram a viver “pela fé, em nome de Jesus!”

O que não sabiam, porém, é que a igreja é o pior lugar para manter a paz quando não existe paz. No início, Desamor comprou rosas para Ira; Ira cobriu a mesa com toalha nova e experimentou receitas daquela loira da TV; Amargura se comportou à mesa como uma dama e Ressentimento levou o guardanapo à boca para cobrir o arroto disfarçado de pigarro; Ciúme, Inveja e Cobiça, até mesmo, lavaram as mãos antes de se assentarem para comer. Era a paz! Passaram a se chamar, carinhosamente, de Irene, Momô, Marinha, Ressecê, Ci, Ive e Bibi. Mas, como disse o Drummond de Andrade, “se me chamasse Raimundo, seria uma rima, não uma solução”.

Um ano depois, já se sentiam “em casa” em qualquer atividade da igreja. Lá em casa, as cortesias voltaram a seguir o código do silêncio, mas aprenderam a conviver por meio da isolação em grupo. Na igreja, Momô tinha lá algumas pessoas com quem não “ia com a cara”; Irene achava uma injustiça que todos tivessem seus ministérios e que Momô ainda fosse considerado neófito (“Sei lá o que é isso, mas não acho certo”); as três graças, Ci, Ive e Bibi, eram as únicas que trabalhavam em silêncio e, se não gostavam, engoliam as coisas seguidas de um bom copo de água; Mara e Ressecê descontavam na reunião de oração (“Senhor, ajuda” fulano e beltrano, “a deixar” tal e tal “pecado”). Logo, tinha gente, em privado, pedindo a Deus que ajudasse os Natura. Uma, mais despachada, franca que nem o soluço da carne, abriu o jogo: “Vocês precisam de um reavivamento” – que quer dizer que precisavam entrar no sistema de vida da igreja. O clima natural “pegou” como epidemia de resfriado. Não demorou muito para que aquelas águas também ficassem poluídas: os desejos postos em outros deuses esculpiram imagens de necessidades insaciáveis, em nome das quais (e não de Deus), as pessoas procuravam, sem descanso, obter autoridade sobre todos; as consequências foram aquelas que já conhecemos – tentavam obter autoridade por meio de “espiritualidades” marotas, matavam (“Ai, que ódio!”), adulteravam (“Que é que tem, boba; todo mundo faz!”) roubavam (“Ei! É meu direito!”), davam falso testemunho (“Eu, defendê-lo? É um pecador...”), e faziam planos para satisfazer a cobiça (“Ah! se apenas eu...”).

Um dia, o pastor João de Deus chamou de lado a um dos homens experientes na vida cristã, João Evangelista, e pediu que “desse um jeito”. E lá foi o pobre de espírito, esposa do lado e Bíblia na mão. O bom é que ele tinha a Bíblia também no coração. Dois dedos de conversa, e descobriu que os Natura não haviam tido nenhuma experiência com o amor e a justiça de Deus.

– Mas não temos ido à igreja já há mais de ano?

Pomba de coração e serpente na astúcia, o experiente levou-os aos relatos bíblicos da libertação do povo, da escravidão do Egito, e dos quarenta anos no deserto até que tomaram posse da terra prometida.

– Uma geração inteira precisou morrer para que o povo entendesse a promessa de uma nova vida.

– O quê? Que geração é essa que terá de morrer? – As sobrancelhas circunflexas enfatizaram a pergunta, e pais, irmãs e tias cruzavam olhares temerosos e temidos.

– Toda uma geração de pecado – respondeu, especialmente os pecados a que nos acostumamos. Para nascer de novo – continuou o experiente – é preciso conhecer a paz com Deus por meio da morte e da ressurreição de Jesus Cristo.

– Ué, já não somos crentes?

– Entendam isto: todos nós, por natureza, estávamos separados de Deus por causa da nossa rebelião e inimizade. Assim, segundo o plano para nos salvar e adotar em sua família, Deus enviou seu Filho, Jesus Cristo, para morrer a morte a que estávamos condenados e para ressuscitar a fim de que recebêssemos de sua vida. Deus fez tudo o que era preciso para que experimentássemos isso. De nossa parte, só temos de aceitar essa dádiva de maneira autêntica, isto é, com a fé verdadeira que é demonstrada pelo arrependimento, e gozar a segurança e o poder do Espírito Santo para viver a vida cristã.

– Mas a gente tem fé, disse um.

– E arrependimento, completou outra.

A isso, o experiente Evangelista apôs:

– Fé e arrependimento não são termos “igrejeiros”, mas, sim, uma completa rendição diante de Deus, acatando a sua Palavra como o poder a que temos de obedecer mais do que obedecemos nossos próprios desejos.

Para tornar curta uma conversa longa, a experiência que a pessoa tem de ter com Deus, qualquer pessoa, nós e os Natura, deverá tratar de algumas questões fundamentais. Primeiro, temos de saber que nossa fé é baseada no fato de que “Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.16). Segundo, temos de entender que esse amor é experimentado quando nossas questões quanto à ira de Deus são resolvidas mediante o arrependimento que reconhece que Deus “se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça” (Romanos 1.18) e que Jesus Cristo fez a paz entre nós e Deus, conferindo-nos sua própria justiça. Terceiro, essa paz implica que não podemos abrigar amargura ressentida em nosso coração, sob pena de não vivenciarmos fé e arrependimento (Hebreus 12.14-17). Quarto (como está escrito em Efésios 4.21-32), todo convertido tem de ouvir a Deus e àqueles que ele designou, e ser ensinado a examinar o próprio coração, a fim de despojar do “velho homem” e renovar o “espírito do... entendimento”, revestindo-se de Cristo. Não bastará tentar uma cara de verdade e guardar ciúme por dentro (a gente acaba achando que é franco quando, de fato, é julgadora maledicente); será preciso pertencer a Cristo e à sua igreja. Não bastará fingir piedosa docilidade enquanto o coração resfolega ira como a antiga “maria fumaça”; será preciso resolver a ira sem dar tempo à amargura e ao ressentimento nem dar lugar ao diabo. Não bastará deixar de furtar coisas e deveres mútuos, mas será preciso trabalhar para se sustentar e ainda ser generoso. Enfim: “Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas só a que for boa para promover a edificação, para que dê graça aos que a ouvem. E não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual estais selados para o Dia da redenção. Toda amargura, e ira, e cólera, e gritaria, e blasfêmias, e toda malícia seja tirada de entre vós. Antes, sede uns para com os outros benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo”.

Os Natura? Só vendo! Irene chama o marido de meu amor e ele devolve com “meu bem”, e sequer levantam o riso da família. Ressecê e Marinha estão uns amores: “Precisam de alguma coisa? Em que posso ajudar”. Ci, Ive e Bibi esbanjam uma beleza de coração que até o rosto aformoseia. E sabe o quê? Dá gosto ir à igreja!
Wadislau Martins Gomes