segunda-feira, novembro 16, 2015

O CARPINTEIRO


São José Carpinteiro, Georges de La Tour, Louvre
 
Depois de longo período de doença, meu marido vai recuperando as forças, desejoso de voltar às atividades. Continua com a mente ágil e fértil, mas tudo parece acontecer a passo de lesma, e os pensamentos surgem mais lerdos, ponderados e pesados. O progresso é medido por um passo para frente, dois para trás, dois passos para frente, um para trás, e enfim descobrimos um pouco de progresso a cada dia. Meu marido passou meses na cama, impossibilitado de andar. Passou a dar alguns passos e começou a progredir fisicamente, mas a fraqueza e a dor estavam tão presentes que esquecia tudo mais. A vida girava em torno de três assuntos sempre presentes: infecção insistente e difícil de ser debelada, fratura de duas vértebras, fraqueza generalizada. Esses assuntos causavam dor insuportável. C. S. Lewis chamava a dor de “megafone de Deus”, mas na hora que estamos ouvindo barulho insistente desse alto falante, muitas vezes, queremos tapar os ouvidos ao som. Outro pensador disse que a doença é bênção disfarçada, mas tenho que admitir que, às vezes, eu achava difícil imaginar a bênção debaixo do disfarce acre e cansativo que pairava sobre nós vinte e quatro horas por dia.

Esta experiência lembra muito minha própria vivência cristã, em que, como o apóstolo Paulo fez em Romanos 7, confesso que não consigo tudo o que pretendo — “em mim... não habita bem nenhum, pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo”.

 Antes desta experiência, eu romantizava um período de estada hospitalar como oportunidade de descansar dos afazeres normais, ter mais tempo para ler a Bíblia e orar, aprofundar as raízes da leitura, da meditação e do pensamento. Nada disso. Insônia ou sono picadinho em terreno estranho não é descanso—nem para o paciente nem para seu companheiro (no caso, sua companheira 24 horas por dia: euzinha).

Somos gratos porque em meio às perguntas e incertezas de cada momento, uma presença não nos deixou: o sopro suave da voz de Deus por sua Palavra e seu Espírito. Ele sussurrava no meio da barulheira de atendentes levando macas de um lado para outro, ao elevador de um andar para outro lado, enfermeiros procurando veias viáveis para mais uma injeçãozinha que não vai doer naaada, pessoas trabalhadoras no hospital, desde médicos fatigados por plantões e miríades de pacientes, enfermeiras habilidosas, atendentes impacientes. Mas tenho de confessar que nem sempre eu estava disposta a ouvir sua voz. De vez em quando usava o artifício de quem precise de aparelho auditivo para ouvir com clareza e não querer escutar: tirar o aparelho e só ouvir o que me agradasse.

Passaram as fases de cadeira de rodas, auxílio para banho, bebidas no copo de canudinho. O primeiro período de “cuidados em casa” não pôde ser em nossa casa, mas no apartamento de estudante de nossos netos, aonde vinha enfermeiro/a duas vezes por dia para aplicar medicações, e recebíamos com um pouco mais de liberdade a visita de alguns irmãos em Cristo—até que a desconfiança de uma infecção mais séria nos levou de volta ao hospital. Todo o tratamento se intensificava, repetia, mudavam algumas medicações—e foram longos meses antes que pudéssemos ir para nossa casa, onde Wadislau conseguia mais mobilidade com o auxílio de bengala.

Em nossa própria casa, primeiro foram dias em que ficávamos sentados na varanda ou no banco do jardim, conversando, lendo a Bíblia, orando, observando as aves e as flores, sentindo o cheiro do capim recém cortado e o perfume de tudo. O enfermeiro de home care só vem uma vez por dia aplicar a medicação no cateter. O corinho que vinha à mente era o do arco da velha: Sempre melhorando, sempre melhorando... Mas a realidade era um passo pra frente, dois passos para trás...

Hoje a melhora é visível.  Wadislau não tem mais cara cinzenta de quem está com um pé na cama e outro na cova. A inquietação saudável faz parte do dia a dia. Ainda há necessidade de longos períodos de descanso. A cabeça não está a mil por hora, mas está funcionando – e o coração (o cerne da alma, como também o órgão que manda sangue para  o corpo inteiro) alegre aformoseia o rosto. Há uns sons antes raros: marteladas, lixadas constantes, serrote e furadeira elétrica – sons de madeira e de materiais para transformá-la em coisa mais elaborada. São sons de lixa, lima, grosa, madeira velha e tosca transformada em construção de sonhos, de criação de objetos úteis e recriação da vida que estava em pausa. Hoje a vida pulsa: o coração está a 12 por 8 e a oficina temporária em que nossa área de churrasqueira se tornou tem um homem que se alegra em pregar, serrar, cortar e amarrar, pensar e fazer.

 Ainda são poucas as ocasiões em que prega a palavra em público—nas três primeiras pregações em seu “retorno” à igreja (se bem que na verdade nunca saiu dela), pregou sentado. Mas na mais recente, pregou a palavra de Deus em pé, com força, como Salomão descreve:Procurou o Pregador achar palavras agradáveis e escrever com retidão palavras de verdade. As palavras dos sábios são como aguilhões, e como pregos bem fixados as sentenças coligidas, dadas pelo único Pastor” (Eclesiastes 12.10-11).

De vez em quando, vindo trazer-lhe café ou um suco, vejo meu marido em sua tarefa de marceneiro pegar, com uma comprida pinça um objeto que caiu no chão ou buscar outro que não está à mão, eu penso que meu papel de auxiliadora mudou: sou um pouco ajudante de um carpinteiro como foi o Mestre dele e meu.

Lembrei que as referências a Jesus como carpinteiro, de Mateus e Marcos, têm pequenas diferenças de perspectiva. Em Mateus, os judeus perguntavam de Jesus: Não é este o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos, Tiago, José, Simão e Judas?” (Mt 13.55). Já Marcos relata que Jesus acabara de pregar na sinagoga, e os judeus “ouvindo-o, se maravilhavam, dizendo: Donde vêm a este estas coisas? Que sabedoria é esta que lhe foi dada? E como se fazem tais maravilhas por suas mãos? Não é este o carpinteiro ...?” Com certeza Jesus jovem aprendeu de seu pai adotivo, José, o ofício de carpintaria. Todo estudante e praticante da Palavra, na cultura judaica, tinha de ter também um ofício prático com que ganhar a vida, e a carpintaria passou de José para Jesus. Mais do que uma estrutura de casa, uma porta bem firmada, uma mesa para uma família ativa compartilhar o pão, ou mesmo um bom cabo de machado—o carpinteiro usava suas ferramentas para burilar e aperfeiçoar objetos úteis que eram sólidos sonhos das pessoas.

Quando estudávamos no Seminário Palavra da Vida, os homens recebiam aulas práticas de marcenaria com o missionário Haroldo Reimer, que era também professor da matéria de “Vida de Cristo”. Wadislau aprendeu naquela oficina de marceneiro muita coisa de vida cristã – e confeccionou os primeiros móveis de nossa casa de estudantes no instituto bíblico. Com o passar dos anos, Lau sempre usou o que aprendeu inicialmente com Haroldo. Produziu mesas, poltronas, biombo, cadeira de preguiça, uma casinha de boneca de Susi para nossa filha, armário e muito mais. Haroldo Reimer, atualmente aos noventa anos, ainda toma madeira tosca e cria grandes e pequenos objetos de uso e de arte. Acho belo o testemunho do carpinteiro/marceneiro/fotógrafo/evangelista e pregador do evangelho ancião, que transmitiu a outros missionários e pastores/mestres que hoje passam adiante o bastão para ainda outros discípulos. Foi na aula de carpintaria que Wadislau, jovem, cortou o dedo na plaina elétrica, mas recuperou o uso e ainda aos setenta anos tem mãos ágeis, toscas e ternas, que formam coisas belas. Atualmente o “belo” é uma bancada de marcenaria que custaria mais de novecentos reais se comprada em loja especializada.  Está praticamente pronta.

A história do Carpinteiro iniciou numa manjedoura e culminou numa cruz. Queira Deus nossa história inicie na adoração do menino na manjedoura e mantenha em vista os sofrimentos e a glória da cruz, tempo sem fim!

Elizabeth Gomes

sexta-feira, outubro 30, 2015

MULHERES REFORMADAS QUE MUDARAM MINHA VIDA


 

Ao lembrar a Reforma Protestante—a maior força para avivamento na igreja cristã depois de Pentecostes—penso em duas mulheres, auxiliadoras idôneas, que forneceram as condições emocionais e práticas aos maiores reformadores para conduzirem a igreja à Palavra de Deus e à vida de piedade. Em anos passados, li várias biografias de grandes mulheres, mas, para este artigo, limitei-me ao livro de James Good, Grandes Mulheres da Reforma, cuja leitura recomendo a todos os interessados na história.

O que disseram, a respeito de suas esposas quase anônimas, estes homens que transformaram o mundo? Lutero, sobre Frau Luther, Katherina Von Bora:

Minha querida Kathe me mantém jovem, e em boa forma também... Sem ela, eu ficaria totalmente perdido. Ela aceita de bom grado minhas viagens e quando volto, está sempre me aguardando com alegria. Cuida de mim nas minhas depressões e meus acessos de cólera. Ela me ajuda em meu trabalho, e acima de tudo, ama a Cristo. Depois dele, ela é o maior presente que Deus já me deu nesta vida. Se algum dia vierem a escrever a história de tudo que tem acontecido (a Reforma), espero que o nome dela apareça junto ao meu. Eu oro por isso...

Nascida em 1499, filha de um nobre alemão que passava por dificuldades financeiras, Katharina foi levada ao convento beneditino, aos três anos. Martinho escreveu um ano depois de casado:

Minha Kathe é, em tudo, tão delicada e encantadora que eu não trocaria minha pobreza pelas maiores riquezas do mundo... não há na terra um laço tão doce, nem uma separação tão amarga, como a que ocorre num bom casamento... Não há relação mais bela, mais amável e mais desejável, nem comunhão e companhia mais agradável, do que a de marido e mulher num casamento feliz.

O prédio do mosteiro agostiniano de Wittenberg foi dado de presente a Lutero em 1525, e Katharina o reformou e administrou o novo lar. Isso permitiu que Lutero gozasse de relativa paz e ordem em sua vida privada. Dedicada e diligente, Kathe era uma auxiliadora que propiciava a seu marido condições de escrever, ensinar e pregar.

Tiveram seis filhos, dos quais quatro sobreviveram até idade adulta; cuidavam de uma parente de Katherina, e com a morte da irmã do reformador, passaram a cuidar de mais seis crianças em sua família. Além dos familiares, era comum haver mais de 30 pessoas no mosteiro, entre hóspedes, viajantes em trânsito e estudantes (que pagavam por seus estudos, ajudando a equilibrar o orçamento). Tarefas do dia a dia: uma horta, um orquidário, confecção de material para pescaria e uma pequena fazenda onde criavam gado, galinhas e fabricavam cerveja caseira. Katarina gostava de ler e de bordar; tinha conhecimento de enfermagem e dispensava cuidados médicos ao reformador. Fazia estudos bíblicos devocionais e memorizava muitas passagens específicas. Quando Lutero estava deprimido, Katherina sentava a seu lado e lia a Bíblia para ele. Lutero considerava o casamento a melhor escola para moldar o caráter, e a vida familiar como meio excelente e apropriado para treinar e desenvolver as virtudes cristãs de firmeza, paciência, bondade e humildade.

Madame Calvin, Idelette de Bure e seu marido John Storder eram anabatistas refugiados de Liege, na Bélgica. Foram convertidos à reforma e faziam parte da igreja de Calvino em Genebra. Depois da morte do marido, tendo ela dois filhos, Idelette chamou a atenção de Calvino por sua piedade, atenta delicadeza, ternura e poder de auto-sacrifício como esposa, viúva e mãe. Calvino propôs-lhe casamento e, sendo aceito, uniram-se em matrimônio em primeiro de agosto de 1540, numa cerimônia grande e concorrida. Seu lar em Genebra, e durante algum tempo em Estrasburgo, tornou-se centro de emergência para refugiados vindos da França e Bélgica, morada para diversos teólogos e estudantes de teologia. Cuidava deles ao lado do leito, apoiando-lhes a cabeça cansada; visitava os enfermos, confortando os que passavam por sofrimentos. Perdeu, ainda bebês, os filhos que lhe nasceram, e Calvino disse que embora não tivesse nenhum filho natural vivo, Idelette possuía miríades de filhos espirituais ao redor do mundo cristão.

A vida de casados de Calvino e Idelette durou apenas nove anos; ela morreu sabendo que Calvino cuidaria dos seus filhos como se fossem os seus. Escrevendo sobre Idelette a Farel e a Viret, Calvino disse:

A excelente companheira de minha vida, e sempre fiel assistente de meu ministério... Eu perdi aquela que nunca teria me abandonado, fosse em exílio ou miséria, ou na morte. Ela foi uma preciosa ajuda para mim, e nunca se ocupava demais consigo mesma. A melhor das minhas companhias foi tirada de mim... Eu sei quão dolorosas e devastadoras são as feridas causadas pela morte de uma excelente esposa. Quão difícil tem sido a mim governar os meus sofrimentos.

Ambas essas mulheres tiveram a vida planejada e interrompida por outras pessoas, sofreram enormes perdas e simultaneamente trataram o coração coram deo (diante de Deus) enquanto lidaram com a dor pessoal. Trabalharam incansavelmente ajudando a outros. Abraçaram a justificação pela fé, aprenderam o que era uma vida piedosa por serem eleitas de Deus. Cultas, de fina educação, o casamento com os respectivos reformadores era surpresa para todos que os conheciam. Aos 18 anos, Katherina juntamente com outras freiras ouviram falar do ensino bíblico de Lutero. Crendo no que ele pregava, desejaram abandonar a clausura. Não obtendo ajuda de seus pais no sentido de livrá-las dos votos, decidiram enviar a Lutero uma carta redigida pela Katharina. O reformador pediu ajuda a um amigo negociante que abastecia o mosteiro com alimentos. Este Herr Koppe ajudou-as a fugir, transportando as doze noviças em barris de peixes! Muitas delas retornaram às suas famílias. Lutero procurou auxiliá-las a encontrar moradias, maridos e empregos. Dois anos depois da fuga, quase todas haviam seguido seu destino exceto Katharina, que morou na casa do pintor Lucas Cranach, autor do seu famoso retrato. Vários pretendentes ao casamento surgiram, mas ela dizia: “Só me casarei com Dr. Lutero ou com alguém muito parecido com ele”— ao ouvir isso Lutero ria, pois apesar de ele condenar o celibato, afirmou que “nunca farão com que eu me case”! Acabou propondo-lhe casamento e ficaram noivos em 13 de junho de 1525, celebrando o matrimônio doze dias depois.

Tanto a Sra. Lutero quanto a Sra. Calvino tinham qualidades semelhantes de piedade e amor à Palavra de Deus, disposição e garra em meio a grandes sofrimentos, habilidades administrativas que propiciavam ao marido condições de desenvolver seu ministério profícuo de pregação, e ensino e extensa produção literária. Os dois reformadores sofriam muitas dores e depressões, e parece que as duas esposas eram hábeis em apoiá-los e ajudá-los a superar os dias mais negros. Ambas administravam casas cheias, com múltiplas atividades, multiplicando recursos esparsos para adornar a vida dos servos de Deus. Enquanto Katharina teve oito filhos, Idelette não viu nenhum filho de Calvino viver para crescer, mas ambas foram mães prestimosas que abrigaram no coração a outros filhos. Eram mulheres simultaneamente comuns e extraordinárias em sua época. Seus casamentos, antes julgados com reserva por parte dos reformadores bem mais velhos que elas, deram significado e rumo à vida cristã de cada um. Tais uniões teve repercussões que até hoje marcam a vida da igreja sem que elas mesmas tivessem posições ou cargos de mando e ensino. Tanto Katherina quanto Idelette, que morreram em países e culturas diferentes, quatro anos à parte (a alemã, em dezembro de 1552, a suíça, em abril de 1549) viveram na simplicidade de sua fé e elevada esperança, como companheiras à altura de Lutero e de Calvino. Disse Katherina Von Bora: “Tudo que tenho feito se resume simplesmente a duas coisas: ser esposa e mãe, e tenho certeza que uma das mais felizes de toda a Alemanha”.  (James Good, Grandes Mulheres da Reforma, trad. Anna Layse Gueiros, Ananindeua, PA: Knox Publicações, 2009)

Hoje muitas mulheres engajadas juntamente com seus maridos na vida da igreja poderiam aprender com estas mulheres que viram o mundo passar da idade medieval para a era das grandes reformas. Eram fortes na fé e firmes na esperança, mesmo que a saúde e as intempéries da vida as fragilizassem. Eram auxiliares idôneas de seus maridos solitários, que demonstraram coração temente a Deus e mudaram o pensamento do mundo em que viviam. Na condição de enclausurada, refugiada, freira fugida ou de viúva perseguida por sua fé— elas não esperavam que as outras pessoas resolvessem as coisas: sua confiança em Deus fez com que estivessem atentas aos acontecimentos no mundo e ativas em mudar as circunstâncias que podiam mudar, dependendo da providência de Deus enquanto agiam lado a lado com o reformador que admiravam. Ah! que voltemos, nós mulheres de homens de Deus do Século XXI, a essa vida de piedade atuante que é o evangelho!

Elizabeth Gomes

domingo, outubro 11, 2015

REFUGIADOS, IMIGRANTES, APÁTRIDAS, CIDADÃOS


 
As notícias continuam nos chocando, revoltando e deixando ora condoídos ora endurecidos. Centenas de pessoas expulsas de suas terras, suas casas, suas nações, fogem em navios superlotados. Muitos morrem no caminho, afogados, atirados ao mar ou apanhados por seus perseguidores. As nações do “Primeiro Mundo” têm reações perplexas, de descaso ou indignação, com a chegada das hordas de gente vindas do antigo mundo oriental. Hungria fecha suas portas. Alemanha recebe-os de braços abertos. França se preocupa com a invasão muçulmana de suas terras, de seu status quo.
O Brasil, tradicional abrigo para claros imigrantes da Alemanha e Itália que construíram o progresso do país, para os japoneses que a mais de século atuam enriquecendo a terra onde fincaram os pés e plantaram fartura, dos comerciantes e profissionais liberais de variadas origens: judeus, árabes, libaneses, gregos e troianos de todas as nações – recebeu-os de braços abertos, implorou que viessem explorar suas vastas terras, adotou muitos de seus costumes e os assimilou.  Mesmo quando não uma terra de exploradores, somos uma nação de imigrantes.
Tomamos, sem escrúpulos, as terras dos habitantes de nosso imenso Brasil pré-colonial, expulsando, subjugando, dizimando gês, tapuias e tupis – e paraguaios – fazendo das riquezas auriverdes nossa própria “descoberta” e possessão. Trouxemos navios negreiros da África para desenvolver nossas lavouras e laborar em nossas vilas, sem pensar nos que morreram no caminho, ou na chibata e no cativeiro dos grandes engenhos. Mas hoje temos receio que os haitianos tirem nosso lugar de deitados eternamente em berço esplêndido, os coreanos desbandem nosso comércio, os palestinos sejam todos terroristas infiltrados, prontos para derrubar e arrasar a precária estabilidade que conquistamos a duras (ou leves) penas. Hoje vivem no Brasil 7,289 refugiados reconhecidos, vindos de 81 nacionalidades distintas (veja o artigo de Elben César: “Eu era estrangeiro e vocês me receberam no Brasil” da revista Ultimato de setembro-outubro 2015). Na verdade, somos todos forasteiros, imigrantes orgulhosos de ser donos da terra que tiramos de outros. E tememos, com pavor e desprezo, que outros façam a nós como os nossos ancestrais fizeram aos que os antecederam.
Descobrimos que o atual desbandamento de pessoas tem nuança teo-referente. Muitos dos que estão sendo expulsos mundo fora, pelo Estado Islâmico,  por Alcaida ou outro grupo impulsionado pelo ódio, o são por serem chamados cristãos (e nesse saco de gato está qualquer um que não declare ser maometano). Também existe perseguição étnica—sempre o judeu é persona non grata a quem querem empurrar para o mar—mas essa perseguição é sobremaneiramente religiosa. Em nome de Alá o Poderoso, confiscam, tiram os filhos, matam, queimam, estupram as mães (crime aceito pelo Alcorão desde que cometido contra mulheres não islâmicas) e fuzilam ou enforcam os que não se curvam a essa fúria.
Estamos tão acostumados à violência em nosso próprio país que fechamos os olhos para o que acontece com nosso próximo. “Não vamos nos intrometer. Não é de nossa conta,” dizemos— seja em nosso Brasil onde morrem milhares todo ano, seja no Oriente Médio, na África, Somália ou Paquistão. Existe em nosso meio uma “fadiga da compaixão”, ou cansaço em condoer-se com quem sofre.
Em Filadelfia dos anos oitentas, tive amizade com Hugo Rosenau e esposa, judeus alemães, ele sobrevivente de Auschwitz, que se aproximou de mim por causa da língua portuguesa. Depois da libertação, Hugo e outros amigos, foram conduzidos ao Brasil, à Bahia, onde foram bem-recebidos e de onde tiveram condições de emigrar para os Estados Unidos. Disse ele que tinha uma dívida de gratidão aos brasileiros, e daí foi que começou nossa amizade: um velho beirando oitenta anos e, na casa dos quarenta, um pastor brasileiro e sua mulher. Ele tinha também tamanha gratidão aos Estados Unidos, onde ele refez sua vida, que anualmente fazia uma contribuição em dinheiro, além de pagar seus impostos, “para a nação que nos abrigou depois da guerra”. Hoje o presidente dessa nação vista anteriormente como cristã fica calado quanto  à perseguição dos cristãos da Síria, Iraque e Afganistão.  E a president(a) do nosso Brasil mostra claros sinais de apoio aos déspotas islamitas em detrimento dos cristãos que eles perseguem.
Num mundo onde mais de 1,6 bilhões de pessoas consideram-se muçulmanos, nós que cremos em Cristo estamos rapidamente perdendo espaço, e vemos a olho nu que o mundo jaz no maligno. Claro que nem todo islamita é mau, no sentido de maldade terrível e absoluta, assim como nem todo “judaico-cristão”  é bom – somos todos, todo mundo, decaídos, depravados e desprovidos da glória de Deus, e a não ser que nos convertamos, tão perdidos quanto Sadam Hussein ou Adolph Hitler (que já encontraram seu destino). .
Recentemente, compartilhei um comentário de Michael Horton dizendo que somos todos peregrinos perdoados, a caminho  da cidade construída por Deus. Somos forasteiros e nossa pátria não é aqui –tal entendimento faz com que seguremos as coisas da terra bem de leve, e fixemos os olhos naquilo que é eterno. Simultaneamente, amamos a terra em que vivemos, cuidando dela e sempre buscando cuidar de seus habitantes. Temos prazer em nossa condição de embaixadores de outro reino a que convidamos nossos iguais a participar. Vivemos em tensão ou equilíbrio entre nossa condição de redimidos já e agora, ao mesmo tempo que ainda não vimos o que Deus tem preparado para aqueles que o amam. Não somos chauvinistas nem xenofóbicos – amamos o próximo e o respeitamos como co-criado à imagem de Deus, queremos bem a terra em que vivemos, e sofremos com suas dores e desmazelas—mas nossa pátria não é aqui, e aguardamos uma habitação onde nosso visto de residente permanente nos transforma em amigos, filhos e herdeiros com Cristo. As nações mudam, e os povos ora opressores tornam-se oprimidos quando até mesmo suprimidos. Os cananeus que eram pedra nas sandálias dos judeus antigos já não existem. A babilônia que dominou o mundo conhecido por Daniel foi derrubada, e hoje a nação islâmica quer derrubar até suas antigas ruínas. O império romano não impera mais. As hordas de hunos, godos e visigodos continuam invadindo a civilização ocidental, e as civilizações orientais também foram arrasadas e transformadas pela modernidade e pós modernidade. Para muitos hoje, orgulho nacional é piada. Mas existe algo – Alguém – que não muda: o Deus Eterno, criador dos céus e das terras.
O profeta Isaías viveu sob os governos de quatro reis de Judá, dias conturbados que descreveu como hoje poderiam ser descritos os nossos dias:
Os teus príncipes são rebeldes e companheiros de ladrões. Cada um deles ama  o suborno e corre atrás da recompensa. Não defendem o direito do órfão, e não chega perto deles a causa das viúvas.... Is 1.23
Ai desta nação pecaminosa, povo carregado de iniquidade, raça de malignos, filhos corruptores... Toda a cabeça está doente, e todo o coração enfermo. Desde a planta do pé até a cabeça não há nele coisa sã, senão feridas, contusões e chamas inflamadas, umas e outras não espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo. A vossa terra está assolada, as vossas cidades consuidas pelo fogo... e a terra se acha devastada como numa subversão de estranhos, deixada como choça na vinha, como palhoça no pepinal, como cidade sitiada... quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue. Is 1.4-7
Depois do terrível diagnóstico, o senhor faz um convite:
Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos, cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem: atendei à justiça, repreendei ao opressor, defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas... ainda que vossos pecado sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve... se quiserdes e me ouvirdes, comereis o melhor desta terra... Is 1.16-18
A mAA maior ameaça para o reino de Judá do ano 724 não era a invasão Assíria, mas o pecado, a desobediência e falta de fé em Deus. Isaías viu seu povo sofrer a desgraça e humilhação do cativeiro, e garante que o Deus da história os trará de volta para que comecem vida nova e desempenhem sua missão de ser uma bênção para todas as nações da terra. Em meio as promessas de Emanuel e do retorno, Isaías mostra vislumbres do Rei Eterno que se esvaziaria, tornando-se servo até a morte -Is 53) para depois restaurar seu reino. Lembra os que voltam do cativeiro de viver a ética do Reino (“Mantende a justiça e fazei o juizo e fazer justiça, porque a minha salvação está prestes a vir”- Is 55.1). E a promessa final é apenas para Judá, nem só para os reinos dos tempos dos profetas, mas para todos: “Eis que crio novos céus e nova terra... vós folgareis e exultareis perpetuamente no que eu crio...” Is 65.19 “Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá...” Ap 21.3-4.
Elizabeth Gomes

 

 

sexta-feira, agosto 14, 2015

NOSSOS PETS E SEUS HUMANOS



                                                              

Crentes na Bíblia como Palavra de Deus, nós afirmamos que a criação de animais (domésticos e selváticos – Gn 1.24,25) foi anterior à criação do ser humano a fim de espelhar o caráter de Deus também no cultivo, guarda e exercercício de domínio sobre os animais assim como sobre toda a natureza (Gn 1.27-31).

Hoje, a filosofia secular humanista tende a ver o humano como apenas um entre muitos animais predadores  e, muitas vezes, iguala a vida e o valor dos animais irracionais aos do ser humano, defendendo toda a vida física como de igual importância e repudiando a idéia do domínio humano sobre a natureza. Estranho que os mesmos que proclamam “salve as baleias” e “proteja os cães” muitas vezes sugerem que se descarte qualquer feto humano não desejado que “atrapalhe” a vida da mulher, como sendo “apenas tecido fetal”. Alguns chegam a considerar comer carne uma séria ofensa, ainda que sejam  pró aborto—inculcando-se por sábios, tornaram-se néscios, adorando e servindo a criatura em vez de o Criador (Rm 1.25)!

Uma visão cristã da natureza com seus seres viventes não conscientes será sempre de amar a criação que Deus fez, cuidar dos animais dos quais dependemos e que dependem de nós, e realizar um domínio ecológico sustentável que preze a vida e glorifique o Criador. “O justo atenta para a vida dos seus animais, mas o coração dos perversos é cruel”(Pv 12.10). Jesus afirmou o princípio bíblico de que o justo cuida dos seus bichos como também de sua gente mesmo no dia do sábado, perguntando aos fariseus: “Hipócritas, cada um de vós não desprende da manjedoura, no sábado, o seu boi ou seu jumento, para levá-lo a beber? Por que motivo não se devia livrar deste cativeiro, em dia de sábado, esta filha de Abraão a quem Satanás trazia presa a dezoito anos?” (Lc 13.16) e “Qual de vós, se o filho ou o boi cair num poço, não o tirará logo, mesmo em dia de sábado?” (Lc 14.5). Subentende-se que quem não cuida bem dos seus animais não cuidará de seus filhos—e parece que até os animais irracionais percebem quando uma pessoa não é bondosa com eles!

 Se no mandato cultural somos responsáveis por cultivar e guardar, devemos fazê-lo com inteligência, diligência e amor. O primeiro ato de Adão depois de ter recebido de Deus a companheira “osso dos meus ossos”, foi taxonômica, ou seja, dar nome aos bichos , de conhecer e valorizar a criação animal utilizando sua responsabilidade  de ser  racional em que estava impressa a imagem de Deus.

Multiplicando-se a maldade humana a ponto de misturar-se com a impiedade demoníaca (Gn 6), o coração de Deus se pesou, planejando um dilúvio destruidor e purificador. Toda a história da arca de Noé fala da salvação da raça humana (com oito pessoas dos gêneros macho e fêmea) e também da providência de preservação da vida de todas as espécies animais (um casal reprodutor de cada espécie) num estratagema ecologicamente brilhante e logisticamente complicado—porque Deus  é Criador e sustentador da natureza. As obras de arte através dos séculos sempre incluíram figuras ora prosaicas, ora majestosas, dos animais com quem o ser humano convive em mútuo desfrute.

Delineando essa base para uma visão cristã da complexidade da criação, quero enfocar um aspecto pequeno, quase caseiro, do que significa cuidar da vida a nosso redor, falando dos nossos pets. Tenho observado as postagens e dizeres de pessoas que lamentam a perda dos seus bichos de estimação, incluindo fotos de seus bichos, quase tanto quanto são frequentes as fotos de filhos ou netos queridos. Com isso, lembro com saudade da infância de nossos filhos, sempre pontilhada pela presença dos seus bichinhos, bichanos e bichões. No meu caso particular, o maior (não em tamanho, mas em exotismo) foi o filhote de onça pintada, trazida por meu pai em uma de suas viagens ao interior de Goiás, antes de haver restrições de IBAMA. Esse filhote de onça selvagem ficou em nosso apartamento conosco por umas três semanas, até que fosse transportado para um zoológico famoso na Europa. Anos depois, Davi e seu primo Márcio tiveram um mico dourado que dormia como um minúsculo bebê em sua mão (também antes de haver legislação do IBAMA).

Entre meus amigos, conto com várias pessoas dedicadas à medicina veterinária, e outras tantas que lutam pelos direitos dos animais. Quando Lau e eu mudamos para uma casa, um dos primeiros presentes que demos ao primogênito foi Fluffy, um puppy, que ele aprendeu a cuidar, alimentar e trocar-lhe a água antes de nascer a sua irmãzinha. Depois que fomos morar na fazenda em Bocaina, então, eram tantos bichos que às vezes eu não sabia onde pisar. Eu achava que pelo menos um filho decidiria seguir carreira como veterinário – cuidava dos coelhos, fazendo até pequenas cirurgias, tínhamos sempre pelo menos dois cachorros (dizem que se conhece o caipira quando tem pelo menos quatro cães na varanda a ladrar sempre que chegam visitas). Uma vez, aos sete anos, o caçula assistiu a parição de sua preá, e veio correndo, exclamando:

– Viva, sou pai, nasceu o filho de minha preá!

Nascimento, aliás, é uma das primeiras lições de vida que os pets ensinam aos filhos.  Por mais que eu exigisse que cachorro não podia dormir em sua cama, os cachorros de casa, companheiros dos filhinhos da mesma, eram donos do pedaço: Daniel aprendeu por que não devia permitir isso quando chegou em seu quarto e a cadelinha já estava parindo o quarto filhote no travesseiro dele. Ele ficou extasiado, embora eu não me alegrasse muito com a sujeira dos lençois a lavar. Cedo a bicharada ensina às crinças noções básicas de carinho, de reprodução, de higiene—o que é mais fácil com gatos que tenham suas caixas de areia e vivem sempre a lavar-se, mas não deixa de ser aprendido quando se tem de andar regularmente com o cachorro ou dispor dos seus dejetos de forma que não se ande sobre pequenos monturos malcheirosos. A higiene canil tem de ser explicada com detalhes para os pequenos não imitarem todos os aspectos, e é imprescindível que se ensine coerência, responsabilidade e naquilo que nós humanos devemos cuidar de forma diferente dos cuidados que os próprios pets têm com os seus filhotes (humanos não lambem, não arfam, não carregam as crias com a boca).

“Por mais que se tape os olhos da Madame Mim quando você faz oração, meu filho, ela não está orando—está apenas seguido o que o seu humano quer que faça quando ele agradece a Deus pelo lanche. E você, meu filho, não deve compartilhar seu sorvete com ela, por mais que ela goste de lamber junto—ela  também põe a boca em coisas que têm germes que não são bons para nós humanos, (como baratas e ratos mortos)”. O fato de nossos animais serem excelentes caçadores  (quem tem gato em casa não tem rato; tínhamos um exímio matador de mosquitos num bichano que os pegava, mal as sanguessugas pestinhas miúdas pairavam perto de nós).

Conheci uma senhora cujo papagaio de estimação cantava: “Cantai ao Senhor...”; o papagaio do vizinho zingava com sons torpes. Nenuma dessas aves era “cristã”—elas apenas emitiam sons segundo seus humanos  mais próximos. Às vezes os bichos são mais propensos a ser domados de modo positivo do que nós humanos criados à imagem de Deus conseguimos dominar nossa língua, nossas mãos, nosso temperamento. Constate o que Tiago diz sobre freios em cavalos (Tg 1.26; 3.8) e a língua humana.

Linguagem, por exemplo, é algo que nossos animais não dominam, mas obedecem. Um cão adestrado atende a ordem de seu dono, e uma ovelha ouve a voz de seu pastor, porém, por mais que mostre seu apreço por seu dono, o animal não pode planejar e articular em linguagem que comunique pensamento e propósito. Um bichano pode ronronar, demonstrando agrado ao toque de sua proprietária, e se achar dono da casa em que escolhe as  melhores almofadas; um cachorrinho novo vem correndo e abana o rabo, mostrando solidariedade e simpatia cada vez que seu humano chega perto, mas não pode expressar o que pensa nem fazer considerações sobre si nem sobre o ser humano que cuida dele.

De vez em quando, aparece um adulto que trata seu cão como se fosse mimado filho único. Tenho pena desses bichos e de seus proprietários, pois  embora eu creia que devemos tratar os animais com carinho e respeito, creio que eles não são seres humanos que só comem filé mignon e vestem roupas de grife—e somos tolos quando adoramos a criatura ao invés do Criador, ou mesmo quando queremos atribuir valores de personalidade e varonilidade ética ao cachorro que compramos ou adotamos. Tenho visto cachorros muito amigos, com lealdade a prova de tudo—mas o amor e a lealdade canina não são frutos do Espírito Santo—são apenas características animais de seres vivos que retribuem conforme o bem com o que são tratados. Treino e disciplina nos pets vem conforme o seu humano.

A “madame” não é mamãe de sua mini poodle nem deverá dar festa de aniversário ou “casamento” com direito a bolo e doces caninos. Devemos tratar os animais com a dignidade de bichos—não como simulacros de gente mimada que não tem o que fazer com seu tempo ou dinheiro. Há muitas pessoas famintas e carentes no mundo, e mordomia cristã inclui gastar bem o produto de nosso trabalho. Também ensinamos os filhos quando temos apenas os pets que damos conta de cuidar (e não é a mamãe humana que cuida do cachorrinho ou da iguana que a filha tanto jurou fazer tudo por ela!)

Soube de uma moça que tinha mais de vinte cachorros, estava desempregada e não tinha dinheiro para comida, mas fazia das tripas coração para comprar ração e pagar contas de veterinário antes de resolver as questões com a própria familia. Com isso ela não cuidava bem de seus bichos—muito melhor seria que os desse para adoção por gente que com esmero tomasse conta deles.

Já chorei com a perda de animal querido, e não há nada de ridículo em sentir profundamente a ausência de uma criatura que fez parte de sua vida por dez ou até quinze anos. A presença da morte é outra dura lição que nossos pets ensinam a nossos filhos. Nunca me esqueço do enterro que fiz do papagaio que as formigas mataram: forramos uma caixa de sapato em lindo caixão dourado e cantamos algo como “Vós criaturas de Deus Pai, todos erguei a voz, cantai!” quando fizemos, minha irmã e eu, a despedida final. Um cachorro atropelado na frente de casa é um trauma duro de superar—mas seu humano sairá mais forte da experiência, se aprender que Deus cuida dos detalhes da vida até dos pardais que Ele alimenta e que não caem sem queo Pai Celeste saiba, e dos animais do campo e de casa eque nos encantam e reviram nossos pertences e planos.

Embora hoje eu não tenha pets, exceto a Nina, cadelinha da família de meu filho que é missionário no Japão e não teria como pagar a passagem dela, eu “curto”as notificações sobre os bichinhos de meus amigos, cujos caninos, felinos, equinos, aves, peixes e até mesmo répteis alegram o coração e glorificam a Deus por sua existência, ensinando-nos a participar da criação!

Elizabeth Gomes

segunda-feira, agosto 03, 2015

NO REFEITÓRIO DO HOSPITAL


 

Quando começamos a mais recente saga de internação de meu marido no hospital, eu não imaginava quanto bem faria passar quinze a trinta minutos por refeição com estranhos, comendo do cardápio hospitalar gratuito para os acompanhantes de pessoas internadas com mais de sessenta anos de idade. Fiquei agradavelmente surpresa com a comida sadia e variada, aliviada por não ter de recorrer a gastar uma nota preta três vezes ao dia em restaurante ou lanchonete da vizinhança. Bastava a preocupação com gastos exorbitantes com remédios e a diferença no preço das diárias não cobertas pelo seguro.

O refeitório do hospital é utilizado pelos seus funcionários e pela plêiade de pessoas cuja única característica partilhada era ser acompanhante de algum doente. No meu caso, sou única acompanhante de meu marido, noite e dia, vinte e quatro horas por dia. Prometi estar ao lado dele na saúde e na doença, e este é um momento na doença. Ele já esteve comigo em situação semelhante diversas vezes, e é meu melhor amigo há meio século. Ainda bem que diante da eternidade de Deus, este é apenas um breve momento.

O filho e a nora vem sempre e ajudam, compartilhando sonhos e notícias do mundo lá fora, trazendo e levando roupas limpas ou sujas, orando conosco e por nós. Temos recebido visitas memoráveis de amigos preciosos e conhecidos importantes, mas a gregária Beth sente falta de respirar ar frescode fora, sentir a comoção de gente, de contrabalançar caseirice pé no chão com sede de estímulos para a mente enquanto o coração se arrebenta, se quebra e se refaz todo dia a cada hora. Aqui observamos um universo de mundos, ao ver o próximo, e aprendemos a amá-lo, ou, no meu caso, amar as mulheres que se aproximam, pelas histórias de vida contadas e ocultadas nas pequenas conversas.

-- Está acompanhando mãe? Pai? Marido? Filho? Irmã? Vizinha?

-- É cuidadora de uma velha senhora que não tem ninguém na família que a aguente?...

Ana, a única disposta a ajudá-lo, (uso nomes fictícios por razões óbvias) cuida do ex-marido que a abandonou anos atrás.

Berenice cuida com dedicação do pai idoso enquanto lida com a descoberta e dor de ter sido traída pelo marido companheiro de trinta e cinco anos de vida juntos.  

Carmem, além de sessentona, vê a mãe senil de noventa anos chorar que nem criança pelo dodói que ninguém quer fazer sarar, devido a fêmur e duas costelas quebradas.

Desidério, aparentando ter uns oitenta anos e mal de Parkinson avançado, cuida da mulher com câncer em fase final. Suspeito que quando ela entregar os pontos, ele irá segui-la como uma brisa suave para o mundo futuro.

Élida, uma mulher armênia de grande porte e imensos olhos tristes, cuida da ex-cunhada.

Fátima é cuidadora profissional que lamenta não ter voltado para o Piauí quando lhe avisaram que sua mãe estava nas últimas; por conseguinte tornou-se especialista em tratar bem as senhoras paulistas e estrangeiras que, revoltadas e solitárias, esperam a morte chegar.

Claro que todo acompanhante tem a ambígua esperança de ver seu querido (ou até mesmo seu desprezado) paciente ter melhora, ainda que essa possibilidade seja também fonte de inquietação. Amor, obrigação, culpa, caridade, sina, possibilidade de algum lucro no meio das perdas todas—mil e uma histórias diferentes e sem fim em um mesmo refeitório, servindo-se de sopa, arroz, feijão, carne ou peixe, massa, legumes e salada, sobremesa e suco. Alguns se isolam na multidão; algumas pessoas comem com as lágrimas salgando sua refeição, enquanto outros não largam o celular, mastigando devagar e demorando para voltar à enfermaria ou ao quarto bem-equipado onde tudo pára enquanto a vida de uns se renova e de outros se esvai.

Parece-me que este hospital não tem o júbilo da maternidade. Um enfermeiro me informou que as maternidades dão pouco lucro a seus proprietários pela curta permanência e rápida alta das pacientes. Este hospital é especialista em partidas—em dar altas por cura, melhoras e soluções—se bem que o alto índice de geriatria não esconda as ocasiões em que enfermeiro conduzem uma maca com paciente totalmente coberto, que levam ao subsolo, enquanto quem estava no quarto acompanhando ajunta, aos prantos, a pequena trouxa de pertences do seu querido.

Quando vim com Lau ao hospital, além da tristeza por ver como meu homem forte estava mal, meu apoio de vida, carente de tudo e necessitado de tudo que eu pudesse fazer, eu tinha  também uma frustração egoísta por não ter liberdade para fazer o que eu sempre fazia em casa—nem acesso a livros, nem possibilidade de traduzir e escrever. A hora era de ministrar para aquele que sempre cuidou de mim. No quarto, Wadislau me ensinava a orar sem cessar, interceder e procurar  na Palavra de Deus respostas às nossas muitas indagações do porquê das coisas. Descobri também um ministério junto a essas pessoas no refeitório: falar do amor de Cristo, orar com elas e por elas. Ao lembrar ainda hoje dos longos dias no hospital, trago à memória pessoas carentes da graça de Jesus, e intercedo por elas, algumas das quais nem o nome me recordo.

Estamos em nossa casa, onde cada dia fazemos curtas caminhadas pelo jardim, e Wadislau se reveste de forças, “sempre melhorando” (com isso, lembro do corinho de adolescência). Vamos nos renovando na singularidade do dia a dia, vendo de primeira mão a grande fidelidade de Deus. Agradecemos por cada aspecto da epopéia que passamos. E estamos esperançosos, gratos pela alegria de viver o céu agora, com a perspectiva de um futuro certo.

Elizabeth Gomes

domingo, junho 14, 2015

EVANGELISMO E MISSÔES: FATOS E FALÁCIAS


Contavam meus pais que quando eu era ainda analfabeta (portanto, menor que quatro anos) fui evangelizar uma vizinha, uma senhora velha (mais de quarenta anos de idade!), carola, que não gostava de protestantes ou americanos, mas tinha carinho pelas crianças e me recebeu bem. Eu cantei um ou dois hinos, recitei João 3.16 e Atos 16.31, e fiz um “sermão” como ouvira muitos do meu pai na igreja e minha mãe com a criançada que vinha ouvir histórias do “livrinho sem palavras”. Eu “preguei” com muitas palavras bonitas e instava com a senhora para aceitar a Jesus para poder ir ao céu. a insistia que sempre aceitara Jesus, pois nasceu na sua Santa Igreja e jamais a abandonaria, mas ninguém podia ter certeza de ir ao céu—só os santos que rezam por nós. Perguntei-lhe se ela gostaria jque eu orasse; orei por ela, dei-lhe um beijo e um abraço e peguei a guloseima que ela tinha me dado e fui contente, correndo para casa. Não sei se essa senhora mudou de idéia quanto a Cristo, mas daquele dia em diante eu seria uma missionariazinha, como dizia o hino da APEC, e falaria de Cristo ao companheirinho.

Como a gente grande que eu conhecia, eu considerava a obra de evangelização como parte integral de ser cristã, mas via-a como um ato de “nós” contra “eles”, de “eu sei a verdade da Bíblia e você não sabe de nada”—ainda que eu fosse uma criança disposta, mas um tanto mal-educada, eu praticava o evangelismo de alcançar mais almas com o arco e flecha do roteiro que havia decorado da Bíblia. Cresci um pouco e, apesar de altos e baixos, fui “melhorando” meu desempenho cristão (como dizia o corinho, Sempre melhorando, melhorando sempre no Senhor!). Aos doze anos, sob forte convicção do Espírito Santo, vi que eu não era nada e que precisava de Cristo para tudo, e me entreguei ao convite de me consagrar inteiramente ao trabalho missionário.

Romantizava a vida evangelizadora. Lia muitas biografias—não só as juvenis sobre Livingstone ou a enfermeira Florence Nightingale, como também os livros “adultos” que minha mãe lia sobre Hudson Taylor, D. L. Moody, Amy Carmichael, Isobel Kuhn, Elisabeth Eliot. Para algumas amigas eu era “chata”, mas outras abraçavam meu interesse e formamos até um “Clube em favor dos israelitas refugiados”, quando comecei a me interessar por evangelismo do povo de Deus, após uma missão fazer apelo em favor dos judeus do Iêmen que procuravam voltar a Israel.

Na igreja que passei a fazer parte, comecei aos doze anos a ensinar uma classe de meninas de oito e nove anos, na escola dominical. O evangelho de João—o mais simples e mais complexo dos evangelhos—era tema de nosso estudo. Eu estudava a Palavra, incentivando as meninas a estudar e memorizar também.

Já em Porto Alegre no ensino médio, tive como mentora Thelma Bagby, diretora do Colégio Batista, que me estimulou a participar de reuniões de oração, clube bíblico (nessa época também comecei a frequentar o acampamento Palavra da Vida nas férias), cantar e dar testemunho nas assembléias, e falar de Cristo a outros jovens. Dois incidentes se destacam nessa fase.

Um, eu tinha uma amiga israelita (aliás, tinha muitas amigas descrentes de religiões diversas, e orava para conseguir convertê-las todas) com a qual passei uma noite inteira falando de Cristo, começando do Antigo Testamento e percorrendo o Novo, até participar de inesquecível diálogo:

            --Depois de tudo isso que expliquei, você não entende que Jesus é Yeshua o Messias? Você não quer aceitá-lo como seu Salvador?

            A que ela respondeu:

            -- Está certo, Beth. Acredito que Jesus seja o Messias. Mas nunca vou “aceitá-lo”, como você diz, porque o cristianismo tem perseguido meu povo  por muitos séculos, e minha família jamais poderia aceitar que eu renegasse tudo que sou para seguir uma religião antisemita. Não vamos falar mais do assunto.

Segundo incidente: eu amava minha escola e era destacada entre os colegas do Colégio Batista da minha faixa etária. Havia uma moça na minha classe--para mim era velha, pois já casada e mãe de dois filhos—que voltara a estudar com muito esforço. Eu admirava seu esforço mas não tinha amizade com ela. Um dia, soube que ela estava doente—daí faltav tanto o colégio—e mais tarde, ouvi dizer que ela morrera de câncer. Fiquei abaladíssima, não por ela, nem por seus filhos órfãos, mas porque nunca tinha lhe falado de Cristo, e com certeza ela morreu e não foi ao céu. A letra do hino “Não me falaram de Cristo” repercutia em minha mente e eu lembrava do profeta a que Deus ordenou pregar “Quer ouçam, quer deixem de ouvir”, e de quem requerirá o sangue se não lhes der a mensagem. Veterotetamentariamente, eu era legalmente responsável pela salvação dos que conhecia, e deveria conhecer mais gente para obter mais estrelas na minha coroa de galardões de testemunha.

Essa idéia de obras mesclada à obra de Cristo foi repetida muitas vezes e de muitas formas no decorrer de minha vida na igreja. Lembro-me de uma irmã contando sobre outra pessoa que atrapalhou determinado trabalho cristão, que lastimou: “Quantas pessoas poderiam ter sido salvas e não o foram porque o mau testemunho dele impediu a ação de Deus”!

Por mais bem intencionado fosse meu espírito evangelístico, essa “teologia de olho de boi” em que o alvo era evangelizar, custe o que custar, com ou sem conhecimento da Palavra de Deus, revelava de cara duas falácias: falta de fé na soberania de Deus, de quem vem tanto o querer quanto o realizar, e desconhecimento de que é o Espírito Santo que convence do pecado, da justiça e do juízo—nossos esforços nada acrescentam ao Reino de Deus, ainda que devamos buscar o reino e a justiça de Deus.

Quando estudava na Palavra da Vida, inicialmente pensava, como Lau naquela época, em missões indígenas. Um campo obscuro, o mais difícil possível, seria o cantinho onde Deus nos usaria para trazer centenas de ameríndios para Cristo. A medida que fomos conhecendo outras formas de evangelismo, fomos nos interessando por estas, e ao sair do IBPV para o campo missionário, o fizemos com a meta de evangelizar os israelitas (cumprindo um desejo de desde a mais tenra juventude). Fomos a BH com a cara e a coragem, o aval de algumas igrejas mantenedoras, muitos estudos superficiais de como evangelizar judeus, muito entusiasmo e muita falta de discernimento.

À medida que estudávamos mais a Palavra, crescia uma visão reformada de evangelismo e missões como parte integrante, não dividida em departamentos estanques, do propósito de Deus para a igreja toda. Aprendemos que a ordem de Jesus era

Indo por todo o mundo, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os no nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vs tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até a consumação do século.”

Não é só ir, é ao ir, onde quer que formos, fazer discípulos de todas as nações. É inseri-los na igreja da qual somos parte—não levá-los à igreja, mas ser igreja, (batizando-os) em nome do Pai, Filho e Espírito Santo—a obra é de toda a Trindade, é ensinar a guardar todo o conselho de Deus (tudo que vos tenho ordenado) e a promessa é: “Eis que estou convosco até a consumação do século”. Não´se trata de contar quantas almas ganhamos para Cristo—é apresentar à pessoa toda, mente e coração, a verdade libertadora. Essa obra do Deus Trino  salva a cada um e todos quantos foram chamados--não somente do inferno, mas dos grilhões do passado, de nossa vida presente, e de um futuro em que conheceremos como também somos conhecidos. O livro Sal da Terra em Terras dos Brasis[1] explica essa visão de evangelismo e missões aplicado dentro da cultura brasileira de uma forma clara e bela, mostrando que a multiforme sabedoria de Deus é muito mais do que passagem para um céu de anjinhos—é conhecer Cristo que nos redime, em quem estão todos os tesouros. Conhecer Cristo e o poder da ressurreição, bem como a comunhão nos seus sofrimentos, é ensino prático de toda a vida para uma vida eterna aqui, agora e para sempre. Isso muda nosso enfoque de evangelismo e missões—expande e enriquece todos os aspectos da vida, e não se limita a chavões que tenhamos decorado, nem a quatro passos ou três perguntas que tenhamos aprendido. É uma escolha, sim, mas não nossa—Ele nos escolheu e nos deu vida, estando nós mortos em nossos delitos. Porque ele nos chamou, nós podemos atender o seu chamado.

Hoje não tenho mais a profissão nem a pretensão de ser missionária. Participo de uma igreja que entende e vive a missão de Deus. Cada dia que passa, estou aprendendo do Senhor Jesus, e acabo compartilhando o que aprendo, até mesmo dos meus erros e minhas falhas, a filhos e netos, amigas e conhecidas, fazendo amizade mesmo com desconhecidos, que passam a fazer parte da mesma família da fé. “O que ganha almas é sabio”, porém, meu alvo não é ganhar almas -- é glorificar a Deus em tudo, e nele ter meu prazer. Ele já me “ganhou” da cabeça aos pés, de dentro para fora e de fora para dentro, com seu imensurável amor!
Elizabeth Gomes



[1] Wadislau M. Gomes, (Brasilia, Monergismo, 2014)

quinta-feira, junho 04, 2015

PARTO SEM DOR?!



Tinha certeza que este nascimento seria tranquilo. O primeiro filho nasceu sem problemas numa gravidez em que ela, marinheira de primeira viagem, sem conhecimento de causa e também isenta de preconceitos, teve um filho que logo estava ao seu lado na cama do hospital. O pediatra comprovou saúde completa do garotão de três quilos e meio, e no dia seguinte, mãe e filho foram para casa. Impaciente para exibir seu rebento, foi para a igreja três dias de parida, e continuou saindo regularmente como bebê a tiracolo, sem nenhuma preocupação com germes, ou perigo do bebê adoecer por ser levado de colo em colo na comuidade da fé.

Na segunda gravidez, três anos depois, ela estava mais escolada—lia tudo que conseguia sobre parto e puericultura. Tinha sofrido um aborto espontâneo quando o primeiro filho tinha dois anos e, agora que ele estava com três anos, ela resolveu fazer tudo conforme as melhores indicações médicas para garantir que não cometeria erros  neste nascimento. Método Lamaze, parto sem dor, exercícios até o fim e seguindo religiosamente a rotina preparatória. Conversava detalhadamente com a obstetra a cada consulta do pré-natal. Tudo daria certo.

Passaram as quarenta semanas, e decidiram induzir o parto. Seu marido, pastor, era capelão do hospital em que a criança nasceria, e estaria junto dela. Mas as contrações demoravam mais do que se esperava. Nesse tempo em que aguardavam maior dilatação, um grito sofrido chamou o marido para outro quarto: morreu uma mulher que não fizera prenatal, desconhecendo  a condição diabética, e a criança também “não vingou”. O seu marido,  como pastor, teve de dar assistência espiritual e prática ao pai enlutado. Ela ficou apenas na companhia da obstetra. O bebê tinha virado transversalmente, após já ter se encaixado. A médica virou a criança manualmente. As coisas não iam conforme planejado, e de repente a parturiente apagou: foi-lhe dada anestesia geral porque o bebê entrava em sofrimento. Horas depois (ou seriam dias?) a mãe lutadora acordou e em seu torpor deu falta do bebê a seu lado.

-- Cadê meu filho?
-- Calma, mais tarde você a verá...
-- Então é menina?
-- Isso mesmo. Descanse mais um pouco...

Pânico. O bebê não estar junto dela só poderia significar que ele morreu, pois nem seu marido estava por perto. Com certeza está correndo atrás das coisas...

A médica se aproximou, e disse:

-- Ela é uma linda menina, mas está na incubadeira. O cordão umbelical quase a sufocou. Amanhã certamente ela estará respirando melhor...

Como ficar calma? Como descansar se tudo deu errado? Mas ela não tinha como sair da cama nem gritar por socorro, quanto menos ir ao berçário para tomar a filha nos braços e sentir que seu labor tivera algum êxito.

Realmente, na próxima vez que acordou, seu marido estava a seu lado e deu notícias lá de casa. Mamãe está com o filhão, você foi uma guerreira, e já vão trazer nossa filhinha para cá. Um embrulho de fofura cor de rosa foi colocado em seu regaço, e em pouco tempo mãe e filha estavam se descobrindo sob o olhar terno do marido, que passara a noite consolando outro homem pela perda de mulher e criança. Tudo ficaria bem, pela graça de Deus.

Vinte e cinco anos depois, a mãe cruzava os ares para ir de encontro à filha que estava prestes a dar a luz ao segundo filho. Dois anos antes, acompanhara, numa noite gélida em que enfrentaram uma tempestade de neve para chegar ao hospital, acompanhara filha e genro para o nascimeto do primeiro neto. Mas tudo deu certo; o parto demorado, porém bem sucedido, revelou um garotão forte e esperto. O hospital modelo chegou a dar um jantar romântico ao casal de novos pais horas depois do ocorrido. Só que agora, a jovem mãe morava em outro estado, outra cidade, noutras circunstâncias, e a mãe madura se sentia tão insegura quanto quando a filha nascera anos atrás. Desembarcando, esperava encontrar o genro,  no aeroporto perto da cidade em que moravam, em ve dele, a filha veio a seu encontro, correndo para seus braços, aos prantos, e mãe e filha se apertavam em desespero, a mãe sem saber o que acontecera, mas com certeza que o nenê tinha morrido.

A avó ficou sabendo que nascera conforme esperado, mas foi transferido imediatamente de helicóptero para a terapia intensiva de referência neonatal da cidadade maior, onde ainda lutava para respirar. A filha “fugiu” do hospital poucas horas depois de dar à luz, ansiosa para encontrar pessoalmente a mãe e derramar o coração diante dos temores reais  que a assoberbavam. Ali compartilhariam os medos e incertezas de um nascimento de bebê de alto risco, onde ele ficaria três semanas na UTI, enquanto mãe, pai pastor, filho de quase dois anos, e avó vinda do Brasil ficariam em um quarto cedido para familiares de crianças em risco de morte.

Os amigos e parentes dariam parabéns ou pêsames? Os telefonemas eram confusos porque a situação estava confusa. A avó tentava entreter o inteligente e sapeca filho da sua filha, que até então tinha sido centro da atenção de todos. Agora tudo girava em torno do irmãozinho que, apesar de grande e forte, nasceu doentinho. Comentários, mesmo de gente cheia de amor, doíam. O bebê estava roxo devido à falta de oxigenação. Alguém disse:

-- Esse sim, puxou o lado brasileiro mais escurinho da família.

--A cabeça logo vai voltar ao tamanho normal.

-- É bom não se apegar demais...                                     


Quando ele voltou para casa, regozijaram—ia dar tudo certo. Ele progrediria em ritmo diferente, mas graças a Deus, estava vivo e não tinha nenhum problema. Deus é grande!

 As duas vinhetas verdadeiras acima são comuns na vida moderna, em que nascimento e parto são desmistificados e corriqueiros, mas ainda cheios de surpresas e desapontamentos. Uma amiga obstetra disse-me que já assistiu centenas de partos de todo tipo; naturalmente, prefere cuidar dos normais, mas está pronta para qualquer emergência—no entanto cada nascimento é único e ela se emociona com o corriqueiro como se fosse milagre único e inusitado—sempre!

Alegrias e tristezas e uma gama infinita de emoções transbordam ante o milagre da vida desde Eva, que disse: Adquiri um varão com o auxílio do Senhor, e a quem foi dito que os sofrimentos da gravidez se multiplicariam e em dores daria a luz a filhos. Como em todos os eventos da vida debaixo do sol, junto à maldição estão coladas múltiplas bênçãos. Nas histórias dos humanos em tempos bíblicos, fertilidade e esterilidade figuram proeminentes desde que seres humanos começaram a cumprir o mandato cultural enchendo e povoando a terra. É notório que as grandes famílias patriarcais tivessem tantas incertezas e lutas relacionadas com fertilidade. Na família de Jacó, todas as rivalidades centravam em filhos: da esposa amada, da esposa forçada, da concubina, da escrava, da nora rejeitada que engendrou  um relacionamento com o sogro—tantas confusões gestacionais que a história bíblica tem protótipo de toda espécie de nascimento: planejado, impromptu, fruto de abuso, relato de amor, em que a estéril se alegra.

Em era moderna, o Germinal de Flaubert é parábola da fecundidade e esterilidade da vida romântica naturalista beirando o realismo.  Hoje em dia, embora a sociedade considere a profícua fecundidade um problema que afeta negativamente a liberdade da mulher e acarreta insuportável peso financeiro—ao contrário dos tempos bíblicos em que muitos filhos  significava muita riqueza, e começaram a cumprir o “crescei e muliplicai” – as pessoas continuam a encantar-se com as histórias e os mitos relativos ao nascimento  de bebês. Todos temos um acervo de histórias e fatos curiosos sobre nossas mães, irmãs, avós e filhas. Jovens independentes se casam e, de repente, querem fazer um ninho para abrigar a promessa de continuidade da vida na vida do filho. Sua realização, sua frustração, seu sonho e suas ansiedades giram todos em volta de filhos. E as pessoas tendem a fazer comparações, indagações, perguntas indiscretas bem como discretos comentários a estranhos e às mulheres mais íntimas de seu relacionamento.  Nâo é necessário ser uma Sara, Ana ou Isabel da antiguidade, com a perspectiva de dar a luz um ser como nós, tão diferente de nós, que vai nos causar dores e nos alegrar por toda a vida, mesmo que ele jamais pertença a nós. Esses filhos são Senhor da Vida. Celebramos o nascimento, por mais que incluamos nisso o sofrimento.

Hoje quero homenagear jovens amigas que estão grávidas ou recentemente deram a luz. Algumas enfrentaram dificuldades para conseguir gestar, outras “tiraram de letra” e podem dar lições às sua avós e mães—sempre prontas a contar um caso enternecedor. Algumas mães mais maduras tiveram um filho com muitas lutas, e vão continuar lutando pela vida, pela sanidade e pela saúde dos filhos, sofrendo as síndromes que afligem seus rebentos, e enternecendo ante as glórias e dores do seu dia a dia. A minha filha que nasceu com o cordão umbelical estrangulando-a hoje é uma mulher saudável e sensata, mãe de três homens. Fez seu mestrado quando esperava o segundo filho; doutorou-se enquanto se preparava para o terceiro parto (que aconteceu em meio ao tufão Katrina). O filho dela que foi transportado para outra cidade de helicóptero segundos após ter nascido e lutou tanto para respirar, é um belo e bondoso rapaz cristão de dezoito anos—que luta, ora vencendo ora sentindo-se derrotado com a condição de lesão cerebral e autismo. No fim, tudo deu certo e ficou bem. Não negamos as dores de coração de partos atribulados e a providência divina—até mesmo quando houve erro médico. Estes são os filhos que Deus nos concedeu para a sua glória e para a nossa alegria. Regozijemo-nos neles!

Elizabeth Gomes