quinta-feira, outubro 26, 2017

NAVEGANDO NA REALIDADE DOS SONHOS


Amo minha casa e sou caseira assumida de sala e quarto, forno e fogão, jardim e horta, varanda repleta de gente amiga e de cadeira de preguiça ao sol com bom livro na mão. Também gosto de sair e bater perna para perto e para longe – eu aproveitava cada convite que Wadislau tinha para pregar ou ensinar, e acompanhava-0 segundo o exemplo da mulher de Pedro. Agora, com a miastenia gravis que acomenet o9 meu marido (diagnosticada há mais de quatro anos), as apreciadas viagens ao Norte, Sul, Leste e Oeste do Brasil, a  cada três ou quatro anos para visitar filha e netos nos Estados Unidos, ou compartilhar em teologia prática o amor de Deus onde quer que for têm sido escassas quando não impossíveis. Nem me fale em enfrentar uma viagem à Terra do Sol Nascente, onde nosso filho caçula e a família querida estão estabelecidos para a glória do Deus a quem servem! A ideia de trinta e seis horas de voo antes mesmo de chegar ao destino atualmente não é viável.

Mais uma hospitalização de meu marido tornava esdrúxula idéia de viajar. Alguém sugeriu e tornou possível a opção de fazer um cruzeiro. Ontem mesmo vi uma postagem de um irmão criticando pastores que dirigem carros importados e fazem viagens caras como desperdício pecaminoso dos recursos que Deus dá, e imaginei que, se ele visse nosso roteiro sonhado, nos colocaria no topo da lista de grandes pecadores. Mas Deus nos deu este presente – portanto, voltemos ao cruzeiro. Seria uma forma de viajar sem estresse, com médico e hospital a bordo, descendo nos portos quando possível, descansando na cabine quando Deus diz “pára um pouco” para respirar. Conhecer um pouco da história da civilização ocidental, um cantinho do Mediterrâneo, relembrar do Deus a quem servimos a graça sem par que encherá toda a terra “como as águas cobrem o mar” – talvez seja a primeira e última grande viagem que faremos deste lado da eternidade.

 Talvez ainda dê para visitar Israel, Egito, Turquia, Armênia, Grécia e o lado oriental onde nasceu nossa fé, ou o extremo oriente onde estão nossos queridos no país menos evangelizado do mundo e dar um pulo num dos mais cristianizados (Coréia) e, como no sonho de Hudson Taylor, de população convertida mesmo sob domínio materialista, ou ainda em exóticas terras onde temos irmãos servindo a Cristo na Tailândia, no Camboja, na Indonésia e nas grandes ilhas do primeiro mundo da Austrália, Nova Zelândia e tantos outros. Eu “toparia” viajar pela Europa toda para apreciar as belezas em que antepassados há muitos séculos lutavam e conviviam. Mas não dá. 

Temos de restringir o sonho à realidade possível, e o Deus do impossível nos possibilitou um “giro” europeu de Lisboa a Barcelona, Marsela, Gênova, Málaga até o norte da África em Casablanca antes de retornar ao porto lusitano no Atlântico jungido ao Tejo. Cada lugar um ponto, uma ponta, de um país de “muito mais”! Experimentamos cozinhas autênticas com bacalhau, pato assado e pastéis de Belém, uma paella inesquecível em Barcelona e em Málaga tapas e um prato de jamon com ervas. Em Marsela, onde Lau não agüentou fazer turismo, fui caminhar sozinha e sentir aromas de Buillabesse, de lavanda e flores de Provence, ao andar de tram e à pé pelas vielas de lojas de moda internacional e de todo tipo de especiarias antigas do Saladin. Andei como nunca! Ah Gênova – la bela Italia onde tomamos capuccino numa pâtisserie diante da catedral de San Paolo , fomos a mirantes mirabolantes ver simultaneamente sonhos medievais e modernos, e eu trouxe do quintal da casa de Cristóvão Colombo uma azeitona madura cuja semente vou plantar para ver se germina aqui no Refúgio de Mogi das Cruzes. 

Havia no Magnifica quase três mil passageiros servidos por uns mil tripulantes. Ouviam-se línguas estranhas e familiares, e alternávamos automaticamente entre inglês, português, italiano e espanhol, alemão e mistureba internacional nos corredores, elevadores e escadas, nas entradas e saídas dos restaurantes e lojas, bares e butiques, teatro e hospital. Algumas famílias jovens com miúdos e bebés, falando árabe, inglês, italiano e finlandês, croata e francês, e uns dez a quinze por cento de profissionais liberais e comerciantes bem-sucedidos. Centenas de passageiros eram, como nós, de terceira idade, aproveitando os anos de reformados (no sentido lusitano de aposentados) porque navegar é preciso. Uma fila para desembarque me lembrava cena do filme Cocoon com gente velha gesticulando, claudicando, caminhando avidamente para locais onde encontrariam (ou não) fonte da juventude. O navio tinha múltiplas atrações que não nos atraíam – lojas de produtos de luxo, SPA com mil ofertas de embelezamento, piscinas e cassinos e jogos de todo tipo. Toda noite havia apresentações musicais de canto e instrumentos ao vivo, show no teatro, com teatro, canto, orquestra, danças e malabarismos dignos de cirque de soleil – podia divertir-se até morrer, se assim quisesse – e me deleitei quase diariamente com o talento de toda espécie de artistas antes desconhecidos.

Em sua maior parte, o mar estava tranqüilo, exceto uns dois dias quando o balanço nos fazia perguntar se estávamos tontos por bebedeira (sem termos ingerido nada alcoólico) ou prestes a sofrer um AVC. Lembrei-me do apóstolo Paulo, que naufragou no mar Adriático (uma extensão do Mediterrâneo a oeste da Grécia e leste da Itália, beirando a Albânia, Croácia e Macedônia) a caminho de Roma, antes de chegar a Siracusa, e foi parar na ilha de Malta, entre bárbaros e serpentes venenosas – onde foi regiamente hospedado pelo homem principal da ilha e trouxe-lhe as novas de Jesus Cristo. Mas animei-me ao ver pela sacada de nossos aposentos que o prateado mar se aquietou e nossa aventura não chegaria a tais extremos.

As refeições se davam principalmente em dois dos restaurantes do navio, um de bufês variados, outro de serviço francês à la carte, exceto quando entrávamos nas cidades onde tivemos refeições inesquecíveis em Barcelona, Málaga e a inigualável Lisboa – e no nosso quarto, serviço japonês quando Lau não agüentou deslocar-se para outro andar. Andar – balançando com as ondas, caminhando entre as multidões, ou sentar – ao lado de pessoas outrora desconhecidas que se tornaram velhas amigas em poucos minutos – faz-me lembrar do banquete de qual participarão pessoas de todas as tribos e nações depois que terminarmos a peregrinação sobre esse planeta azul. Passei a orar por pessoas que nunca antes tive o privilégio de conhecer, a sentir suas dores, seus sofrimentos em meio aos grandes sucessos da vida – e observando rostos, gestos, andares, pensei em como Cristo nos ama e cuida dos detalhes com magnífica maestria e arte eterna que se renova a cada momento.

Não foi uma viagem piegas nem creio que estávamos conscientes de maior presença ou poder de Deus nessa nossa viagem pela costa do Mediterrâneo. Mas lembrei-me da história de outra viagem há quase um século, de navio no Atlântico, “o barco que nem Deus consegue afundar” – o Titanic – cuja orquestra, enquanto afundava, tocava “mais perto quero estar, meu Deus de ti”. Somos testemunhas da bondade e da severidade de Deus, e todos, cada um em seu mundo singular, no mesmo barco, vivemos e respiramos nele. Espero que esta viagem de sonhos me torne um pouco mais piedosa peregrina quando reafirmo: “Ó vem meu Piloto ser!”, sabedora de que, “como as águas cobrem o mar, toda terra há de se encher do amor de Deus e da glória do Senhor como as águas cobrem o mar!” (Hq 2.14.)

Elizabeth Gomes