terça-feira, fevereiro 28, 2017

QUANDO SE ROMPE O FIO


Nestes últimos tempos, vimos morrer vários amigos queridos, servos de Deus empenhados em sua obra. Às vezes, pensamos que farão falta e que jamais serão substituídos. Esquecemos que Deus não leva os seus filhos para o céu até que sua obra esteja completada na terra. Em conversa com queridos de longa data, lembrávamos que, na última vez em que estivemos juntos, em Brasília, a Gode estava junto. Ela viu minha luta com um fogão cuja porta de forno teimava em não ficar fechada e, no dia seguinte, mandou entregar em casa um fogão novo. Ela era assim—observava as necessidades do povo de Deus e, quando era algo que podia resolver, fazia isso com alegria, sem alarde, sem cerimônia, com muito amor! Ontem fez um ano que ela faleceu.
A última vez que vi Regina, amiga lá de B.H., foi numa formatura do Andrew Jumper. Exuberante, ela mostrava a alegria da música e dos netos. Certamente hoje canta no coral celestial.
Servos do Senhor, mais velhos, como Ary Veloso, nosso professor e encorajador do trabalho; outros, mais novos do que Wadislau e eu, que foram também seus alunos ou por ele estimulados ao ministério, como Carlos Osvaldo e Dídimo, Paulo Solonca,  foram ceifados antes de nós. Todos esses tiveram ministério impactante na igreja de Jesus Cristo em nossa terra. Vários presbíteros—com os quais Wadislau mais contava nas igrejas pelas quais passamos—morreram cedo: Adilson, Péricles, Filemon, Ortêncio. A maioria, devastada doenças com que conviviam por alguns anos. Alguns pensavam ter vencido totalmente a doença implacável, quando de repente ela voltou com força e os derrubou.
Fato é que, à medida que envelhecemos, alguns de nossos amigos e colegas também envelhecem, e alguns completam o número de seus anos. É triste quando alguém tem a vida ceifada por acidentes ou incidentes violentos. A vida é tênue. Está por um fio de prata. Erva seca e cai a flor.
O que “resta” depois dessa ceifa terrível aos olhos dos que não têm esperança, é, olhos dos que confiam no Senhor o cumprimento da esperança de estar com Cristo. Para todos, permanece a dor, pois a morte é o aguilhão do pecado.
Nessas experiências, há órfãos de pais, filhos, amigos — e de cônjuges. Este último, um estado comum a muitas pessoas, para o qual poucos se preparam: a viuvez.
A Bíblia conta que Tamar ficou viúva de um homem perverso, Er (Gn 38.7), e foi-lhe dado segundo casamento com Onã, que não quis prover descendência a seu irmão, e também morreu. O sogro, Judá, não querendo que seu filho, Sua, passasse pela mesma condenação de morte, negligenciou os direitos da nora viúva. Tamar tomou nas próprias mãos a justiça nessa circunstância adversa, concebendo, do sogro enganado, aos gêmeos, Perez e Zera. A despeito dos pecados de seus pais, Perez foi escolhido por Deus para ser antepassado de Jesus.
Outra viúva, que teve grande impacto no relato bíblico, foi a moabita Rute, cujo marido Malom morreu na terra de Moabe. A sogra, Noemi, achava que a viuvez era um castigo de Deus, amargura da vida, e, quando voltou a sua terra de origem, Belém, Rute insistiu em acompanhar para ajudá-la. Ali, além de pão, Rute encontrou um parente remidor, Boaz, que se tornou seu esposo, antepassado do rei Davi e finalmente de Jesus Cristo.
                Os retratos de viuvez, na Palavra de Deus, falam de perda e sofrimento, mas com a possibilidade de serem transformados em ganhos e glória, dependendo da intervenção de Deus na história dessas vidas. Deus ordenou a seu povo, especificamente, que jamais maltratasse ou desprezasse o órfão ou a viúva (Dt 10.18; Sl 68.5) — numa sociedade em que os homens dominavam os bens, muitas vezes ficavam desamparados.
Quando o profeta Elias enfrentou a seca e a fome, em Israel, Deus o sustentou por meio de uma viúva palestina, de Sarepta. Na casa mais pobre de um povo desprezado (1Rs 17.9 ; Lc 4.26) Deus abençoou o lar com fartura de óleo e farinha e devolveu a vida ao filho que morreu!
                No Novo Testamento, vemos que os viúvos não eram desprezados, as viúvas crentes eram cuidadas e honradas pela igreja que instalou diáconos por causa delas (At 6.1;1Tm 5.3). É cerne da religião verdadeira, visitar os órfãos e viúvas nas suas tribulações e guardar a si mesmo incontaminado do mundo (Tg 1.27). Paulo tinha sugestões: “Aos solteiros e viúvos digo que permaneçam como eu...”. Mas admitia que se casassem (1Co 7.8-17), especialmente às viúvas mais novas (1Tm 5.14).
                Foi o caso de Idelette, em meados dos anos 1500, cujo marido morreu na perseguição religiosa de seus tempos. Membros da igreja de João Calvino, o reformador solteirão viu nela uma mulher exemplar; casou com ela e teve-lhe muito amor, cuidando de seus filhos mesmo depois de Idelette ter falecido (1Tm 5.3). A Bíblia recomenda que viúvas jovens casem-se novamente.
Na vida cristã de nossos dias, é possível que enfrentemos desafios imprevistos que  jamais desejaríamos — e devemos passar por eles com sabedoria e gratidão no coração. É o caso de alguns viúvos e viúvas que conheço em Cristo (usarei pseudônimos daqui para frente). Margaret era casada com um líder cristão que despontava na política em seu estado, como foi Daniel na Babilônia. Ele morreu em acidente automobilístico, três quadras de sua casa, deixando filhos de seis e três anos. Alguns meses mais tarde, a menina de seis anos chegou para um moço solteiro de sua igreja e perguntou-lhe: Você não casa conosco e fica com mamãe para ajudar a nos criar? O amigo ficou surpreso com o pedido, mas, convivendo com a família, na igreja, viu que a mãe era uma mulher piedosa, além de bonita e inteligente. Acabaram se casando e formando um novo e bonito lar. Outra mulher que conheço ficou viúva quando ainda grávida da primeira filha. Seu jovem marido era líder nacional de mocidade e sua morte causou imenso impacto na igreja. Um irmão na fé casou-se com ela, assumindo não somente a viúva como também a filha que criou junto dela com os filhos que vieram a nascer desse enlace. Hoje é uma família cristã de valor para o corpo de Cristo.
                 Outro casal conhecido, que serve ao Senhor é composto de uma ex-viúva e um pastor que hoje é exemplo para milhares de casais pelo Brasil a fora.
                Quando a morte finda a vida comum, para o viúvo ou viúva  mais idosa, às vezes, é difícil pensar em um novo casamento. Poderá haver expectativas diversas, de novas uniões abençoadas ou estagnadas. Talvez seja difícil para a pessoa tenha vivido junto a alguém por trinta, quarenta anos, relacionar-se bem com outra. Se o casamento foi feliz e equilibrado, a pessoa viúva entrará num novo casamento com amor e disposição de fazer o bem ao cônjuge. Um viúvo conhecido disse que só casaria novamente se a pessoa aceitasse bem suas filhas, amasse o Reino de Deus e missões, e fosse generosa e desprendida das coisas materiais. Encontrou uma viúva de coração missionário e de disposição amável, e seu novo casamento será bênção como foi o primeiro. Outro, escolhendo somente com base na juventude e beleza, casou-se com alguém da idade dos filhos, sem experiência da vida cristã.
Uma nova esposa do tipo do primeiro exclamou: além de ganhar o fulano, ganhei nove netos! Que bênção! Ela vê a vida como dom de Deus e não conta as perdas passadas como sendo peso!
A liberdade em Cristo em relação ao novo casamento de viúvos é imensa, mas tem um porém: “se falecer o marido, fica livre para casar com quem quiser, mas somente no Senhor”. Os casados têm de cuidar dos interesses do outro acima dos seus, e os viúvos já têm histórico e bagagem de muita coisa. Será sempre loucura, para solteiros e viuvo0s casadouros, fazê-lo sem que o Senhor Jesus edifique o lar. Conheço um casal de ex-viúvos, ambos crentes em Jesus, que não deixaram as amarras da vida pregressa para se casarem e, nisso, não permaneceram na entrega e submissão ao Senhor Jesus. Ela não aceitava os filhos dele; ele queria manter em tudo o estilo de vida da falecida — o novo casamento foi cheio de problemas e indisposições. Um casamento no Senhor exige vida de quem está em Cristo ser nova criatura, não permitindo que as coisas velhas moldem e mofem a nova vida.
                Uma irmã amada era exemplar na paixão mútua d o casal. Ele morreu depois de intensa luta contra o câncer, e eu pensei que ela jamais se recuperaria da perda. Ela se encontrou com um velho amigo da família, o qual também havia perdido a esposa de forma trágica, e, em pouco tempo, casaram-se, e estão usufruindo juntamente os anos da maturidade. Têm a admiração e o amor dos filhos de seus casamentos anteriores, no respeito ao que tinham antes e na alegria quanto ao que têm agora, no Senhor.
                Lembro-me de Elizabeth Elliot, cujo primeiro marido foi morto pelos índios Auca, em 1956, quando ela era jovem missionária e mãe de menina pequenina. Casou-se, alguns anos depois, com outro pastor — só poderia casar com alguém que tivesse a mesma visão cristã, e viveram muitos anos juntos, ate que ele morreu. Novamente viúva, Elisabeth casou com mais um servo de Deus, que cuidou dela até ela morrer, no ano passado.
                Voltando aos amigos viúvos e viúvas que ficaram assim nos últimos anos, alguns já começam a despontar um novo relacionamento; outros se envolveram no trabalho missionário ou na vida com os netos ou pais idosos de modo que não tem espaço para outro cônjuge. Outros mais, não têm expectativas futuras bem claras. Fato é que cada caso é um caso. Não podemos dizer categoricamente: um novo casamento não deve ser procurado, nem que tem de ser procurado novo casamento. Cada pessoa é diferente e reage de maneira diferente ao que aconteceu em sua vida. O que une a todos é a cláusula “no Senhor”. No Senhor Jesus, a vida e a morte são dons preciosos, e podem ser experimentados para a glória do Senhor ou para a desonra própria e do nome Santo. O resultado de um é alegria para os seus filhos e para si mesmo. O resultado do outro, é o vazio e inglória para todos os envolvidos.
Sou grata a Deus por uma vida junto de meu marido há mais de 50 anos, e acho que esta será a única de minha existência. “O Senhor tem um plano para cada criatura”, e creio que esse foi o que ele traçou para mim; para outras pessoas, ele poderá conceder que experimentem a felicidade muitas vezes. Sou grata a Deus porque alguns de meus amigos que sofreram perdas aparentemente irreparáveis estão refazendo as suas vidas com novidade sobre as antigas experiências. Que Deus nos dê a graça de desenvolver nossa salvação com tremor e temor, quer vivamos ou morramos, sejamos do Senhor, que faz em nós tanto o querer quanto o realizar! (Fp 2.12-13).

Elizabeth Gomes

sexta-feira, fevereiro 17, 2017

POR QUE VALORIZAR A HISTÓRIA?



O coração do sábio discernirá o tempo e o modo (Eclesiastes 8.5).

O passado não é assim tão remoto
Um pastor perguntou à classe de escola dominical há quanto tempo o mundo existia. Um diácono respondeu categórico: “502 anos — comemoramos os quinhentos anos já fazem dois anos”.  Um candidato ao ministério, referindo-se a um pastor brasileiro, professor num seminário, comentou: “Ele é fera mesmo. Foi aluno do próprio Calvino” ­– pensando que seu professor tivesse estudado poimênica aos pés do grande reformador, quando ele se referia a um professor e clínico atual.
Se você tem menos de trinta anos, não terá participado do protesto Diretas Já. Se está na casa dos vinte, será que chegou a marchar pelo impeachment do Collor? Você se lembra onde estava quando Kennedy foi assassinado?  Se tiver mais de quarenta anos, talvez tenha imagens indeléveis em preto no branco e com matizes de cinza, da realidade do desmoronamento do pretenso Camelot moderno — o choque da vulnerabilidade dos mais poderosos do mundo. Outra imagem inesquecível transmitida pela televisão foi do salto para a humanidade que foi o primeiro passo do homem na lua. Lembro-me daquele dia: um senhor na padaria onde fomos comprar leite afirmou categórico: “Isso é tudo propaganda americana. Montagem. Ninguém jamais irá à lua”.
Você se lembra dos dias de agonia com a doença e morte de Tancredo Neves, de quem pensávamos ser o primeiro presidente não militar desde a revolução de 64?
Meu marido contava a jovens que, antes de sua conversão, jovem, fora preso na revolução militarista e, da cadeia, ouviu um conhecido pastor declarar que “agora acabou a luta contra o comunismo porque eles estão todos presos onde deviam estar”. Os jovens o olharam como se fosse um ocorrido de outro século — e era de vinte anos antes no mesmo século vinte.
Ele mesmo conta de conversas com seu pai que descrevia a ida a São Paulo para participar da Revolução Constitucionalista de 34. Parecia-lhe tão distante no tempo... hoje conversamos com jovens sobre momentos históricos de que participamos e eles nos olham como se fôssemos de outro planeta.
Meu avô contou-me que o seu pai, quando jovem, apanhou do pai dele quando afirmou que um tal de Alexander Graham Bell havia inventado um aparelho com o qual se podia falar com pessoas distantes a mais de um quilômetro. “Isso é mentira, porque só Deus fala à distância”.

Lembranças pessoais
Recordo-me bem de um dia, em agosto de 1954, quando meus pais, eu aos seis anos de idade (está vendo — agora vocês sabem!) e minha irmã de três, chegamos ao Rio de Janeiro depois de um período de férias nos Estados Unidos. O navio atracara no Rio para os turistas passarem o dia antes de prosseguirem para Santos, o destino final. Minha irmãzinha se perdeu no centro de Copacabana e o taxista não queria voltar com meu pai para procurá-la porque o trânsito estava desgovernado: era o dia em que Presidente Vargas suicidou.
As manchetes sobre gente morta a tiros ao tentar atravessar o muro de Berlim que rasgava a cidade em Oriente e Ocidente ficaram gravadas em minha mente impressionável de doze anos. Agora já nos esquecemos dos poucos anos que passaram desde que o muro da vergonha foi despedaçado e pedaços dele vendidos como lembrança para turistas na Alemanha do final do século passado.
Eu tinha treze anos, e era só uma formiguinha entre as milhares de pessoas, na praça dos três poderes, que assistiam Juscelino Kubitschek inaugurar Brasília, a capital da esperança. Na semana anterior, minha irmã tinha acompanhado papai em visita ao presidente. Guardamos até hoje a foto em que a encantadora menina foi beijada pela primeira dama (nossa rainha), Dona Sara Kubitschek.
Vivi um ano nos Estados Unidos quando se faziam treinamentos, na pacata cidade em que vivíamos, para nos conduzir a abrigos antibombas em caso de ataque nuclear. Não se sabia, nunca, até depois, se era apenas um ensaio ou o acontecimento de fato. O pavor que se tinha do domínio comunista no mundo era disseminado pelo “mundo livre”. Hoje, o mundo livre viu ruir o poder da União Soviética, mas vive com pavor do terrorismo de grupos extremistas muçulmanos. Quem conhece gente que foi tragada pelas torres do World Trade Center em onze de setembro sabe que não existe lugar seguro no mundo. Lembra-se de onde você estava quando ouviu a notícia?

Alienados no presente
                Hoje, a maioria das pessoas não tem noção de história — nem as da igreja nem as do mundo. Igrejas chamadas históricas oscilam com os tempos. Igrejas pentecostais cuja história tem menos de cem anos estão mais tradicionais. Igrejas da terceira onda têm seus “apóstolos” que, em vez de fundamentar a igreja invisível de Cristo, gastam 70 % de seu tempo na televisão pedindo dinheiro e descrevendo as bênçãos da prosperidade. Abundam as afirmativas amalucadas de desconhecedores de história.
Ouvi alguém afirmar que Calvino era um déspota assassino, sem saber que o reformador sequer fazia parte do conselho da cidade nem a razão do seu apoio. Essa pessoa se agarrava a chavões tendenciosos e ignorava por completo o reavivamento que seguiu a Reforma Protestante, fazendo com que, em um ano, a igreja de Genebra abrisse mais de cem novas igrejas e no segundo ano, mais de mil — junto a uma transformação social que incluía o abrigo e sustento pessoal de centenas de pessoas desprovidas de seus bens e familiares (essa era a estirpe dos reformadores!). Voltaram à França com uma visão holística do evangelho perto da qual nosso evangelicalismo xôxo e antropocêntrico empalidece.
“Os que não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo”, disse o pensador George Santayana.[1]
Em vez da visão de remir o tempo conforme Efésios 5.16, o tempo presente é visto como a hora para se aproveitar ao máximo as oportunidades — para si mesmo! Queremos mais tempo de lazer, tempo para nós mesmos, tempo para investir na pessoa mais importante de minha vida — eu! ­– esquecidos do que disse Paulo sobre gastar-se e deixar-se gastar “em prol das vossas almas, ainda que mais vos amando seja eu menos amado” (2Co 12.15).
Por meio dos livros e de comentários da televisão, somos comprovadamente crentes quando temos sucesso nos negócios, no amor, na vida. Um Jó sentado no pó, destituído de bens, família e saúde, ou um Moisés por quarenta anos pastoreando rebanhos do sogro no deserto antes de gastar mais quarenta anos dando voltas sem terra num deserto ainda mais vasto, conduzindo um povo resmungão, criando nele uma ética de vida para a eternidade, ou um Paulo a quem “Demas me abandonou por amar mais o presente século” — são alheios aos nossos anseios.
 Cristo afirmou que “no mundo tereis aflições” e passou por um tribunal infame e uma morte vergonhosa, abandonado pelos que o seguiram durante três anos de ministério — todas essas histórias “negativas” são estranhas à visão de êxito na vida cristã, proposta pela mídia e pelos púlpitos evangélicos.
Perdemos a visão do tempo presente, achando que somos donos de nosso próprio tempo e podemos gastá-lo em proveito pessoal. Perdemos a visão da atualidade em que fomos inseridos, do tempo que se chama hoje e que amanhã, não volta.
                Diz o educador cristão Robert Pazmiño: “O cristão não escolheu o tempo para sua jornada histórica, mas estar inserido em determinado tempo histórico requer aprendizado do passado e viver no presente tendo em vista o futuro de Deus”. [2]
Sem as raízes do passado, sem saber onde pisamos na atualidade, é impossível que tenhamos uma visão acertada do futuro. Esvoaçamos como borboletas que se agitam e pousam sobre de montes de esterco, em vez de flores, sem jamais alçar com asas como de águias que voam sem fadiga.
A Bíblia começa com uma declaração que engloba tempo, espaço e matéria: “No princípio criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1) e o evangelho se resume na entrada do Deus infinito na história da humanidade finita, dando-nos eternidade de glória: E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como a do unigênito do Pai (João 1.14), na cruz e na ressurreição. A pregação do Evangelho de Paulo incluiu uma visão do poder de Deus na história: “de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação” (Atos 17. 26). Como não prestar atenção à história de nossa fé, à história de nós mesmos, e à inserção do Deus que fala e age dentro da história humana para nos proporcionar apoios sólidos na terra e asas largas e fortes para vôos mais altos?!
Elizabeth Gomes




[1] George Santayana, The Life of Reason or the Phases of Human Progress, vol I, p.284, citado por Millard J. Erickson em The Postmodern World (Wheaton, Ill.: Crossway Books, 2002), p. 1.
[2] Robert W. Pazmiño, Questões Fundamentais de Educação Cristã (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 2005).

sexta-feira, fevereiro 03, 2017

COISAS DE SOGRA



Estive pensando sobre o que me leva a escrever. Sem dúvida, idéias e pessoas mexem comigo. Provocam, instigam, fazem pensar e ruminar as coisas. Conduzem para longe e cavam fundo. Idéias podem ser boas ou más, inteligentes ou insossas, mas uma idéia sempre atual e válida é a questão de relacionamentos.

Já os relacionamentos são intercâmbios entre as pessoas, e nasceram com idéias de amizade e bem-querer. Vivemos e nos movemos pelos relacionamentos com pessoas. A Pessoa de Deus – nele nos movemos e existimos, porque somos dele (At 17.28) – norteia e dá razão a todos os demais relacionamentos, sejam grandes ou pequenos. Se o relacionamento com Deus for equilibrado a ponto de vivermos para ele, e simultaneamente desequilibrado a ponto de ELE ser tudo – o começo, o fim e o meio – segue que nossos relacionamentos interpessoais também imitarão aquele que temos com o Criador.

De menina, eu queria me dar bem com as pessoas. Estar de bem, ser aceita e admirada. Isso me levou às alturas e, muitas vezes, fez-me descer ao fundo do poço. Outro dia, estive pensando numa pessoa que caracterizou seus relacionamentos como Amarga. Estava lendo (e bebendo, ao traduzir) o livro de John Piper, Doce e amarga providência – revendo a história de Rute (publicação da Hagnos). Três mil anos e ainda atual, a singela história trata de relacionamentos comuns e ações totalmente incomuns, singulares. A soberana providência divina permeia cada linha desta história, e provoca na gente um gosto de “quero mais”. Daí, minha nora Márcia me instigou:

– Por que você não escreve sobre o relacionamento de sogra e noras?

Minhas noras fazem dessas coisas. As duas estão entre minhas melhores amigas, e são as com quem sempre tenho bons papos. Pudera – são minhas vizinhas mais próximas, minhas confidentes, minhas motoristas. Meu genro também é um grande amigo, mas mora longe, e como sou mulher, e obviamente elas também pertencem ao gênero feminino, acatei a idéia.

Quando me casei aos dezoito anos, Deus me deu sogros extraordinários. Os pais do Lau me adotaram e apoiaram, e eu os assumi como a Rute da Bíblia. No caso da antepassada do rei Davi e do Rei dos Reis que viria de sua estirpe, a nora é que era a mulher de valor (Não insista que eu deixe você sozinha: teu Deus será meu Deus). Na história da Charles que virou Gomes, os “velhos” Wadislau e Eulina demonstraram a graça de Jesus em tudo que fizeram por mim.  Sem jogar, ganhei na loteria ao ganhar novos pais!

Contudo, Lau explica aos casais que grande porcentagem dos problemas entre casais – jovens ou mais maduros – se deve aos relacionamentos com sogros. As clássicas piadas são constantes na cultura e no cotidiano, e carregam mais que pitadas de verdade.

– O que é que você quer que eu diga, Márcia? O fato de que meus filhos fizeram escolhas nobres acima de qualquer nora ou genro que nós merecêssemos?

Quando as vizinhas de Noemi parabenizaram a antes falida e amargurada solitária pelo nascimento do neto, disseram:

Seja o Senhor bendito, que não deixou, hoje, de te dar um neto que será teu resgatador, e seja afamado em Israel o nome deste. Ele será restaurador da tua vida e consolador da tua velhice, pois tua nora, que te ama, o deu à luz, e ela te é melhor do que sete filhos (Rute 4.14).

Meus netos não são a única razão pela qual as noras são preciosas (se bem que netos e noras nos dão muito orgulho e renovam a juventude). Os netos não são resgatadores no sentido de parente remidor da trama de Rute – não são eles que restauram nossa vida e nos consolam – quem o faz é o Descendente de Rute, Jesus Cristo – o Supremo e Único Remidor. Nós somos abençoados por ter filhos saudáveis, homens e mulher de Deus – não como os falecidos filhos de Noemi – e assim, não teríamos necessidade de uma “nora melhor do que sete filhos”. Contudo, pela abundante, exagerada e pródiga graça divina, tenho duas noras e um genro tão bons quanto os lendários sete. Aí, fazendo as contas, é como se tivéssemos vinte e um filhos além das três flechas na nossa aljava – mas que exagero!

            Não tenho espaço para discorrer sobre os segredos do bom relacionamento entre sogros, noras e genros, nem cunhados ou irmãos (você já leu meu livro Irmãos: cúmplices e rivais em aliança, da Cultura Cristã?). No entanto, quero destacar três características que fizeram com que meus sogros me abençoassem no relacionamento que desenvolvemos até a morte de cada um – e que quero imitar.

1)      Aceitaram-me como sou, não tentando mudar meus hábitos ou jeito. Isso foi um imenso desafio, pois eu vim de outra cultura e muito do meu jeito era contrário ao jeito deles pensar ou fazer. Uma vez que Lau declarasse ser eu a sua mulher para toda a vida, eles me acataram, e não fizeram diferença entre seus filhos e eu mesma.

2)       Ajudavam sem cobrar juros. Conheço muitos pais que ajudam os filhos, mas esperam algo em troca: reconhecimento, atendimento imediato, que façamos as coisas do seu jeito. Dão presentes “com cordas amarradas”. Não “Seu” Wadislau e Dona Eulina. Quando nos casamos, ainda estávamos no seminário, e eles nos ajudaram no que podiam – sacrificando até o que não podiam. Mas não puseram nada “na conta”.

3)      Respeitavam o casal jovem e inexperiente e davam espaço para nossos erros, sem cobranças. Serviam ao Senhor, e viam os filhos como servos do Senhor – com o respeito de Filhos do Rei dos Reis, e a humildade do menor dos servos.

Ah, norinhas queridas – quisera imitar meus sogros sempre! Sou grata porque não é uma ogra que vocês têm de homenagear, mas uma mãe-na-lei, uma irmã amiga, como o nome: Amiga, da moabita que entrou na linhagem de Jesus.

Elizabeth Gomes