sexta-feira, março 31, 2017

LOUCOS GLORIFICADOS




         Lembro-me de estar sentada na cozinha de minha avó Kate, vendo o velho de cabelo comprido e mãos retorcidas.
— Então, você é a menina do Dougie, ele disse.
Eu tinha cinco para seis anos, amava meu pai Douglas e nunca ouvi ele ser chamado de Dougie, mas soava como boa mistura de Douglas e Daddy. Acedi. Gato comeu a língua. Era a primeira e única vez que me encontrei com meu vovô Thomas Charles. Mais tarde perguntei a meus pais sobre ele e responderam apenas:
—  Ele está num hospital. Institucionalizado. Sempre foi meio louco.
Por que havia quadros tão bonitos pelas paredes da casa de Grandma Kate, embora todo mundo dissesse que ela era tão pobre e ele nunca havia dado nada a ela? Por que Grandpa Charles usa cabelo comprido – homens o usam curto? Exceto nos quadros de Jesus e Moisés e mais gente da Bíblia. Será que meu avô é dos tempos bíblicos? Será que ele morreu? Uma vez, quando visitamos o parque e zoológico de Richmond, o papai me disse que o pai dele tinha trabalhado muito nos parques; que era arquiteto de paisagens (paisagista). Mais tarde perguntei a mamãe o que era landscape architect, e ela respondeu:
— É um nome glorificado para jardineiro.
Eu gostava de nomes glorificados . Assistindo a televisão pela primeira vez na vida, fiquei encantada com algumas das propagandas: “Shampoo Haloglorifica os seus cabelos!” e tinha certeza que usando esse xampu eu não só ficaria mais linda, como também de alguma forma mais santa.
Eu tive sempre uma vaga lembrança do avô desconhecido, que foi pai de doze filhos e deixou minha valente e perfeita avó matriarcal a criá-los sozinha durante a Grande Depressão. Alguns anos depois, ouvi minha mãe e meu pai mencionarem que ele morrera na “Instituição”. Nada de grande luto. Só o vazio.
Hoje em dia, os problemas das doenças mentais são diferentes. As pessoas não ficam internadas em asilos por longos períodos. Vários amigos que conheço dos dois lados do Atlântico têm membros da família que lutam contra doenças mentais. Embora, hoje, não haja mais uma cultura de “internação” ou de mandar as pessoas que “ficaram loucas” para “instituições”, muitas são as questões não resolvidas. As famílias têm vergonha de falar delas. Frequentemente, familiares e amigos desejariam que houvesse simplesmente um jeito de “trancafiar” o “ofensor”. Membros da família taxados de “doidos” gastam adoidados. Talvez tenha sido a criança mais linda da casa, mas começa a fazer coisas estranhas e irresponsáveis. Acaba com todos os pertences da casa. Espera presentes de natal todo dia. Esconde e guarda comida em lugares esquisitos. Coisas como essas, quando alguns não se drogam e vão pelados para a rua em extrema insanidade. São crianças velhas — jamais cresceram e nunca souberam o que um jeito manso e gentil poderia fazer para mais uma vez torná-los belos.
Uma pessoa em recuperação atendeu ao telefone, na clínica Refúgio que meu marido dirigia em Brasília, e ouviu a pessoa na linha:
— É aí que ficam os loucos? — e ele, sem perder o compasso, respondeu:
— É. Aqui o melhorzinho baba!
Especialmente depois de sofrer uma AVC, eu sentia que não só o “melhorzinho” baba, mas o ditado brasileiro “entre médico e louco, todo mundo tem um pouco” me pareceu mais verdadeiro. Edward Welch descreve doenças “que caracteristicamente alteram o intelecto, as emoções ou capacidades comportamentais”. Estas podem “impedir o entendimento, colocar limitações sobre a expressão do coração, dando ocasiões para tentação e pecado, suscitando problemas singulares para as famílias ... porque elas imitam problemas espirituais do coração, são muitas vezes diagnosticados erradamente por conselheiros e médicos”.[1]
Ora, um blog não é lugar para um profundo e abrangente ensaio sobre doenças mentais – e com certeza eu não sou qualificada para fazer análise desses problemas. Tenho alguns amigos que são neurologistas respeitados, muitos que são psicólogos clínicos e até mesmo alguns psiquiatras, além dos conselheiros pastorais e de família com os quais tenho maior conhecimento. Só posso escrever como leitora cristã que deseja saber o que a Bíblia oferece aos que se encontram perturbados. É principalmente uma questão de esperança e de encorajamento.
Escrevo como quem baba – alguém que nem sempre consegue controlar a quantidade de saliva que produz – muito menos as questões mentais e psicológicas que confrontamos diariamente.       Escrevo como a criança que descobriu que seu avô foi rotulado de “louco” e mandado para um manicômio. Poderá ser uma jovem mãe que descobre que a criança que gerou e ama de coração tem uma doença mental que faz com que ela se perca. Um casal de meia idade que têm de lidar com a senilidade dos pais. Uma avó dos “anos dourados” a enfrentar a realidade da sua própria carência quando se esquece mais vezes do que se lembra das coisas, e que se lembra bem de “muito tempo atrás” — mas que deixa o feijão queimar e o chuveiro ligado até acabar a água, e que confunde os aniversários dos netos. Escrevo para amigos que tem medo de “perder o juízo”. Muitos há que querem agarrar com garra cada detalhe do passado para que não suma, ao mesmo tempo que desejam esquecer as coisas que doem no fundo mais profundo do coração e que ainda hoje os fazem sentir como “a criança sem mãe” do Negro spiritual.
       As deficiências mentais e emocionais nos lembram que ninguém é realmente normal. A deficiência demanda paciência, tempo, confiança, submissão e esperança – qualidades que a maioria de nós todos, normais, leve ou severamente deficientes, temos muita falta em nosso mundo pós moderno. Há necessidade de “consciência de que na vida, em algum tempo e em algum nível, passaremos por sofrimento físico e/ou psíquico”.[2]  Michael Beates faz alguns duros questionamentos:
Por que nós ... exigimos que todo mundo seja normal e pareça igual? Por que ... nos esforçamos tanto para esconder as pessoas com deficiências de nossa vista de todo dia? Por que algumas pessoas alquebradas visível e invisivelmente muitas vezes sentem que têm de esconder seu problema a fim de se juntar ao povo de Deus para o culto? Finalmente, e talvez mais importante, que respostas as boas novas do evangelho nos dão para estas perguntas, e como o evangelho nos dá esperança nessas situações.[3]
Uma amiga querida que luta com a bipolaridade e personalidade desintegrada; tem ilusões de que, se parar de tomar os remédios “pela fé”, o Senhor irá curá-la mediante ministrações televisivas de algum falso evangelista. Outra pessoa amada fica trancada em seu quarto com seus sonhos, enquanto espera que seja curada por um novo relacionamento, um novo amor – então, ela enterra os medicamentos e tenta experimentar novos amores.
Deficiências dessa natureza não são estranhas à Bíblia. O rei Saul foi atormentado por surtos de loucura para as quais Davi era chamado para cantar, tocar a harpa e consolar o rei – Primeiro caso de terapia musical que temos documentado (1Sm 14.14-23). Mais tarde, Davi buscou refúgio com o rei de Gate e fingiu-se de louco para salvar a própria vida (1Sm 21.10-15). Jó ficou totalmente desprovido, em desalentado e desespero, e sua mulher deu-lhe conselho de louca (Jó 2.8-10). A razão e o entendimento foram tirados da mente e do comportamento de um rei da Babilônia, Nabucodonozor, que se comportou como animal irracional (Dn4). Mais tarde, tanto a razão quanto o governo lhe foram restaurados.
A Bíblia percorre gama imensa de descrições, desde “símplices” (13) estultícia (9) louco ou loucura (24), estúpido ou estupidez (5) insensatez (54), falto de razão (3). O livro de Provérbios está prenhe de contrastes entre sabedoria e loucura, bom senso e insensatez, exemplificando diversos tipos de “problemas” espirituais, mentais, e emocionais que todos nós já vimos, quando não os experimentamos pessoalmente.
Na preparação para entrar na terra prometida, Moisés apresentou a seu povo a plenitude de bênçãos ou destituição das maldições conquanto eles obedecessem ou desobedecessem a Palavra de Deus. Fiquei intrigada por uma das maldições mencionadas: “O Senhor te ferirá com loucura, com cegueira e com perturbação de espírito ... e te enlouquecerás pelo que vires com teus olhos” Dt 28.28, 34). Uns 2000 anos depois disso, Paulo adverte a Timóteo sobre a maldade dos “últimos dias”, que, uns 2000 anos depois, parece em cada detalhe descrever os nossos dias:
...os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder ... sua insensatez será a todos evidente (2Tm 3.2-9).
A lista acima descreve tais comportamentos não como loucura, mas como pecados. Na cruz, Jesus orou: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem” (Lc 21.34). Há uma deficiência devida a ignorância, a qual é livremente perdoada. Mas ao olharmos o Evangelho, vemos que o Espírito estava sobre Jesus para curar e libertar. Beates diz:
...até o fim, continuamos a ver (embora às vezes sutilmente) um importante fio no tecido do nosso entendimento da fragilidade (espiritual e emocional) das pessoas no evangelho, e uma fraqueza (física representando nosso estado espiritual) como condição humana normativa. Reconhecer esta realidade é o primeiro passo para abraçar o poder vivificador do evangelho.[4]
Há em nossa família um menino muito especial que luta com deficiências de aprendizado, desafios mentais e neurológicos, e de certa forma sempre precisará de ajuda, médica e psicológica, para um bom funcionamento. Mas ele ama a Jesus e foi ensinado na sua Palavra. Quando era ainda bem novinho estava numa escola onde negavam a Trindade, e ele disse a seu pai, referindo-se à professora:
—Pai, diga a ela que Deus é três em um: Pai, Filho e Espírito Santo. Fala para ela como diz na Bíblia!
Mais recentemente, ele tem dependido do Senhor para fortalecê-lo nas áreas em que é fraco, e ora pedindo que “Deus me use com minhas deficiências para ajudar outras crianças como eu a conhecer a Jesus”. Temos tanto orgulho deste jovem quanto dos outros netos. Todos – normais, superdotados ou deficientes.
       O Evangelho é que nos dá esperança – inteiros ou “especiais” – de inúmeras maneiras. Paulo o diz com humildade e triunfo:
Visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes....as coisas humildes do mundo e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são, a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus. Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção, para que, como está escrito: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor (1 Coríntios 1.26-31).

Elizabeth Gomes




[1] Counselor’s Guide to the Brain and its Disorders, Edward Welch, Grand Rapids: Zondervan, 1991, p. 107
[2] Disability and the Gospel, Michael S. Beates, Wheaton: Crossway, 2012, p. 17.
[3] Disability, p 71.
[4] Disability, p. 61.

quinta-feira, março 30, 2017

AUTOIMAGEM — impressão & expressão (estudo 2)



Uma aplicação das doutrinas de justificação e
santificação à ideia de autoimagem

Impressão ou expressão
 “Ainda não me achei”, “não me entendo”, “sou complicado” e coisas semelhantes — são do tipo do comentário feito pela fatigada personagem de Agur, em Provérbios 30.1-3: sou demasiadamente estúpido para ser homem; não tenho inteligência de homem, não aprendi a sabedoria, nem tenho o conhecimento do Santo. Soa familiar (mesmo disfarçado)? Por que é que a gente é tão difícil? Por que é que, muitas vezes, sentimos que somos forçados ou nos forçamos a representar papéis que não são os nossos, que aparentemente nada têm a ver com quem nós somos? Na verdade, tem e não tem. Há papéis funcionais que confirmam o que somos (filhos, pais, irmãos, amigos etc.). E há papéis erráticos que são como caricaturas a realçar idiossincrasias.
Uma das maneiras caricatas com que nos apresentamos é a da atuação “por expressão” (ou altruísmo) e “por necessidade” (ou carência, egoísmo). Esses dois movimentos dos atos mentais e operacionais se devem a sermos motivados ora pela impressão que temos de nós mesmos ora pela expressão do que pensamos ser. Nos sentidos aqui presumidos, impressão é a ação de objetos exteriores sobre os nossos sentidos, com abalo, agitação e comoção do espírito. Expressão é exteriorização de pensamento e idéias por meio de atos ou palavras, figuração representativa, modelo, e personificação formativa do caráter. A proposta bíblica é que, quando somos impressionados por coisas do alto, pelo EU SOU, exprimimos nosso “eu” verdadeiro por meio dos papéis de filhos (de Deus), irmãos (em Cristo), e servos (de Deus e uns dos outros). Ao contrário, quando somos impressionados por pessoas e coisas, operamos reativamente, tentando causar uma impressão por meio de um “eu” artificial autônomo.
Está achando difícil? Certamente não será mais difícil do que nós mesmos nos achamos. Vamos lá, eu ilustro: imagine pessoas em uma situação comum no trânsito da cidade. Um transeunte experimenta sentimentos e pensamentos diversos enquanto caminha na provável segurança de uma faixa de pedestres. Ele considera uma possível imaturidade e impaciência da pessoa ao volante (que ele percebe como um intruso em seu passeio). Esse andante projeta uma imagem sob “impressão”. O motorista, por sua vez, também nutre pensamentos e sentimentos misturados, à espera que o semáforo fique vermelho para o pedestre (um invasor de sua rua) e verde para a sua própria liberdade. Esse piloto experimenta uma “expressão” de poder. Nem tudo, porém, é ou verde ou vermelho: o que atua por expressão reage a impressões diversas do mesmo modo que o que atua por impressão reage a variadas expressões do ambiente físico e relacional (por exemplo, pessoas ao lado, semáforo, guarda de trânsito, religião, mídia etc.). Pense no que ocorre quando o motorista percebe que os transeuntes são nada mais nada menos do que os Beattles.
Autoimagem em termos bíblicos
No estudo 1, “Uma aplicação de conceitos bíblicos à ideia de autoimagem”, citamos dois textos coligidos por Salomão: Como na água o rosto corresponde ao rosto, assim, o coração do homem, ao homem, e: como imagina em sua alma, assim ele é (Pv 27.19; 23.7). Comentamos que a Escritura, em muitos lugares, revela que percepções de autoimagem baseiam-se sempre em um de dois pontos de partida: ou de uma visão do alto, verdadeira e sábia, ou de uma visão ensimesmada, artificial e estulta. Ocorre que a verdade é infinita e sua totalidade não cabe no cenário do homem finito, e, mais, a estultícia é incapaz de apreender e de reproduzir a totalidade da verdade. Assim, nós resolvemos o impasse por meio de considerar as coisas de modo perspectivo. Nesse horizonte humano, há dois pontos de fuga necessários. Um é o ponto de fuga no infinito, de onde Deus revela a si mesmo e, em sua sabedoria, o conhecimento que a pessoa poderá ter de si mesma por meio do reflexo da imagem divina. O outro é o ponto de fuga imediato, míope, em que a pessoa rejeita o conhecimento de Deus e reflete a si mesma, projetando a própria imaginação de sua relação com o mundo e com o próximo.
Impressão da lei e expressão da graça
Dá para perceber como é que estamos sempre mudando de face? Num momento justificamos nossas crenças e nossas ações e, noutro, separamo-nos de qualquer obrigação. Num momento sentimo-nos julgados, noutro, somos julgadores e, noutro, agimos como se estivéssemos além que qualquer lei ou juízo. Ora gritamos como doidos numa montanha russa ora mantemos uma impassível cara de pôquer. Tudo para causar um impacto pessoal, passar uma imagem falsa, levar a melhor, disfarçar uma vergonha... É da nossa natureza decaída, tapar o rosto para esconder carência de um valor de face. Não foi assim com Moisés, que punha véu sobre a face, para que ... não atentassem na terminação do que se desvanecia (2Co 3.13)?
Essa situação vem do Éden perdido, em função da culpa e do medo decorrentes. Esses dois sentimentos levam-nos a julgar-nos e aos outros de maneira incorreta, e a temer a exposição de nosso “eu”. Tão logo nossos primeiros pais pecaram, contudo, o Senhor prometeu-lhes a redenção (cf. Gn 3.15), isto é, a salvação por meio do Descendente da mulher — o Filho de Deus feito homem em cuja imagem fomos criados e somos transformados. A transformação envolvida nessa salvação é descrita no Evangelho por dois termos que preenchem a nossa carência de significado e de valor, a saber, justificação e santificação. A justificação e a santificação removem a culpa e o medo. A justificação redime o pecador da condenação da lei, segundo a qual ele era alheio a Deus por natureza, desconhecedor de sua própria origem e destino, e sem esperança num mundo de desafetos relacionais. Nesse sentido, a justificação liberta o crente das algemas da escravidão “para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rm 8.21). A santificação, na mesma base da justificação, redime o salvo do poder escravizador do pecado e capacita-o a cumprir o espírito da lei. Assim, somos conduzidos ao conhecimento de Deus, ao conhecimento de nós mesmos, e ao conhecimento do outro com diferente senso de justiça e destemor por meio da aliança promulgada pelo próprio Deus, em Cristo e pelo seu Espírito.
O problema, portanto, é que nenhum esforço humano para transformar o “eu” poderá conjugar o ser em outra pessoa, singular ou plural. Isso quer dizer que ninguém muda a si mesmo, tal como ninguém pode levantar a si mesmo pelos cordões dos próprios sapatos, nem outros poderão mudar alguém, seja qual for a força do cordame ou as excelências das tralhas sociais ou psicológicas. Siga o raciocínio:
(1) Nossa vida e o conhecimento de nossa identidade residem no Verbo de Deus em cuja semelhança fomos criados a fim de refletir a glória de sua própria identidade e para usufruir o processo (cf. Jo 1.1-14); é disso que fala o texto de Ef 1.1-4, resumindo o processo na expressão para louvor da glória de sua graça (cf. vv. 6, 12, 14).
(2) A Bíblia diz também que todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus (Rm 3.23-24), isto é, todos nós decaímos do estado original, por causa do pecado, e não temos mais condições de refletir a imagem de Deus. Todas as pessoas deveriam saber as coisas do homem mediante o seu próprio espírito, mas o homem natural, decaído, não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente (cf.1 Co 2.11-14).
(3) As pessoas não regeneradas não podem, portanto, conhecer a Deus nem a si mesmas, como cita o apóstolo: não há quem entenda, não há quem busque a Deus ... Não há temor de Deus diante de seus olhos. Tais pessoas não temem a Deus para obedecê-lo, tornando-se, portanto réus de sua lei. Uma lei que condena os fora da lei e aos que vivem na lei ... para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado (cf. Rm 3.11-20). Até mesmo, os que pretendem viver sem a lei de Deus mostram a norma da lei gravada no seu coração quando a consciência e os pensamentos testemunham contra eles mutuamente acusando-se ou defendendo-se (Rm 2.14-15).
             Se as coisas são mesmo assim, como poderemos abandonar nossa impressão caricata para passar, então, à expressão da pessoa que Deus criou para que fôssemos? Paulo responde à questão, em Gálatas 3.22-29, dizendo que a Escritura encerrou tudo sob o pecado, para que, mediante a fé em Jesus Cristo, fosse a promessa concedida aos que crêem. Todos, crentes e incrédulos, nascemos sob a tutela da lei e nela encerrados, uns, buscando viver pela lei de Deus e, outros, pela própria pela lei. Àqueles aos quais é revelada a fé da salvação pela graça consideram a lei de Deus não como salvação por si mesma, mas como preceptora para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé. Todos nós que fomos batizados em Cristo e inseridos em seu corpo, a igreja, somos revestidos de Cristo. Como Paulo disse em outro lugar, somos regenerados, feito novas criaturas para a santificação (ou processo de desenvolvimento em fé e prática da Palavra de Deus). Daí em diante, vamos nos desvencilhando dos papéis esdrúxulos a que naturalmente nos obrigamos e somos obrigados — Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher — para assumir a herança que nos liberta para uma vida de genuinidade e de autenticidade porque todos vós sois um em Cristo Jesus.
               
O processo de santificação é operado em nós pelo Espírito de Cristo com base na justificação. Em Efésios 1.1-14, Paulo diz que somos feitos herdeiros das riquezas de Deus para sermos sua própria herança. Em Romanos 8.17-30, o apóstolo diz que somos herdeiros  de Deus e co-herdeiros com Cristo, andando com a ele em condição terrena para sermos também com ele glorificados. Como é que isso ocorre? A própria criação, nosso ambiente físico e social, aguarda a revelação dos filhos de Deus! Tal como nós, ela está sujeita à vaidade ... por causa daquele que a sujeitou, na esperança de ser redimida da corrupção para a liberdade dos filhos de Deus. Nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo. Até lá, no entanto, somos educados na paciência e na perseverança nos sofrimentos e na glória de Cristo. E não estamos sós nessa caminhada, mas temos a assistência do Espírito Santo a operar em nós propósito de sermos conformes a imagem do Filho de Deus. O Espírito de Cristo nos fortalece e habilita a sermos autênticos filhos e genuínos irmãos tanto na concessão do poder interior, por meio da oração, quanto no controle de todas as coisas em benefício da revelação da imagem de Cristo em nós.
Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou (Rm 8.24-30).
Wadislau Martins Gomes

sábado, março 25, 2017

AUTOIMAGEM (estudo 1)


        Aplicações de conceitos bíblicos à ideia de autoimagem.
               
Relendo os meus poetas brasileiros preferidos, dei com um poema que, há alguns anos, soou-me belo, mas desesperado. Hoje, o Autorretrato de Mário Quintana fez-me pensar num texto de Salomão, no Eclesiastes bíblico. Coisa da nossa terra, “debaixo do sol”, tão na cara como um nariz. Os dois poetas não puderam se furtar ao anseio otimista nem à constatação pessimista da presente realidade. Veja o Quintana:
 No retrato que me faço
— traço a traço —
às vezes me pinto nuvem
às vezes me pinto árvore...
ás vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida em que busco
-- pouco a pouco --
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!
Diferente do Mário, o rei Salomão traceja, em Provérbios 27.19:
Como na água
o rosto corresponde ao rosto,
assim o coração do homem,
ao homem.
Fosse uma conversa levada num banco de praça e eu imaginaria a ironia do velho sábio de lá a sussurrar ao rei de cá: “É isso aí!”. Maior contraste, ainda, quando o rei Davi puxa o traço: O temor do Senhor é o princípio da sabedoria; revelam prudência todos os que o praticam. O seu louvor permanece para sempre (Sl 111.10).  E quando Salomão, de novo, dá o laço: Quem é como o sábio?E quem sabe a interpretação das coisas? A sabedoria do homem faz luzir o seu rosto, e muda-se a dureza de sua face (Ecl 8.1).
Dá para perceber que o tema de um autorretrato tem relação com os temas da sabedoria e da estultícia implicadas numa autointerpretação. Coisas como autoimagem, autoconceito, autoestima, e daí em diante, fazem parte do ideário humano. São palavras de especial riqueza e de variado sentido usadas para se descrever o pensamento e o sentimento de autoconsciência, noção de autoexistência, valoração própria, etc. Especialmente, elas apontam para uma relação singular entre uma observação mais alta ou mais baixa e as decorrentes interpretações que as pessoas fazem de si mesmas.
Ambas, a estultícia inerente às observações e interpretações das filosofias dos homens sem Deus, e a sabedoria de Deus revelada nas Escrituras, são concordes ao dizer que nós vivemos em um mundo imagens. Aristóteles usou o termo fantasia para se referir à capacidade humana de pensar por meio de imagens. Há um mundo de formatos que nos obrigam a pensar em algum tipo de imagem, até mesmo, no caso de ausência de visão física, ou de afantasia, quando excepcionalmente uma pessoa não consegue formar imagens mentais. Nossa mente é tomada por formas do próprio corpo, objetos de uso, geografia próxima, e daí em diante. De modo geral e normal, vivemos num mundo imaginado. Tanto percebemos imagens quanto nos comunicamos por meio de figuras de linguagem.
De fato, as imagens que fazemos e as que comunicamos são partes da nossa própria criação e formação. Somos motivados no coração pela maneira como vemos a Deus e, consequentemente, ao mundo e às pessoas. Nessa dependência, as maneiras pelas quais outros vêem a Deus, coisas e pessoas acabam condicionando os nossos atos mentais e comportamentais. Sempre imaginaremos nossos retratos como refletidos numa dessas duas águas, ou do alto como chuvas benditas ou de baixo como poças narcisistas. A Escritura bíblica fornece um princípio básico geral para a ciência e arte de imaginar, dizendo: Pensai nas coisas lá do alto, não nas que são aqui da terra (Cl 3.2). Nessa linha, a Bíblia toma como certo que todo mundo pensa e que, em matéria de autoconsciência humana, há dois pontos de vista: um espiritual, verdadeiro, vindo “do alto”, e, outro, “terreno”, natural e biologicamente engendrado.
                O apóstolo Pedro, num risco definitivo, diz que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo (2Pd 1.20-21). Com isso, ele desenha uma linha do horizonte da observação humana, posicionando acima dela o ponto de fuga infinito, isto é, a revelação divina, e, abaixo dela o ponto de fuga da interpretação humana.
Aqui, aplicando o texto à ideia de autoimagem, apomos: quem nós somos somente encontra significado verdadeiro na revelação divina, vinda do alto. Nem o horizonte da perspectiva humana será o ponto de vista particular que elucida a observação que a pessoa faz de si mesma nem o ponto de fuga da natureza servirá de parâmetro para uma autoestima ou avaliação de si mesma. Assim, é mesmo uma loucura, achar que alguém se pinta ou se busca, ou cria coisas que um dia existirão, na ânsia de encontrar a sua eterna semelhança. Antes, a verdadeira sabedoria crê que há um ponto de fuga superior, revelado do alto, por Deus, como luz que ilumina os nossos olhos e o próprio mundo para que o interpretemos (cf. Jo 1.1-4) Sem esse ponto de fuga no infinito, no próprio Deus, o que restará é “um desenho de criança... corrigido por um louco”. É assim que a Palavra descreve: se alguém é ouvinte da palavra e não praticante, assemelha-se ao homem que contempla, num espelho, o seu rosto natural; pois a si mesmo se contempla, e se retira, e para logo se esquece de como era a sua aparência (Tg 1.23-24).
                A maneira como os pontos de fuga da perspectiva são estabelecidos fornece uma ideia de autoimagem e uma ideia de mundo. A crença sobre Deus é sempre uma determinante da idéia que o observador tem de si mesmo, de mundo, e de seu semelhante.
Nicodemos (cf. Jo 3.1-18), o mestre “terreno” em busca de autenticação, ainda que tivesse uma vaga ideia da verdade (pois foi buscar a Jesus), tinha também uma disposição mental errada quanto à verdade (pois considerou somente o aspecto humano de Jesus). Ele ouviu do Filho de Deus e Filho do Homem que o paradigma da graça divina para autenticação do ser humano é o próprio Mestre vindo do alto. Ouviu ainda que, para ter uma autoimagem assertiva, a pessoa precisaria de uma regeneração espiritual. Ao contemplar a morte de Cristo na cruz, ela tomaria consciência de sua verdadeira natureza criada por Deus e de sua natureza decaída, e constataria o amor de Deus, o perdão dos pecados, e o poder de uma viva e nova natureza. De fato, o Senhor Jesus Cristo é o resplendor da glória e a expressão exata do ser de Deus (cf. Fp 1.3), e é a plena expressão do ser humano, o Autor de nossa Criação e o Autor de nossa salvação. Fomos criados à imagem de Deus (Gn 1.26) e somente encontramos nossa verdadeira autoimagem quando refletimos a glória do caráter de Deus. Sem esse ponto de referência, não haverá o que refletir senão traços de lembranças às vezes desejadas ás vezes suprimidas às vezes inventadas.
                As perspectivas que a raça humana tem de si mesmo e do mundo ainda são reflexos das mesmas carências que Adão e Eva perceberam no dia depois da Queda. O apologeta Van Til ilustra a impossibilidade de o homem não regenerado perceber a glória da imagem de Deus com a observação de um retrato. Para ele, o que existe, é um negativo de fotografia, de cabeça para baixo, feito em pedaços e, depois, as peças juntadas sem ajuda do original. Essa decadência do pecado é crescentemente continuada. Ela torce as perspectivas e embaça o retrato. Houve um tempo, disse Francis Schaeffer, em que a admoestação “comporte-se” teve um sentido claro. Hoje, se perguntaria: “comportar-se como?” Isso, porque ocorreu mais uma mudança radical na maneira como as pessoas pensam e agem, Em todos os lugares (casa, rua, mídia, escola, comércio, e governo) nós somos assediados por uma interpretação pluralista (o politicamente correto, o direito social, a nova moral, etc.) e por uma prática individualista (meu direito, meu gosto, meu corpo, meu tempo, etc.). No horizonte da pessoa que segue a perspectiva deste mundo, ambos os pontos de fuga são controlados por impulsos naturais (sobrevivência, poder, prazer etc.) e por tendências culturais (consumo desregrado, recompensa imediata, e daí em diante).
                Qual seria a linha mestra para o meu ou o seu retrato, à luz da Palavra de Deus? O sábio que disse que o coração do homem corresponde ao homem, também disse que como imagina em sua alma, assim ele é (Pv 23.7). A imagem e semelhança e de Deus é única água da vida na qual reconheceremos a nossa face verdadeira. Essa revelação do alto se alinha ao princípio bíblico da fé e prática, segundo a qual a crença do coração motiva os comportamentos. Noutras palavras, nós somos conforme imaginamos a Deus em nosso coração, e, a partir daí, todos os atos da alma finalizam nos atos do corpo a descrever quem somos.
                A autoimagem da pessoa sem Deus, e de muitos cristãos que vivem segundo a sabedoria deste mundo, reflete toda a sua confusão interior na incoerência entre o que diz e o que faz. Ela é estulta, isto é, é “sábia” aos seus próprios olhos, tentando refletir um “eu” falsificado. Como disse o Senhor Jesus:
São os teus olhos a lâmpada do teu corpo; se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será luminoso; mas, se forem maus, o teu corpo ficará em trevas. Repara, pois, que a luz que há em ti não sejam trevas. Se, portanto, todo o teu corpo for luminoso, sem ter qualquer parte em trevas, será todo resplandecente como a candeia quando te ilumina em plena luz (Lucas 11.34-36).
                Graças a Deus, há a promessa: Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará. Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, e sim como sábios (Ef 5,14-15). A pessoa regenerada reflete uma imagem refeita à imagem de Jesus Cristo, como diz em 2 Coríntios 4.6: Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo. É certo que, por enquanto, vemos esse tesouro em vasos de barro, mas é certo também o que é está escrito em 2Co 3.18: E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito.

Wadislau Martins Gomes