segunda-feira, janeiro 05, 2015

DOENÇA ESPIRITUAL OU DOENÇA FÍSICA?




Em Prática de Aconselhamento redentivo, escrevi que nossas emoções são como “pele” do atoestrutura (totalidade do ser) e, dado que todos os atos ocorrem no corpo, o conselheiro deverá levar em conta os aspectos físicos do aconselhado. Aspectos físicos jamais deveriam determinar a escolha espiritual, como disse Paulo: “Não reine o pecado em vosso corpo mortal de maneira que obedeçais às suas paixões” (Rm 6.12).

O conselheiro bíblico, isto é, todo crente maduro e especialmente um pastor, deverá se alertar para o fato de que os processos não físicos têm a mesma realidade dos processos físicos nos quais se finalizam. Isto, para não incorrer em uma falha muito comum entre profissionais e paraprofissionais das áreas de ajuda humana. Muitos deles, desejando estabelecer uma posição “científica” para o exercício da psicologia, sociologia, serviços sociais, e, até mesmo, medicina e outras especialidades, são pegos expressando pareceres que negam a própria reivindicação. Isto, por, pelo menos, duas razões. Primeiro não levam em conta que ciência, como disciplina, implica em um método de estudo – observação, experiência, comprovação, repetição e formulação – e não em uma alquímica pedra de toque que transforme crenças perspectivas em coisa provada. Segundo, permitem que uma noção materialista generalizada oriente suas cosmovisões, até mesmo quando se declaram “espiritualistas”. Para muito, o corpo seria coisa objetiva sujeita a leis determináveis e controláveis, e, a psique, algo subjetivo meio constatável e parcialmente controlável. Alguma coisa assim como os conceitos de realidade e virtualidade da moderna informática. Testemunhei, até mesmo, uma ocasião em que um profissional da área da saúde, depois de ter conversado com um paciente diagnosticado como portador de miastenia, voltou-se de modo bem paternalista para seus visitantes, com ar astuto e dedo às rodas junto da cabeça: “É psicológico”. (Eu deveria ter falado: Ah! Graças a Deus! Não é real. É autoengano, é fingimento! Viva!) O conselheiro cristão, pelo contrário, qualquer que seja a área da ajuda – pastoral, psicológica, social, e outras – deverá se conscientizar da realidade dos movimentos internos e sua interagência com os movimentos externos da pessoa.

Tais diferenciação e relação dos processos matérias e imateriais do atoestrutura humano requerem que o conselheiro cristão tenha em mente uma teoria bíblica bem formada para a prática do aconselhamento. Posto que os pensamentos do presente século – há quem tenha dúvidas sobre o uso do termo “secular” no sentido de pensamento anticristão, mas a expressão é usada na Bíblia com bastante precisão; cf. Rm 12.2; 1 Co 1.20; 2.6,8; 3.18; 2Co 4.4; 2Tm 4.10 – repousam sobre a ideia de causas e consequências em um universo aberto, ao acaso e no vazio, será preciso que o conselheiro refaça seu pensamento em termos bíblico-teológicos.  Quais são as causas das depressões, das compulsões, das fobias? Para responder a estas e outra questões pertinentes, os comentários de Ed Welch são suficientemente esclarecedores. Ele diz, sobre as implicação da intergência alma/corpo, por exemplo, que “a visão bíblica é específica quanto a que saúde e vida, e doença e morte, são, em última instância, resultado de escolhas morais, e não de estresse”. Diz também que o pecado, a estultícia (vida sem a sabedoria de Deus, baseada em “sabedoria” privada), e a culpa podem conduzir à enfermidade, e, por outro lado, a retidão, a paz e a alegria do Senhor na vida cristã podem conduzir à saúde. Nenhuma dessas condições, porém, asseguram uma relação de causa e consequência. Esta falha de pensamento ocorre em muitas das propostas de “cursos” para vida cristã, pois, na tentativa de elaborar um sistema de progresso de santificação, elas acabam caindo no pecado do legalismo – “apertando este botão, obtém esta bênção”. Existe, sim, a possibilidade destas conexões, pois esta é a intenção da promessa e da exortação, mas Deus também usa de sabedoria conforme lhe apraz, usando graça tanto ao não levar imediatamente em conta o pecado quanto ao dispor a provação. Sobre isso a Bíblia diz: “Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar” (1Co 10.13), e “É para disciplina que perseverais (Deus vos trata como filhos); pois que filho há que o pai não corrige?” (Hb 12.7).

A Escritura inteira (a) fornece diretrizes baseadas no caráter normativo da revelação, (b) aplica a Palavra de Deus às diversas situações da vida, e (c) dá atenção aos sentimentos humanos. O Livro dos Salmos, atentando especialmente ao aspecto existencial da vida humana, abre um campo de visão para a nossa apreciação da relação alma/corpo. Veja o caso do rei Davi, no salmo oração composto “quando o profeta Natã veio ter com ele, depois de haver ele possuído Bate-Seba” (Sl 51.1; cf. vv. 1-19). O rei exibe sua compreensão do conhecimento de Deus e, baseado nele, do conhecimento de si mesmo. Ele se posta em adoração diante de Deus, sabedor de que em sua glória está a essência do seu próprio ser. Deus é bom – ele diz – seu coração é sensível ao coração humano, sua graça compreende justiça e amor, sempre pleno de poder criador e redentor. Ante esta santidade, Davi considera sua condição desesperada e declara sua esperança na disposição divina: “conheço as minhas transgressões”, mas eis “que te comprazes da verdade” e “me fazes conhecer sabedoria”. Nesta verdade e nesta sabedoria é que o rei Davi, então, fala de seu nascimento físico e da maneira como o pecado afetou sua carne (“ossos”) como fala também de sua interioridade e de seu coração espiritual; fala de seu espírito compungido e restaurado como fala também do testemunho e do louvor de sua boca. É nessa mesma linha que Jesus diferenciou conceitos matérias e imateriais ao mesmo tempo em que mostrava a relação alma/corpo: “O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito” (João 3.6). O apóstolo Paulo faz a mesma coisa: “Porque com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação” (Rm10.10).

A ideia do quadro abaixo – utilizado por Ed Welch em sala de aula e cuja explicação foi feita em dois de seus livros de diferentes maneiras e diferentes ilustrações (Edward T. Welch, Counselor´s Guide to the Brain and its Diƨorderƨ, pp. 45-51; Blame It on the Brain?, pp. 56-61.) – foi adaptado para este estudo e aponta quatro linhas mestras para a consideração da interação alma/corpo:
 


— problemas da alma podem afetar o corpo;
— problemas do corpo podem afetar a alma;
— problemas da alma podem não afetar o corpo; e
— problemas do corpo podem não afetar a alma.

Em qualquer dos casos, o aconselhamento cristão trabalha com o coração da pessoa na confluência das interagências alma/corpo.

Para tanto, o conselheiro terá de conhecer alguma coisa sobre o funcionamento do corpo, bastante para reconhecer as diversas influências e para entender as perspectivas médicas. A linguagem popular comum às várias áreas de ajuda refere-se a algumas condições psíquicas manifestadas no corpo como sendo de ordem psicossomática (gr., psyque/alma + soma/corpo). O termo é acurado, mas, para o nosso caso, teríamos de cunhar outra palavra, como somatopsíquico, uma vez que há possibilidade de ocorrer múltiplas afetações, em ambos os sentidos. Em um sentido, há bastante proximidade de termos e significados na linguagem do aconselhamento cristão e das psicologias seculares, especialmente daquelas mais tendentes a uma visão médica de diagnósticos e prognósticos. Uma das razões desta proximidade é que o objeto observado é o mesmo e a linguagem é comum a ambas as visões. O que muda e faz toda a diferença na própria conceituação é que a perspectiva cristã leva em conta o espírito humano e a perspectiva secular ignora essa dimensão da alma (cf. 1Co 2.1-16). Sobre isto, o que o conselheiro cristão terá de considerar é que a espiritualidade humana não pode ser separada da materialidade humana. O aspecto espiritual não é uma área, às vezes clara às vezes nebulosa, que usa o corpo como uma habitação para o “fantasma dentro da máquina”. Antes, é a totalidade do atoestrutura humano no exercício dos dons e vocação comunicados ao ser humano segundo a riqueza da graça de Deus “desvendando-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito que propusera em Cristo, de fazer convergir nele (...) todas as coisas, tanto as do céu como as da terra” (Efésios 1:9-10; realce meu).

Resumindo, quando a Bíblia se refere à unidade alma/corpo usando termos identificados ao aspecto físico – coração, fígado, rins, intestinos, nervos, músculos, sangue, água, membros, boca, ouvidos, e daí em diante – não está simplesmente utilizando um recurso de linguagem, mas estabelecendo uma relação. Nesta relação, diz Ed Welch, o conselheiro terá distinguir entre aspectos essenciais e aspectos assecionais (acessórios).

Wadislau Martins Gomes