quinta-feira, junho 28, 2018

COMO OLHAR BANDIDOS E MINISTROS


Como olhar o País quando bandidos e  ministros se confundem e os rabos presos se desatam em frentes sérias e versos debochados? Aprendamos a olhar com os olhos de Daniel e de Jeremias!

Já assomava-me a ira rebelde diante da cena infame que ora retrata a Pátria. Os que deveriam ser os guardiões da lei calcam aos pés a lei e o povo. Os que deveriam ser supremos se apequenam ao livrar condenados ilustres e a permitir exacerbados impostos à gente anônima.  Tanta injustiça fez-me lembrar o clamor de Castro Alves:
Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ... 
Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra E as promessas divinas da esperança... Tu que, da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!... 
Hoje, os ouvidos são lerdos e as mãos perderam a força para uma reação. Ninguém mais vai às ruas, ninguém mais grita, como a calma que precede a tempestade. Notícias de  erupções vulcânicas, terremotos e  guerras tornaram-se lugar comum aos olhos dos incautos e do povaréu de maneira que não mais discernem. A mentira é chamada de verdade e, a verdade, mentira, e o temor do Senhor é desprezado. Os grandes e os pequenos não se dão conta da soberania do Senhor de povos e de corações. Ignoram a advertência do profeta: “Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem, mal; que fazem da escuridade luz e da luz, escuridade; põem o amargo por doce e o doce, por amargo!” E como continua Jeremias: “são sábios a seus próprios olhos e prudentes em seu próprio conceito … são heróis para beber vinho e valentes para misturar bebida forte … por suborno justificam o perverso e ao justo negam justiça!”

Como eu dizia, estava prestes a desesperar, quando prossegui na leitura da Palavra: “Pelo que, como a língua de fogo consome o restolho, e a erva seca se desfaz pela chama, assim será a sua raiz como podridão, e a sua flor se esvaecerá como pó; porquanto rejeitaram a lei do Senhor dos Exércitos e desprezaram a palavra do Santo de Israel”.  (Cf. Is. 9.3 e Jr. 5.20-24.) Então, considerei o meu pecado e minhas próprias injustiças à sombra da cruz do Senhor e Salvador Jesus, e minha alma chorou ante a visão da graça de Deus. Fui julgado e perdoado pelo ato de justiça de Cristo, e posso olhar o mundo e as pessoas com realismo e esperança.

Sobre os não justificados, disse o profeta, no Novo Testamento:
Quando, pois, os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se, no dia em que Deus, por meio de Cristo Jesus, julgar os segredos dos homens, de conformidade com o meu evangelho (Rm 2.14-16).
Aí, então, minha oração: 

Somente duas coisas dá-me, ó Senhor: de Daniel, o dom de interpretação de mundo e de corações com a firmeza da esperança em ti, e, de Jeremias, o realismo cuja esperança considerou sofrer o mundo e os corações sob o teu poder. Que, como ambos, eu e meus irmãos saibamos olhar o mundo e os homens com fé na tua Palavra, com esperança na realização de teus mandamentos e promessas, e com amor primeiro a ti e, depois, ao próximo.

Wadislau Martins Gomes

sexta-feira, junho 15, 2018

COMUNICAÇÃO TRUNCADA


Outro dia, procurávamos um bom filme para assistir. Depois de uma semana em hospital, faria parte da recuperação um descanso que desse repouso físico e mental e, simultaneamente, estimulasse o pensamento e a alma. Não era hora de leitura pesada, mas de imagens belas que nos ajudassem a cerzir os fios rompidos e remendar os furos da tessitura da vida. Surfamos as redes e cada vez que aparecia uma história atraente, clicamos em cima para, em poucos instantes, não aguentar mais a repetição incessante de dois senões da comunicação sadia: as personagens bombardeavam suas falas tomando o nome de Deus em vão e xingando com palavras de baixo calão. Antigamente, os bons filmes procuravam dosar ao mínimo o uso de profanidades e caso usassem, avisavam cautela às famílias – hoje parece que o nome de Deus é conspurcado continuamente nas falas mais banais, e tudo na vida é reduzido a atividades sexuais agressivas ou excremento para a latrina. Perdão pelo meu francês, mas o começo e o fim de todo diálogo espalha impiamente f... you e m... por ventiladores gigantescos e fortes que mancham tudo em volta (Aí vai mais uma tradução truncada e intraduzível). Tudo é muito natural, e homens e mulheres, jovens e crianças. acabam não somente ouvindo, mas pensando e repetindo os mesmos termos.

É verdadeiro que tomar o nome de Deus em vão vai muito além de falar seu nome fora do contexto de louvor e adoração que lhe é devido – mas começa a quebra do Terceiro Mandamento em cada expressão impiedosa que atribui ao Eu Sou acusações que são lavra suja do impostor, deturpador, usurpador e chefe deste mundo tenebroso. Paulo fala em contexto profundo de doutrina sadia aplicada a todos os aspectos da vida prática que “As más conversações corrompem os bons costumes” (1Co 15.33) e conclama-nos a tornar à sobriedade como é justo, e não pecar, porque alguns ainda não têm conhecimento de Deus. Isto se aplica hoje no mundo ocidental do Século XXI como era aplicável aos que viviam no primeiro século da era cristã, em Corinto (veja também Ef 5.4; Pv 10.19-21).

Apesar de ter sido criado em palácio real com toda a exuberante cultura egípcia, quando Deus chamou a liderar e libertar seu povo escravizado, Moisés culpou sua falta de eloquência como “incapacidade”:  “Sou pesado de boca e de língua” (Ex 4.10). Deus perguntou-lhe: “Quem fez a boca do homem? Ou quem faz o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou eu, o Senhor? Vai, pois, agora, e eu serei com tua boca e te ensinarei o que hás de falar...” Moisés disse ainda: “Envia a quem hás de enviar, menos a mim”. Mas Deus oferece uma alternativa: 

Não é Arão... teu irmão? Eu sei que ele fala fluentemente; eis que ele sai ao teu encontro, e vendo-te, se alegrará... tu lhe falarás e lhe porás na boca as palavras; eu serei com a tua boca e com a dele e vos ensinarei o que deveis fazer. Ele falará por ti ao povo; ele te será por boca, e tu lhe serás por Deus... E o povo creu, e tendo ouvido que o Senhor havia visitado os filhos de Israel e lhes vira a aflição, inclinaram-se e o adoraram.
Anos mais tarde, em 627 AC, o profeta Jeremias, de família sacerdotal, bem preparada, a quem o Senhor disse: “Antes que eu te formasse no ventre materno te conheci, e antes que saísses da madre te consagrei e te constituí profeta às nações” (Jr 1.5) a que ele protestou, dizendo: “Não sei falar porque não passo de uma criança”. Deus afirmou que ele iria a todos a quem Ele enviasse e falaria tudo quanto ele mandasse dizer. Prometeu: “Eu sou contigo”, tocou sua boca e disse que o constituiria sobre as nações e reinos “para arrancares e derribares, para destruíres e arruinares e também para edificares e para plantares” – e passou a dar-lhe visões do que estava acontecendo e iria acontecer.

Talvez a irmã mais velha de Moisés, Miriam, fosse ainda criança de uns dez anos quando, destemida, falou com a filha do Faraó (Ex 2.4-9) e instrumento humano para a sua salvação. Joquebede, verdadeira mãe e ama de leite de Moisés, certamente contou as histórias sobre o Deus que fala e o povo a quem ele chamou, alimentando o filho com o arcabouço da historia de Gênesis até o final de Deuteronômio. Quando Moisés libertou o povo de Deus do Egito, fez um esplendoroso cântico de vitória ao que lançou no mar cavalo e cavaleiro (Ex 15.1-19) e Miriam liderou todas as mulheres com a antífona: “Cantai ao Senhor porque gloriosamente triunfou...” (vv 20, 21). No entanto, com a mesma boca, Miriam falou mal do líder de Israel e incitou o irmão Arão a igualmente maldizer a Moisés por preconceito racial, altivez e inveja (Números 12.1-15).

Quando, aos cento e vinte anos de idade, Moisés se despedia de seu povo, falou para escolher entre a morte e o mal, a vida e o bem (Deuteronômio 29-31) – porque o Senhor Deus, ele mesmo, o de Abraão, Isaque e Jacó – os escolheu. Josué recebeu a incumbência de levar o povo para conquistar a Terra Prometida: “Não cesses de falar deste Livro... Não to mandei eu? Sê forte e corajoso; não temas nem te espantes, porque o Senhor teu Deus é contigo por onde quer que andares” (Js 1.8-9). Na narrativa histórica surpreendentemente realista de Josué, a história do passado se entremeia com a esperança do futuro vindouro, dizendo para homens e mulheres, velhos e crianças, pessoas do povo do pacto e pessoas que se achegariam ao pacto – que temessem ao Senhor, servindo-o com integridade e fidelidade, que escolhessem a quem servirão. O general Josué aqui inseriu sua declaração: “Eu e a minha casa serviremos ao Senhor” (Js 24.15). A aliança legal era declarada publicamente, escrita e lavrada em pedra, por estatuto e direito, e em monumento de pedras toscas. Hoje em Cristo Jesus somos feitos edifício e sacerdócio de pedras vivas, construído sobre a Pedra Fundamental (1Pe 2.4-10). 

Débora, ao levantar-se por mãe em Israel, estimulou o capitão Baraque com seus dez mil homens. Como juíza e profetiza, começou seu cântico bem-dizendo ao Senhor, permeando a ode dos feitos de guerra com descrições da destemida Jael (que matou o opressor Sisera) e dos atos de justiça de Deus – dando ao povo paz sobre a terra por quarenta anos. A sua conclusão: “Os que te amam brilham como o sol quando se levanta em seu esplendor” (Jz 5.31).

Davi fingiu estar louco para se refugiar com Abimeleque, fugindo da fúria de Saul, e começa o Salmo 34 dizendo “Bendirei o Senhor em todo tempo, o seu louvor está sempre nos meus lábios” – e liga o amor à vida e desejo de ver o bem a refrear a língua do mal e os lábios de falarem dolosamente. Sempre a prática da vida piedosa começa com a boca para então afastar do mal, praticar o bem, procurar a paz, e empenhar-se por ela. O Senhor ouve o clamor dos justos – dos que têm o coração quebrantado (Sl 34.10-18). 

Tiago, irmão de Jesus Cristo, diz que Deus “nos gerou pela palavra da verdade” e por esta razão, devemos ser “pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar... acolhendo a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar a vossa alma. Tornai-vos, portanto, praticantes da palavra e não somente ouvintes...” (Tg 1.19-22). Mais adiante, Tiago fala que se alguém não tropeça no falar, é perfeito e capaz de refrear todo o corpo (Tg 3.2) e descreve o pequeno órgão que é mundo de iniquidade, contamina todo o corpo, põe em chamas a carreira da existência humana... mal incontido, carregado de veneno mortífero. “Com ela bendizemos a Senhor e maldizemos os homens feitos à semelhança de Deus. De uma só boca procedem bênção e maldição” (Tg 3.9).

Quando eu era jovem, fazia-se diferença entre os vocábulos estória, história, e histórias. Estórias eram os contos fictícios, como os de Anderson e Grimm, de Homero e de Shakespeare, que fazem parte da cultura de um povo. História era a narrativa fatual da história do passado em nosso planeta e nosso país; consistia de datas e dados, fatos e feitos de heróis e vilãos. Problema é que a história é mais ou menos verdadeira conforme quem a narra, geralmente do ponto de vista dos vencedores. Exemplo: em história do Brasil contado por descendentes de portugueses, o tempo em que os holandeses dominaram Pernambuco foi uma “invasão holandesa” em que o pastor indígena preparado em seminário reformado europeu, Calabar, era inculto índio traidor da pátria. E as histórias podem ser verdadeiras ou não, dependendo da perspectiva do contador. Por exemplo, no filme sobre Forrest Gump, quarenta anos de história são contados conforme ele tivesse participado (ou não?) dela. 

A história na perspectiva bíblica é sempre narrativa da verdade de acontecimentos reais desde Gênesis até o Apocalipse. Diferente da história são as parábolas, que contam em estórias exemplos de conceitos ou fatos a serem ilustrados. Temos diversos outros tipos de relatos na Bíblia, mas quero enfatizar que a Palavra e a Vida sempre estão jungidas e fazem parte uma da outra, sem esfacelamento entre o que aconteceu no passado, o que é, o que deve ser ou há de ser, e o que acontecerá futuramente. O que importa é a verdade, da qual Jesus Cristo é expressão viva e real, Verbo Encarnado, e caminho, verdade e vida se a qual ninguém vem ao Pai (Jo 14.6). Esta história é entremeada de doutrina e prática – em sabedoria de poesia ou profecia, em histórias de reis e bufões, em epístolas e relatos dos evangelhos e de Atos dos Apóstolos inspirados pelo Espírito Santo do Deus Triuno. 

Como escritores cristãos, não somos criadores no sentido do único Criador do Universo. Foram-nos dadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade (2Pe 1.3-8), para que sejamos coparticipantes da natureza divina! Nada há encoberto que não venha a ser revelado (Lc 12.2); embora nada tenhamos, possuímos tudo (2Co 6.10) – e tudo vem das mãos de Deus. Por mais belas e edificantes que sejam nossas palavras, não temos inspiração no sentido bíblico da Palavra inspirada por Deus. As palavras do profeta estão sujeitas à boca do profeta (1Co 14.32); nossas palavras são verdadeiras e edificantes somente quando totalmente sujeitas ao autor da Vida, Verbo de Deus – condizentes com o que ensina sua Palavra. Assim, mais que escritores, somos aprendizes e escribas. Comunicamos vida ou morte, sabedoria ou estultícia, segundo o que aprendemos da Palavra de Deus – mas não somos “boca de Deus” no senso que Moisés e Arão ou Jeremias ou João Batista falavam. Como pecadores que somos, muitas vezes, nossa comunicação é truncada, falha, duvidosa ou até mesmo mentirosa. Queremos falar a verdade em amor (Ef  4.25) mas as palavras guerreiam, são torpes, mercadejadas, mentirosas, faladas de modo indigno do Evangelho.

Entre os hinos de letras profundas e melodias tocantes de Charles Wesley, um dos que mais expressam meu desejo diante do Senhor é “Mil línguas eu quisera ter para entoar louvor, à tua graça e teu poder, meu Rei e meu Senhor” (Hinário para o Culto Cristão, # 72). O desejo de comunicar com variedade, riqueza e conhecimento ao Autor toda boa Palavra, o Verbo Vivo, o Espírito que sopra graça e vida, faz de uma simples tradutora que domina bem apenas duas línguas, um desejo de falar de mil maneiras, com mil vozes, a verdade que me impacta e dá vida. Descubro, no dia a dia, contudo, que não consigo sequer louvar ao Senhor da Palavra nem comunicar a meu semelhante o que realmente queria falar – e olhe que já vão quase setenta anos em que o desejo de expressar, com canto, conto, e relatos fatuais histórias, narrativas e história bíblica – sempre à procura de novas “línguas”. 

Às vezes, descubro que a palavra que digo a alguém que “estou orando por você” em vez de dar um simples “parabéns” é recebida como uma crítica e desaprovação da pessoa a quem deixei de dar congratulações. Tenho a tendência de falar demais, de “matar por exagero” um bom sentimento, de deixar de falar quando preciso, e falar erradamente quando abro a boca! Certa vez, criei uma situação que feriu a diversas pessoas porque eu quis falar a verdade sobre um assunto sem ser convidada a fazê-lo. Interferências indesejadas jamais serão comunicação da verdade em amor. A razão de falar a verdade está no fato de que “somos membros um do outro”. Minha palavra deve ser sempre “agradável, temperada com sal, para eu saber como devo responder a cada um” (Cl 4.6).

Lembro de uma canção de Sandy Patti, Love in any language, straight from the heart, pulling us together, never apart – o amor em qualquer língua, direto do coração, nos puxando para mais juntos e jamais nos separando – fosse “falado fluentemente aqui” – descrevendo a comunicação no Corpo de Cristo. Era o que eu desejava. Às vezes gaguejava, trocava palavras e criava frases truncadas – mas queria que o amor de Cristo fosse fluente e límpido em minha fala e meu proceder. Tinha de falar! Como estudante (consequentemente, aprendiz da Palavra) eu jamais teria púlpito de pregadora – teria de escrever – aprender e aperfeiçoar a arte de falar a verdade em amor (Ef 4.25). Para tanto, tenho de me portar com sabedoria para com os que são de fora, aproveitar bem as oportunidades (Cl 4.5), deixando habitar ricamente em mim a Palavra de Deus, instruindo e aconselhando em toda sabedoria, louvando a Deus com salmos e hinos e cânticos espirituais, com gratidão no coração. Tudo que escrevo ou deixo de escrever, o que faço ou me abstenho de fazer, seja feito em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai (Cl 3.16-17).

Uma das sequelas do AVC de 2007 foi que perdi a voz para cantar. Mas não perdi a canção – a comunicação com vida coerente com o que falo, escrevo, ou como me calo. Quer traduza algo escrito por outros, quer escreva linhas originais inéditas – que essa minha boca sussurre ou proclame sempre por alegria na Fonte de toda Bênção!

Elizabeth Gomes