sexta-feira, agosto 14, 2015

NOSSOS PETS E SEUS HUMANOS



                                                              

Crentes na Bíblia como Palavra de Deus, nós afirmamos que a criação de animais (domésticos e selváticos – Gn 1.24,25) foi anterior à criação do ser humano a fim de espelhar o caráter de Deus também no cultivo, guarda e exercercício de domínio sobre os animais assim como sobre toda a natureza (Gn 1.27-31).

Hoje, a filosofia secular humanista tende a ver o humano como apenas um entre muitos animais predadores  e, muitas vezes, iguala a vida e o valor dos animais irracionais aos do ser humano, defendendo toda a vida física como de igual importância e repudiando a idéia do domínio humano sobre a natureza. Estranho que os mesmos que proclamam “salve as baleias” e “proteja os cães” muitas vezes sugerem que se descarte qualquer feto humano não desejado que “atrapalhe” a vida da mulher, como sendo “apenas tecido fetal”. Alguns chegam a considerar comer carne uma séria ofensa, ainda que sejam  pró aborto—inculcando-se por sábios, tornaram-se néscios, adorando e servindo a criatura em vez de o Criador (Rm 1.25)!

Uma visão cristã da natureza com seus seres viventes não conscientes será sempre de amar a criação que Deus fez, cuidar dos animais dos quais dependemos e que dependem de nós, e realizar um domínio ecológico sustentável que preze a vida e glorifique o Criador. “O justo atenta para a vida dos seus animais, mas o coração dos perversos é cruel”(Pv 12.10). Jesus afirmou o princípio bíblico de que o justo cuida dos seus bichos como também de sua gente mesmo no dia do sábado, perguntando aos fariseus: “Hipócritas, cada um de vós não desprende da manjedoura, no sábado, o seu boi ou seu jumento, para levá-lo a beber? Por que motivo não se devia livrar deste cativeiro, em dia de sábado, esta filha de Abraão a quem Satanás trazia presa a dezoito anos?” (Lc 13.16) e “Qual de vós, se o filho ou o boi cair num poço, não o tirará logo, mesmo em dia de sábado?” (Lc 14.5). Subentende-se que quem não cuida bem dos seus animais não cuidará de seus filhos—e parece que até os animais irracionais percebem quando uma pessoa não é bondosa com eles!

 Se no mandato cultural somos responsáveis por cultivar e guardar, devemos fazê-lo com inteligência, diligência e amor. O primeiro ato de Adão depois de ter recebido de Deus a companheira “osso dos meus ossos”, foi taxonômica, ou seja, dar nome aos bichos , de conhecer e valorizar a criação animal utilizando sua responsabilidade  de ser  racional em que estava impressa a imagem de Deus.

Multiplicando-se a maldade humana a ponto de misturar-se com a impiedade demoníaca (Gn 6), o coração de Deus se pesou, planejando um dilúvio destruidor e purificador. Toda a história da arca de Noé fala da salvação da raça humana (com oito pessoas dos gêneros macho e fêmea) e também da providência de preservação da vida de todas as espécies animais (um casal reprodutor de cada espécie) num estratagema ecologicamente brilhante e logisticamente complicado—porque Deus  é Criador e sustentador da natureza. As obras de arte através dos séculos sempre incluíram figuras ora prosaicas, ora majestosas, dos animais com quem o ser humano convive em mútuo desfrute.

Delineando essa base para uma visão cristã da complexidade da criação, quero enfocar um aspecto pequeno, quase caseiro, do que significa cuidar da vida a nosso redor, falando dos nossos pets. Tenho observado as postagens e dizeres de pessoas que lamentam a perda dos seus bichos de estimação, incluindo fotos de seus bichos, quase tanto quanto são frequentes as fotos de filhos ou netos queridos. Com isso, lembro com saudade da infância de nossos filhos, sempre pontilhada pela presença dos seus bichinhos, bichanos e bichões. No meu caso particular, o maior (não em tamanho, mas em exotismo) foi o filhote de onça pintada, trazida por meu pai em uma de suas viagens ao interior de Goiás, antes de haver restrições de IBAMA. Esse filhote de onça selvagem ficou em nosso apartamento conosco por umas três semanas, até que fosse transportado para um zoológico famoso na Europa. Anos depois, Davi e seu primo Márcio tiveram um mico dourado que dormia como um minúsculo bebê em sua mão (também antes de haver legislação do IBAMA).

Entre meus amigos, conto com várias pessoas dedicadas à medicina veterinária, e outras tantas que lutam pelos direitos dos animais. Quando Lau e eu mudamos para uma casa, um dos primeiros presentes que demos ao primogênito foi Fluffy, um puppy, que ele aprendeu a cuidar, alimentar e trocar-lhe a água antes de nascer a sua irmãzinha. Depois que fomos morar na fazenda em Bocaina, então, eram tantos bichos que às vezes eu não sabia onde pisar. Eu achava que pelo menos um filho decidiria seguir carreira como veterinário – cuidava dos coelhos, fazendo até pequenas cirurgias, tínhamos sempre pelo menos dois cachorros (dizem que se conhece o caipira quando tem pelo menos quatro cães na varanda a ladrar sempre que chegam visitas). Uma vez, aos sete anos, o caçula assistiu a parição de sua preá, e veio correndo, exclamando:

– Viva, sou pai, nasceu o filho de minha preá!

Nascimento, aliás, é uma das primeiras lições de vida que os pets ensinam aos filhos.  Por mais que eu exigisse que cachorro não podia dormir em sua cama, os cachorros de casa, companheiros dos filhinhos da mesma, eram donos do pedaço: Daniel aprendeu por que não devia permitir isso quando chegou em seu quarto e a cadelinha já estava parindo o quarto filhote no travesseiro dele. Ele ficou extasiado, embora eu não me alegrasse muito com a sujeira dos lençois a lavar. Cedo a bicharada ensina às crinças noções básicas de carinho, de reprodução, de higiene—o que é mais fácil com gatos que tenham suas caixas de areia e vivem sempre a lavar-se, mas não deixa de ser aprendido quando se tem de andar regularmente com o cachorro ou dispor dos seus dejetos de forma que não se ande sobre pequenos monturos malcheirosos. A higiene canil tem de ser explicada com detalhes para os pequenos não imitarem todos os aspectos, e é imprescindível que se ensine coerência, responsabilidade e naquilo que nós humanos devemos cuidar de forma diferente dos cuidados que os próprios pets têm com os seus filhotes (humanos não lambem, não arfam, não carregam as crias com a boca).

“Por mais que se tape os olhos da Madame Mim quando você faz oração, meu filho, ela não está orando—está apenas seguido o que o seu humano quer que faça quando ele agradece a Deus pelo lanche. E você, meu filho, não deve compartilhar seu sorvete com ela, por mais que ela goste de lamber junto—ela  também põe a boca em coisas que têm germes que não são bons para nós humanos, (como baratas e ratos mortos)”. O fato de nossos animais serem excelentes caçadores  (quem tem gato em casa não tem rato; tínhamos um exímio matador de mosquitos num bichano que os pegava, mal as sanguessugas pestinhas miúdas pairavam perto de nós).

Conheci uma senhora cujo papagaio de estimação cantava: “Cantai ao Senhor...”; o papagaio do vizinho zingava com sons torpes. Nenuma dessas aves era “cristã”—elas apenas emitiam sons segundo seus humanos  mais próximos. Às vezes os bichos são mais propensos a ser domados de modo positivo do que nós humanos criados à imagem de Deus conseguimos dominar nossa língua, nossas mãos, nosso temperamento. Constate o que Tiago diz sobre freios em cavalos (Tg 1.26; 3.8) e a língua humana.

Linguagem, por exemplo, é algo que nossos animais não dominam, mas obedecem. Um cão adestrado atende a ordem de seu dono, e uma ovelha ouve a voz de seu pastor, porém, por mais que mostre seu apreço por seu dono, o animal não pode planejar e articular em linguagem que comunique pensamento e propósito. Um bichano pode ronronar, demonstrando agrado ao toque de sua proprietária, e se achar dono da casa em que escolhe as  melhores almofadas; um cachorrinho novo vem correndo e abana o rabo, mostrando solidariedade e simpatia cada vez que seu humano chega perto, mas não pode expressar o que pensa nem fazer considerações sobre si nem sobre o ser humano que cuida dele.

De vez em quando, aparece um adulto que trata seu cão como se fosse mimado filho único. Tenho pena desses bichos e de seus proprietários, pois  embora eu creia que devemos tratar os animais com carinho e respeito, creio que eles não são seres humanos que só comem filé mignon e vestem roupas de grife—e somos tolos quando adoramos a criatura ao invés do Criador, ou mesmo quando queremos atribuir valores de personalidade e varonilidade ética ao cachorro que compramos ou adotamos. Tenho visto cachorros muito amigos, com lealdade a prova de tudo—mas o amor e a lealdade canina não são frutos do Espírito Santo—são apenas características animais de seres vivos que retribuem conforme o bem com o que são tratados. Treino e disciplina nos pets vem conforme o seu humano.

A “madame” não é mamãe de sua mini poodle nem deverá dar festa de aniversário ou “casamento” com direito a bolo e doces caninos. Devemos tratar os animais com a dignidade de bichos—não como simulacros de gente mimada que não tem o que fazer com seu tempo ou dinheiro. Há muitas pessoas famintas e carentes no mundo, e mordomia cristã inclui gastar bem o produto de nosso trabalho. Também ensinamos os filhos quando temos apenas os pets que damos conta de cuidar (e não é a mamãe humana que cuida do cachorrinho ou da iguana que a filha tanto jurou fazer tudo por ela!)

Soube de uma moça que tinha mais de vinte cachorros, estava desempregada e não tinha dinheiro para comida, mas fazia das tripas coração para comprar ração e pagar contas de veterinário antes de resolver as questões com a própria familia. Com isso ela não cuidava bem de seus bichos—muito melhor seria que os desse para adoção por gente que com esmero tomasse conta deles.

Já chorei com a perda de animal querido, e não há nada de ridículo em sentir profundamente a ausência de uma criatura que fez parte de sua vida por dez ou até quinze anos. A presença da morte é outra dura lição que nossos pets ensinam a nossos filhos. Nunca me esqueço do enterro que fiz do papagaio que as formigas mataram: forramos uma caixa de sapato em lindo caixão dourado e cantamos algo como “Vós criaturas de Deus Pai, todos erguei a voz, cantai!” quando fizemos, minha irmã e eu, a despedida final. Um cachorro atropelado na frente de casa é um trauma duro de superar—mas seu humano sairá mais forte da experiência, se aprender que Deus cuida dos detalhes da vida até dos pardais que Ele alimenta e que não caem sem queo Pai Celeste saiba, e dos animais do campo e de casa eque nos encantam e reviram nossos pertences e planos.

Embora hoje eu não tenha pets, exceto a Nina, cadelinha da família de meu filho que é missionário no Japão e não teria como pagar a passagem dela, eu “curto”as notificações sobre os bichinhos de meus amigos, cujos caninos, felinos, equinos, aves, peixes e até mesmo répteis alegram o coração e glorificam a Deus por sua existência, ensinando-nos a participar da criação!

Elizabeth Gomes

segunda-feira, agosto 03, 2015

NO REFEITÓRIO DO HOSPITAL


 

Quando começamos a mais recente saga de internação de meu marido no hospital, eu não imaginava quanto bem faria passar quinze a trinta minutos por refeição com estranhos, comendo do cardápio hospitalar gratuito para os acompanhantes de pessoas internadas com mais de sessenta anos de idade. Fiquei agradavelmente surpresa com a comida sadia e variada, aliviada por não ter de recorrer a gastar uma nota preta três vezes ao dia em restaurante ou lanchonete da vizinhança. Bastava a preocupação com gastos exorbitantes com remédios e a diferença no preço das diárias não cobertas pelo seguro.

O refeitório do hospital é utilizado pelos seus funcionários e pela plêiade de pessoas cuja única característica partilhada era ser acompanhante de algum doente. No meu caso, sou única acompanhante de meu marido, noite e dia, vinte e quatro horas por dia. Prometi estar ao lado dele na saúde e na doença, e este é um momento na doença. Ele já esteve comigo em situação semelhante diversas vezes, e é meu melhor amigo há meio século. Ainda bem que diante da eternidade de Deus, este é apenas um breve momento.

O filho e a nora vem sempre e ajudam, compartilhando sonhos e notícias do mundo lá fora, trazendo e levando roupas limpas ou sujas, orando conosco e por nós. Temos recebido visitas memoráveis de amigos preciosos e conhecidos importantes, mas a gregária Beth sente falta de respirar ar frescode fora, sentir a comoção de gente, de contrabalançar caseirice pé no chão com sede de estímulos para a mente enquanto o coração se arrebenta, se quebra e se refaz todo dia a cada hora. Aqui observamos um universo de mundos, ao ver o próximo, e aprendemos a amá-lo, ou, no meu caso, amar as mulheres que se aproximam, pelas histórias de vida contadas e ocultadas nas pequenas conversas.

-- Está acompanhando mãe? Pai? Marido? Filho? Irmã? Vizinha?

-- É cuidadora de uma velha senhora que não tem ninguém na família que a aguente?...

Ana, a única disposta a ajudá-lo, (uso nomes fictícios por razões óbvias) cuida do ex-marido que a abandonou anos atrás.

Berenice cuida com dedicação do pai idoso enquanto lida com a descoberta e dor de ter sido traída pelo marido companheiro de trinta e cinco anos de vida juntos.  

Carmem, além de sessentona, vê a mãe senil de noventa anos chorar que nem criança pelo dodói que ninguém quer fazer sarar, devido a fêmur e duas costelas quebradas.

Desidério, aparentando ter uns oitenta anos e mal de Parkinson avançado, cuida da mulher com câncer em fase final. Suspeito que quando ela entregar os pontos, ele irá segui-la como uma brisa suave para o mundo futuro.

Élida, uma mulher armênia de grande porte e imensos olhos tristes, cuida da ex-cunhada.

Fátima é cuidadora profissional que lamenta não ter voltado para o Piauí quando lhe avisaram que sua mãe estava nas últimas; por conseguinte tornou-se especialista em tratar bem as senhoras paulistas e estrangeiras que, revoltadas e solitárias, esperam a morte chegar.

Claro que todo acompanhante tem a ambígua esperança de ver seu querido (ou até mesmo seu desprezado) paciente ter melhora, ainda que essa possibilidade seja também fonte de inquietação. Amor, obrigação, culpa, caridade, sina, possibilidade de algum lucro no meio das perdas todas—mil e uma histórias diferentes e sem fim em um mesmo refeitório, servindo-se de sopa, arroz, feijão, carne ou peixe, massa, legumes e salada, sobremesa e suco. Alguns se isolam na multidão; algumas pessoas comem com as lágrimas salgando sua refeição, enquanto outros não largam o celular, mastigando devagar e demorando para voltar à enfermaria ou ao quarto bem-equipado onde tudo pára enquanto a vida de uns se renova e de outros se esvai.

Parece-me que este hospital não tem o júbilo da maternidade. Um enfermeiro me informou que as maternidades dão pouco lucro a seus proprietários pela curta permanência e rápida alta das pacientes. Este hospital é especialista em partidas—em dar altas por cura, melhoras e soluções—se bem que o alto índice de geriatria não esconda as ocasiões em que enfermeiro conduzem uma maca com paciente totalmente coberto, que levam ao subsolo, enquanto quem estava no quarto acompanhando ajunta, aos prantos, a pequena trouxa de pertences do seu querido.

Quando vim com Lau ao hospital, além da tristeza por ver como meu homem forte estava mal, meu apoio de vida, carente de tudo e necessitado de tudo que eu pudesse fazer, eu tinha  também uma frustração egoísta por não ter liberdade para fazer o que eu sempre fazia em casa—nem acesso a livros, nem possibilidade de traduzir e escrever. A hora era de ministrar para aquele que sempre cuidou de mim. No quarto, Wadislau me ensinava a orar sem cessar, interceder e procurar  na Palavra de Deus respostas às nossas muitas indagações do porquê das coisas. Descobri também um ministério junto a essas pessoas no refeitório: falar do amor de Cristo, orar com elas e por elas. Ao lembrar ainda hoje dos longos dias no hospital, trago à memória pessoas carentes da graça de Jesus, e intercedo por elas, algumas das quais nem o nome me recordo.

Estamos em nossa casa, onde cada dia fazemos curtas caminhadas pelo jardim, e Wadislau se reveste de forças, “sempre melhorando” (com isso, lembro do corinho de adolescência). Vamos nos renovando na singularidade do dia a dia, vendo de primeira mão a grande fidelidade de Deus. Agradecemos por cada aspecto da epopéia que passamos. E estamos esperançosos, gratos pela alegria de viver o céu agora, com a perspectiva de um futuro certo.

Elizabeth Gomes