quarta-feira, dezembro 11, 2013

PESO DO NATAL


Detalhe: Her Sadness by Olof Erla Einarsdottir

Em meados de novembro, uma amiga postou no facebook que terminara de comprar os presentes de natal para toda a família, e que tudo estava pronto para as festas. Confesso que fiquei com inveja, frustrada porque o dia se aproxima e eu nem comecei as compras. A lembrança da parábola de Jesus das dez virgens vem-me à mente com uma forte dose de culpa – se bem que me justifico com a lembrança de que a história das tolas sem azeite para suas lâmpadas, na verdade, se aplica ao preparo para a vinda do Senhor e não à questão do Natal – o Senhor já veio.

Nem sabemos a época do ano em que ele realmente nasceu, e a festa do natal como a conhecemos é resquício da tentativa de cristianizar a festa pagã de saturnália. Apesar de eu ter afirmado que não atenderia solicitações de jogos pela internet, algumas pessoas me envolveram com apelos para sua “árvore de natal” e em amor às tradições natalinas eu cedi – e me descobri num emaranhado de sugestões de enfeites e pedidos para eu compartilhar “presentes” para as árvores de muitos amigos queridos, cujas árvores não estou enfeitando.

Muita gente vê o Natal como época de maior pressão, complicação e depressão. As pressões mais leves são de como manobrar no trânsito maluco de São Paulo, como atender todos os pedidos feitos e suspeitos de tanta gente que espera um gesto de carinho e apreço com os proventos do décimo terceiro que, em casos como os de casa, não existem. As pressões para comprar, dar presentes, estar presente, e compartilhar “o espírito natalino” em nosso lar, com os colegas de trabalho e os parentes, com amigos secretos e caixinhas obrigatórias de todo lado. Na igreja, com os missionários e pastores e as instituições de caridade que apoiamos, de “ter de fazer” aquilo que não conseguimos o ano inteiro. Essas pressões aumentam à medida que se aproxima o grande dia. Antigamente só começava a campanha de compras para o natal depois do dia de ação de graças. Hoje poucos no Brasil se lembram dessa ação de graças – só da atividade doida e multiplicada ação da época de mais formaturas, casamentos, concertos, confraternizações e celebrações de toda espécie – bem como o aumento de sofrimentos ligados a acidentes, doenças e tragédias no macrocosmo e em nosso microcosmo particular.

As complicações são muitas. Quando descobrimos que o mundo não é perfeito e que as coisas não eram para ser assim, a depressão assola a todos.

Em dezembro de 1979, saímos depois do culto de natal em nossa igreja rumo à casa dos pais do Lau, em Araras, para celebrar com eles o dia vinte e cinco de dezembro. O barulho alegre das crianças cantando no carro, entre provadinhas dos cookies que eu assara e o aroma da paleta de cordeiro que levava, e a presença do seminarista com nossa família, sabíamos que este seria um natal perfeito. Estavam em flor as hortências que ladeavam a entrada do carro na casa da vovó – como no dia do nosso casamento treze anos antes. A casa estava calada e a Da. Eulina e o Sr.Wadislau não nos esperavam na varanda para dar as boas vindas. Depois de muito procurar, achamos a empregada que, quando perguntamos cadê todo mundo, disse apenas: hospital. Três quarteirões acima, no Hospital São Luiz, Da. Eulina estava ao lado do leito da firmeza da família, Sr. Wadislau: tombado, mudo e agonizante. No dia seguinte, aniversário seu e do irmão gêmeo Venâncio, tínhamos cantado “Que a beleza de Cristo se veja em mim” – e ele foi ver essa beleza face a face, no céu. O dia do seu natal foi de nosso amargo-doce luto – amargo pela dor da perda, doce pela lembrança do tesouro eterno que nossos lábios jamais cessariam de cantar. Havia muito tempo o natal para nós não era de ho-ho-ho do papai noel – agora seria sempre de “ai que dor! seu doutor!” ao lembrar a falta que ele fazia.

Cinco anos mais tarde, foi a vez de ver o homem animado e generoso que era meu pai definhar e morrer para esta vida. Permitiram que ele saísse do hospital para passar o natal em casa conosco, e a celebração do natal começou com um café da manhã a que veio um casal de antigos colegas do tempo em que meus pais ainda eram missionários e estavam juntos. A presença era preciosa, e os presentes apenas simbólicos. Papai voltou para o Hospital de Base no dia vinte e seis e durou até dia dois de janeiro – mas seu coração já estava restaurado na presença do Senhor desde antes daquele natal.

Muita gente tem lembranças doloridas, como as nossas, do tempo de natal. As nossas têm a tranquilidade de um encerramento pacífico – pior são as lembranças que alguns irmãos de carne e sangue têm de perdas irreparáveis, agressões, violências e em que não há esperança de vida eterna. Tem gente que geme “feliz natal” para não gritar Deus, por quê?! Sejam essas perdas devido a inundações locais ou tsunamis de repercussões internacionais, sejam elas de perda de emprego ou ministério em época de evangelho de prosperidade e êxito de tanta gente que não merecia tanto – essas perdas em épocas festivas só aumentam o abismo entre os que têm e são, e os que queriam ter ou ser alguma coisa e nem sabem o que pedir primeiro.

Voltando ao evangelho, descobrimos que o Cordeiro de Deus (João 1.29) se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade (João 1.14) – posto em humilde estábulo. Lugar propício para abrigar um cordeirinho recém nascido (Lc 2.7,12). Sua mãe na terra não tinha enxoval caprichado: ela o envolveu em panos, e os seus primeiros visitantes eram rudes pastores atônitos por terem recebido inusitada mensagem angélica e incumbência de transmitir a mensagem evangélica a todos quantos encontrassem (Lc 2.8-20).

Um tempo mais tarde, homens sábios, vindos de longe, dariam ao infante, presentes dignos de Rei: ouro, incenso e mirra. (Mt 2.11). Com certeza José e Maria usariam os recursos dessa dádiva para financiar a fuga ainda mais repentina para o Egito (Mt 2.14-18). O nascimento do Cordeiro significava também a morte de muitas criancinhas, assassinadas pela fúria invejosa de Herodes que desejava o título de único rei em Israel.

Hoje, muitos de meus amigos me desejam feliz natal enquanto encaram corações partidos, câncer e outras doenças devastadoras. Este natal contrasta com as musiquinhas de sinos tocando e anunciando a chegada (hoje em dia é de helicóptero!) de gigantescos papais noéis.

O nascimento de Jesus é, sobretudo, tempo de contradições. No dia da sua dedicação do primogenito, que de Deus é Filho unigênito, o velho profeta Simeão avisou a mãe que uma espada traspassaria seu próprio coração (Lc 2.21-35). Yehoshua – Salvador – será grande redentor, filho do Altíssimo, Luz do mundo e Pão da Vida – mas não teria onde reclinar a cabeça. O dom da vida veio envolto em panos de morte, e diferente dos muitos aromas que associamos ao natal hodierno, a mirra que recebera entre os presentes de nascimento seria semelhante ao nardo que seria usado sobre seu corpo quando ungido em Betânia para morrer (Jo 12.3,7) e em Jerusalém para inaugurar seu novo túmulo (Jo 19.39-40).

Natal fala da glória de Deus na face de Cristo e em vasos de barro!

Uma das grandes contradições do natal é que nossa fé não se firma na prosperidade ou em abundantes bênçãos sobre a terra – mas em meio a lutas, carências, pendências e até mesmo incoerências. Paulo entendeu bem isso ao escrever à igreja de Corinto sobre a morte e vida severina (ou paulina) de um Deus de dura e mui vera misericórdia. Aos meus amados, amigos e até aos que pouco conheço, desejo que essa luz de natal ilumine esplendorosamente nossa vida, quer seja ela de saudades de natais alegres do passado, quer de alegrias borbulhantes no presente, quer esguias mas firmes esperanças futuras:

Porque Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo. Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós. Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não desanimados; perseguidos, porém não desamparados; abatidos, porém não destruídos; levando sempre no corpo o morrer de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo. Porque nós, que vivemos, somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal. De modo que, em nós, opera a morte, mas, em vós, a vida. Tendo, porém, o mesmo espírito da fé, como está escrito: Eu cri; por isso, é que falei. Também nós cremos; por isso, também falamos, sabendo que aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também nos ressuscitará com Jesus e nos apresentará convosco. Porque todas as coisas existem por amor de vós, para que a graça, multiplicando-se, torne abundantes as ações de graças por meio de muitos, para glória de Deus. Por isso, não desanimamos; pelo contrário, mesmo que o nosso homem exterior se corrompa, contudo, o nosso homem interior se renova de dia em dia. Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação, não atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se vêem são temporais, e as que se não vêem são eternas. (2 Co 4.6-18)

Elizabeth Gomes

sexta-feira, novembro 29, 2013

VELHO NAMORADO FALA DE NAMORO


Você conhece aquela do cachorro que corria atrás de carros e que, um dia, conseguindo pegar um, não sabia o que fazer com ele? A coisa do namoro vai por aí. Há quem realmente deseje “encontrar um amor” e nesse sentido, o namoro é um processo de conhecimento mútuo dos enamorados. A Bíblia não menciona a palavra “namoro” no sentido de oficialização de um pacto, mas descreve a ideia de atração e compromisso afetuoso entre um homem e uma mulher, como no caso de Jacó e Raquel (“Assim, por amor a Raquel, serviu Jacó sete anos; e estes lhe pareceram como poucos dias, pelo muito que a amava” – Gênesis 29.20). No entanto, há quem queira namorar – uma ânsia de afeto, de proximidade bem natural –, mas não sabe com quem. De fato, esse tipo de pessoa quer namorar o “namoro”, isto é, sentir o gelo na espinha, a borboleta no estômago, ou ter com o que desfilar por aí, ou, ainda, achar oportunidade para “umas carnalidades” consentidas. Nisso é que dá correr atrás de namoro sem saber o que fazer com ele. Nesse caso, o alvo de namorar vem primeiro, como um culto a um ídolo desconhecido, que depois leva a cara das pessoas que “cabem” no andor.

Aí é que se adéqua minha versão do ditado: devagar com o santo que o andor é de barro. Primeiro deveria vir o encontro de pessoas, depois o desejo de namorar. Mas como o nosso coração prefere mais sentir ânsias de paixão a viver anseios de amor, a gente acaba pondo o andor do namoro no lugar do santo. Tal como tem de existir água antes que haja o desejo de nadar, assim também deveria haver alguém que despertasse o desejo de “namorar”. Como consequência dessa inversão, ocorre um tríplice engano. Primeiro quem põe à frente o alvo de namorar antes conhecer a pessoa objeto do encontro, tem de criar uma imagem dela, até mesmo para que a possa reconhecer, acaba criando a cara do santo à sua própria semelhança e torna o encontro que deveria ser gracioso em uma transação egoísta. Segundo, para que possa vir antes do encontro, o namoro (que deveria ser um termo descritivo da arte desse encontro especial) vira substantivo, quer dizer, torna-se um termo designativo de uma instituição, como pequeno noivado ou casamento. Terceiro, nessa condição, o namoro é assumido como um ídolo com poderes para satisfazer as necessidades dos pares e, consequentemente, torna-se um encontro por necessidade e não por expressão de amor. Em vez de ser um encontro que promova o bem do outro, vira um encontro para derivação de “benefício” próprio (“Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros” – Filipenses 2.4-5).

O namoro cristão – no sentido de um período de atração e de conhecimento mútuo entre um homem e uma mulher com vistas a um compromisso de amor – é uma relação entre irmãos com o propósito de agradar a Deus por meio do conhecimento da vontade de Deus caracterizado pela devida santidade. Paulo, instruindo os tessalonicenses sobre essa matéria, diz: “Pois esta é a vontade de Deus: a vossa santificação, que vos abstenhais da prostituição; que cada um de vós saiba possuir o próprio corpo em santificação e honra” (ver 1Ts 4.3-4; ver vv 1-9). A palavra “possuir” (gr., ktaomai) tem o sentido de “adquirir”, “obter uma esposa”, e a expressão “próprio corpo” (gr., skeuos, vaso) tem o sentido de “implemento”, que lembra o texto de Efésios 5.31: “Eis por que deixará o homem a seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, e se tornarão os dois uma só carne”. Nessa linha de pensamento, Paulo realça que o empenho de buscar o “par de vaso” implica em um relacionamento entre irmãos. Assim, namoro deveria ser um relacionamento entre irmãos com vistas a uma união íntima. Essa união íntima exige o conhecimento de Deus em santidade de vida e o conhecimento mútuo dos envolvidos com base no conhecimento da vontade de Deus e no exercício da pureza do amor.

Do jeito que as coisas estão, hoje, o namoro dispensa o conhecimento da vontade de Deus e opta pela busca experimental do “par de vaso” por meio de uma intimidade exacerbada e não própria de irmãos. A jovem ou o jovem “namora” um, depois outro, e outro, até se esgotarem as possibilidades na igreja ou ao redor. Um dia, aparece uma cara nova e, no dia seguinte, os namorados dão-se e exigem todos os direitos de uma falsa intimidade – em nome do amor! Falsa, digo, porque não há intimidade sem conhecimento. Na verdade, toda intimidade sem conhecimento é abuso e violência. Não é fato que todos somos pudicos por natureza? Somos protetores de nossa intimidade assim como jogadores de futebol que, na barreira para um chute a gol, protegem “a cara”? Não é apenas que a menina e o menino foram socialmente condicionados a proteger a intimidade talvez por causa de expressões como: “Só a mamãe pode lavar aí até que você aprenda a se lavar” ou “Tira a mão daí, menino; tá com coceira?” Sobretudo, isso é porque Deus disse que as partes mais honradas foram estrategicamente protegidas por fortes partes do corpo (ver 1Coríntios 12.22-14). É verdadeiro também que as meninas crescem dotadas de um senso de sua missão de mulher, tanto como ninho da humanidade quanto de espelho da glória de Deus, refletindo ao homem a dependência que essa humanidade tem em relação à providência de Deus. E os meninos, da mesma forma, crescem dotados de um senso de sua missão masculina de refletir a glória de Deus tanto na proteção do ninho quando na honra a Deus, refletindo a imagem de Deus na vida da mulher. Tudo isso, como Paulo disse, com um propósito maior: “Eis por que deixará o homem a seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, e se tornarão os dois uma só carne” (Efésios 5.31).

Agora, um dia, vem o completo desconhecido, cheio de beiço e com quatro mãos, murmurando amores e gabando-se de virtudes protetoras, tais como: “Deixa comigo” e “Confia em mim”, e a mocinha tímida ou atrevida, sedenta de experiências de alguma forma de amor – e, no dia seguinte, são os mais íntimos da vida. Nem pai nem mãe nem irmãos sabem mais ou querem mais. Contudo, ocorre que, uma vez que, sem conhecimento e compromisso, intimidade é abuso e violência, os namorados enfrentam um dilema: amar a Deus e ao próximo ou negar o amor a Deus e “fazer” amor com o próximo? Isso é assim porque a intimidade antes de o compromisso com Deus ser selado no compromisso com o “par de vaso” é, de fato, defraude, como disse Paulo: “e que, nesta matéria, ninguém ofenda nem defraude a seu irmão” (1Ts 4.6).

Poderá ser que ela pense: “Se eu não ceder, perco a oportunidade” ou “o corpo é meu, faço o que quero”. E poderá ser que ele pense: “Se eu não aproveitar, outro aproveita” ou “Se eu não for afoito o que é que vão (ou ela vai) dizer de mim?” O fato é que, ele e ela estarão se rebaixando e rebaixando um ao outro, de um grau de dignidade que Deus deu a todos os homens como parte da graça comum, pois todos temos consciência do bem e mal (ver Romanos 2, esp. vv 14-21).

Seja um namoro consequente ou inconsequente, os resultados virão. No caso de um namoro inconsequente (como a saída do moço arguido pelo pai da moça, se estava namorando a filha pra casar ou pra que é, respondeu: “Pra que é”), lembre-se de que os namorados sempre preparam o marido ou a esposa de outro irmão ou irmã em Cristo, e o defraude, guardando culpa e medo, diminuirá as possibilidades de futuros relacionamentos bem sucedidos. No caso de um namoro que acabe em casamento, o defraude gerará culpa e ciúme. A qualquer hora ele se perguntará se o chefe, colega ou amigo da esposa terá mais “lábia” do que ele; ou ela se perguntará se a secretária, amiga ou o que for do marido será mais atraente do que ela. Certamente, para os consequentes, haverá sempre a esperança firme de redenção por meio do arrependimento e da confissão, em Cristo Jesus. Para os inconsequentes, ainda que prevaleça a redenção, a restauração será sempre mais difícil e dolorosa.

O namoro, em moldes bíblicos, portanto, é oportunidade para uma amizade fraterna que visa o conhecimento de Deus e propicia o conhecimento próprio e o conhecimento mútuo. Isso implica a orientação da Palavra de Deus:

Tende cuidado, irmãos, jamais aconteça haver em qualquer de vós perverso coração de incredulidade que vos afaste do Deus vivo; pelo contrário, exortai-vos mutuamente cada dia, durante o tempo que se chama Hoje, a fim de que nenhum de vós seja endurecido pelo engano do pecado. Porque nos temos tornado participantes de Cristo, se, de fato, guardarmos firme, até ao fim, a confiança que, desde o princípio, tivemos (Hebreus 3:12-14).

Uma boa regra para o namoro será: lembre-se de que o beijo cala a boca. Por isso, fale, converse, instrua, aconselhe. Permita que o conhecimento em Cristo seja a intimidade que oriente a maravilha do caminho “do homem com a donzela” (Provérbios 30.19). Conheça a história do coração (memórias) do irmão ou irmã, mas conheça com discernimento, lembrando coisas que transmitam graça, não murmuração, amarguras, maledicências, impurezas e impudicícias. Dignifique o irmão ou irmã com a dignidade de servos de Cristo.

Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso coração. E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai (Colossenses 3.16-17).

Bom namoro!

Wadislau Martins Gomes

quarta-feira, novembro 13, 2013

GRAÇA E PANELAS FURADAS


 

A graça de Deus é que permite conhecer e discernir as dimensões de unicidade e multiplicidade em tudo o que existe. O que eu quero dizer? Isto mesmo que foi dito: o que permite que conheçamos a Deus e as coisas que ele criou, incluindo a nós mesmos, é sua graça. Mas o que é graça? Esta é uma palavra de contato, isto é, que a gente usa sem saber definir o significado. Um dos sentidos do termo graça é muito conhecido e usado: “favor imerecido”. Entretanto, este sentido é descritivo de uma propriedade da graça, não do seu significado.

Deixe-me ilustrar. Era o fim da década dos cinquentas, quando os jovens vestiam calças “rancheiras” (o jeans da época), as moças de sandálias e os moços de botas com salto “carapeta” (do formato de peão). Minha irmã, já falecida, estava naquela idade de ser menina moça, muito graciosa. Um dia, aproximou dela um jovem bem tratado, cabelo volteado na testa, que disse: “Posso saber sua graça”. Ela respondeu: “Eu não fiz graça nenhuma!” Tão logo percebeu a situação incômoda, saiu correndo, sem graça. Parece piada, mas se aplica bem à definição do termo. Graça é identidade, beleza, paz (interação harmônica) e alegria. Graça é a manifestação da identidade de Deus, de sua beleza, de sua paz e de sua alegria.

Por que “favor imerecido”? Vai outra ilustração. Pequeno ainda, na cidade de Jahu, SP, quando a noite caia, eu me punha a olhar as estrelas. O céu parecia uma daquelas panelas pretas da fuligem do fogão a carvão que havia lá em casa. Às vezes, as panelas começavam a chiar no fogo, e minha mãe as levantava contra a luz para ver se estavam furadas. E eu imaginava se as estrelas não seriam furos na negridão do céu, deixando passar réstias fulgentes de uma luz perene. Assim é que, à visão de cada traço de luz do amor de Deus que penetra as trevas do pecado deste mundo, o crente diz: “Eu não mereço!”

Graça é isso: o movimento de Deus na direção do homem a fim de transmitir sua própria natureza. É sobre esse movimento que Pedro escreveu:

Visto como, pelo seu divino poder, nos têm sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade, pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude, pelas quais nos têm sido doadas as suas preciosas e mui grandes promessas, para que por elas vos torneis co-participantes da natureza divina, livrando-vos da corrupção das paixões que há no mundo (2Pd 1.3-4).

Como opera a graça de Deus? Certamente mediante a fé. A Palavra de Deus diz que a fé é uma certeza que pressupõe esperança, não como quem “torce” num jogo ou numa eleição, mas a certeza de algo que se conhece, mas que ainda não se vê (como esperar se não for conhecido? – ver Hebreus 11.1-6). No mesmo lugar, a Escritura diz:

Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem. De fato, sem fé é impossível agradar a Deus, porquanto é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que se torna galardoador dos que o buscam.

Galardoador, aqui, não tem o sentido de recompensador de obras, mas da fé. Como diz Calvino (Comentário aos Hebreus), a intenção do autor de Hebreus é elevar nossa consciência para ver que nossa aproximação de Deus não será vã, pois ele mesmo nos criou para tal finalidade e propósito.

Wadislau Martins Gomes

(Extraído de Todo mundo pensa – você também; Brasília: Monergismo, 2013, pp 52-54.)

sábado, novembro 09, 2013

MUDANÇAS & PERMANÊNCIA


“Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a
eternidade no coração do homem” (Ec 3.11). 
 
Odiava mudança. Filha de missionários norte-americanos, radicada no Brasil, antes dos dezoito anos, quando me casei, já havia mudado mais de trinta vezes em seis estados e dois continentes. Cursando o Seminário Bíblico Palavra da Vida, moramos na “casa branca” e no “motel velho”, duplicando residências na casa dos meus sogros quando Lau ajudava a igreja de Araras e durante as férias, quando “voltávamos para casa”. Mudando para Belo Horizonte, moramos no Sion, no Bairro das Nações Unidas (onde compramos uma casinha cuja parede caiu) e na Serra, perto do Hospital Evangélico em casa graciosamente emprestada pelos irmãos Abdala e Paulinho. Mudamos para São Paulo, onde primeiro moramos no Brooklyn e depois em três residências diferentes em Santana. Quando Lau assumiu um pastorado em Jaú, fomos para o “apartamento pastoral”, e, depois, para a espaçosa casa pastoral então adquirida. A mudança de ministério, o trabalho de tempo integral com O Refúgio, levou-nos por três anos a morar numa grande casa de fazenda, emprestada. Sendo meu marido convidado para dirigir o Instituto Presbiteriano Nacional de Educação, em Brasília, enfrentamos mais uma mudança e duas residências – para, quatro anos depois, desfazermo-nos de tudo que possuíamos e ir aos Estados Unidos. Lá, moramos temporariamente com um jovem pastor, John Yenchko, e sua esposa Nina, que receberam em amor a família do novo aluno do CCEF, antes de encontrar uma situação residencial mais estável na 301 (e depois 309) Bent Road, em Wyncote. A nova residência era uma mansão vitoriana dividida com outra família de estudante. Uma mudança para Boston, para implantar igrejas, incluiu um séquito de duas casas e dois apartamentos. Voltamos para Brasília só com o filho mais novo (a filha estava casada e o filho mais velho continuou o pastorado começado por Wadislau e ele, em Alston), onde houve o apartamento da igreja e, mais tarde, a casa da chácara O Refúgio. Depois disso, mais duas casas em outro sítio de O Refúgio, em Mogi das Cruzes, SP.

Na maturidade, as mudanças não vieram mais de ano em ano, mas continuavam nos surpreendendo. Mudança de local nem sempre implica mudança de vida ou status, mas, muitas vezes, mudanças externas e internas ocorrem simultaneamente, mesmo que algumas sejam imperceptíveis, no começo. Por exemplo, o começo de nossa vida de casados foi no final dos estudos bíblicos, preparando-nos para o trabalho missionário (incluindo visitando muitas igrejas para levantar o sustento); tive gravidez, parto, nascimento e criação do primeiro filho enquanto estudávamos e trabalhávamos em diversos “bicos”, de Lau abrindo fossas e poços, aprendendo marcenaria com Haroldo, grego com Ary Veloso e teologia com Dr. Shedd (a quem hospedamos diversas vezes para refeições) e sendo motorista do IBPV, até minha aventura de fazer doces e vender aos colegas ou dar aulas de inglês sem nenhuma garantia de sustento financeiro – vivendo a abundância da graça de Deus.

Em BH, a missão teve mudança de enfoque: evangelização de israelitas. Com cinco salários mínimos, alugávamos apartamento, comprávamos alimentos, material de limpeza e nos locomovíamos, tendo ainda para compartilhar oferta com outros irmãos! E dava! Comecei a dar aulas em tempo parcial (outra grande mudança de vida, apesar de eu ter dado aulas particulares desde os treze anos de idade) e estudamos para prestar e passar exames de estudo secular, depois simplesmente continuamos estudando sempre para aprender.

Não dá para enumerar mais as modificações de vida, de enfoque, de situações, nas mudanças que continuavam ocorrendo, ao vir a São Paulo no trabalho missionário, no primeiro pastorado de uma igreja (que no começo não tinha como nos sustentar, e em que, depois, dividíamos o salário do Lau com o auxiliar de pastor para que ele também pudesse servir a igreja!). Obviamente eu era bastante imatura; cometi muitos erros de desempenho como esposa de pastor e erros básicos de vida cristã. Aprendíamos sobre eternidade da vida com Deus e a efemeridade da vida no tempo. Vivendo na cidade grande, ansiávamos pela Cidade Celestial, como os perambulantes do deserto no Salmo 117 que firmaram raízes no Senhor e sua Palavra,

Ao mudar para Jaú, cidade da infância do Lau, coração de São Paulo e cerne de grandes expectativas de fazer e realizar para o Senhor, começamos a aprender também que as realizações não eram tão importantes quanto ser do Senhor – instrumentos e não agentes,  servos e não fazedores! Wadislau era pastor cercado e procurado principalmente por jovens, e alguns dos velhos sob seu cuidado, que o haviam carregado no colo, também pastoreavam nossos corações. Continuamos no aprendizado enquanto servíamos ali, depois na capital federal, e então, voltando aos estudos na casa dos quarentas em outro país, outra cultura, tendo três filhos estudantes também se preparando para a vida e vivendo enquanto se preparavam! Finalmente, quando fomos para o campo como caipiras assumidos em busca do ministério sonhado, de aconselhamento, muitos perguntavam como então viveríamos ou sustentaríamos os filhos? Lau respondia “Como sempre, na dependência do Senhor” – que não significa de papo pro ar, mas de “cavar buraco quando é preciso, e tapar buraco se não tiver o que fazer – Deus dá o sustento ao trabalhador”.

Depois de mais de seis anos nos States, voltamos a Brasília, então com meu marido no pastorado da IP Nacional. Além de mudanças de posição e atuação, havia também transformações de ciclo de vida. Em cada lugar aonde fomos, fizemos amizades, tivemos grandes perdas e inestimáveis ganhos para a eternidade. Quando deixamos a IPN para construir, finalmente, a Refúgio, pensei “Agora quero viver até morrer na casa que estamos construindo” e vários irmãos nos apoiavam nessa meta. NUNCA MAIS VOU MUDAR, pensei.

Mas mudança faz parte da vida cristã, e Deus nos chamou para mais uma deslocação geográfica, enquanto trabalhava nossa transformação mental e cardíaca. Continuamos trabalhando, servindo, escrevendo, participando ativamente do Reino. Não somos mais descritos como jovens nem fica sobre nós o rótulo de imaturos ou inacabados. Às vezes nos sentimos acabados mesmo fisicamente, quando o corpo não tem a agilidade de quando acampávamos na praia ou no campo, viajávamos de Volkswagen de Belo Horizonte à Argentina e Uruguai, de São Paulo a Garanhuns, nossa família com outro casal, sem pernoite em hotel, ou mesmo mil quilômetros de Brasília a Araras saindo de madrugada e chegando à noite, comíamos frango com farofa feito na noite anterior e acondicionado em lata de Neston! É, nós farofeiros de outrora hoje aceitamos compromissos em que vamos de avião se for mais de 500 quilômetros de distância. Não é luxo, não – os tempos mudaram e o tempo deixou marcas em nosso corpo descuidado!

Jamais deixamos de ter cuidado com o que realmente transforma a vida. Fortalecemos a alma, amolecemos o coração e buscamos transformar a disposição para um contentamento autêntico, conforme Paulo indicava depois de ter vivido incríveis aventuras e impossíveis sofrimentos: “Aprendi a estar contente em toda situação...” (Fp 4.11 e 1Tm 6.6-8). Cada mudança tem sido parte de nossa meta de inconformidade com o mundo e de transformação segundo a mente renovada proposta pelo Senhor (Rm 12.1-3). Em muitos aspectos, somos os mesmos que começamos a caminhar juntos há quase cinquenta anos. Em outros, ainda estamos sendo mudados, e não imaginamos o quanto ainda o Senhor da Seara nos transformará. Mudará nosso coração, as coisas ao redor, as pessoas a quem amamos, as circunstâncias que prezamos e as que gostaríamos de ver diferentes! Em meio a um mundo em queda, em espiral descendente, temos um Deus imutável (Malaquias 3.6), uma fé ancorada no firme fundamento: “Entretanto, o firme fundamento de Deus permanece, tendo este selo: O Senhor conhece os que lhe pertencem” (2Tm 2.19). “Tivemos sempre consciência do contraste de estar, por um lado, em movimento e mudança, enquanto por outro, havia a firme certeza de nossa condição – de forasteiros e peregrinos, embaixadores do Reino celeste, sem medo de sujar as mãos na vida terrestre do aqui e agora”. Podem vir mais mudanças inesperadas nesta época em que amadurecemos e a saúde do corpo deteriora – mas que sejam mudanças de crescimento para a vida no Corpo de Cristo! Embaixatriz, embaixador – forasteiros somos, mas estamos representando um Rei imutável e imarcescível! Bebês, crianças, jovens, maduros, velhos quase decrépitos – um dia mudaremos para a presença permanente e visível do Senhor – e pretendo continuar aprendendo dele quando o vir em glória!

Elizabeth Gomes

terça-feira, outubro 22, 2013

REFORMA PROTESTANTE -- UMA LIÇÃO DE HISTÓRIA



Atente ao salmista: Elevo os olhos para os montes: de onde me  o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra (Sl 121.1-2). Observe que socorro não vem dos montes, mas do seu Criador! Não é uma declaração ultramontana? No entanto, está tão perto como um punhado de terra úmida na concha da mão. É exatamente disso que precisamos para entender o papel da Reforma Protestante do séc. XVI e a razão de sua permanência. Ela se alça como bandeira fincada em um ponto histórico da escalada. Entretanto, do outeiro de onde observamos a sua elevação e consequências na formação do atual pensamento moral, metafísico e epistemológico, muitas vezes, incorremos no erro de considerá-la como o monte de onde nos viria o socorro. É como quem, olhando de uma colina, vê o pico mais próximo como se fosse o mais alto, esquecido do que há no início e ao longo de toda uma cordilheira. Nada melhor do que o tempo passado e os efeitos observados para uma visão ampla e mais alta da história.

A fim de bem avaliar as perspectivas, a história maior, escrita por Deus, terá de ser vista de perto e de longe (“Acaso, sou Deus apenas de perto, diz o Senhor, e não também de longe?” – Jr 23.23). Para isso, será preciso levar em conta, pelo menos, três aspectos dessa visada (Vant Til, Frame, Poythress):

Original de John Frame com base em argumento de Van Til,
utilizado por Vern Poythress e adaptado por WMG
(1) há uma tríade de soberania – o Senhor é quem cria e sustém a história, sempre em controle de toda a verdade, sempre presente em amor, e sempre com suprema autoridade sobre todas as suas obras (At 4.8; 17.24-27);
(2) há um aspecto normativo central – Deus revela a si mesmo e a sua vontade por meio da Bíblia, a qual é suficiente para o conhecimento e para a prática de vida; e, à sua luz,
(3) há uma tríade de dependência:
(a) um aspecto descritivo, significando que a pregação e recepção da Palavra de Deus, e a observação e constatação do homem, dependem da sua fidelidade à Palavra original;
(b) um aspecto situacional, significando que nada ocorre no vazio e de súbito, e que os fatos históricos atendem aos propósitos de Deus de criar um novo homem e uma nova humanidade (Ef 1.11; 2.10-22; 3.10-11); e
(c) um aspecto existencial, significando que os tempos e espaços entre ocorrências principais também estão cheios de significado para o homem interior (Ec 3.1-11; Rm 8.18-29; 2Co 4.16; Ef 3.16; 1Pd 3.4).

Bem viu Isaias, quando registrou a voz de Deus: “Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito” (Isaías 57.15). O profeta olhava para o Senhor dos montes e antevia o ponto mais alto da história. Apontava para Deus e “o seu beneplácito que propusera em Cristo, de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as da terra” (Ef 1.9-10). A ele “pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele habitam” – diz o salmista, perguntando: “Quem subirá ao monte do Senhor? Quem há de permanecer no seu santo lugar?” (Sl 24.1-3). E a Palavra responde: “Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas” (Ef 4.10).
Bem viram os reformadores, mais de mil e quinhentos anos depois do cumprimento profético, quando escalaram o “monte” da Reforma. Seus braços estendidos não declaravam outro socorro que não o do Senhor. Apontavam para um monte superior, para o Senhor e referência de todas as coisas. Ele é a revelação de Deus na história, a própria História, de quem Paulo disse “para compreenderem plenamente o mistério de Deus, Cristo, em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos” (Cl 2.2-3). E Jesus mesmo resumiu o princípio da história apontada pelos reformadores: “Vim do Pai e entrei no mundo; todavia, deixo o mundo e vou para o Pai” (Jo 16.28).

Aspecto normativo. “Quem me vê a mim vê o Pai” – disse Jesus (Jo 14.9), sobre quem João declarou: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”, completando que ele é a razão e o propósito da criação, a vida e a luz dos homens (Jo 1.1; ver 2-5). Isso também Jesus explicou: “porque eu lhes tenho transmitido as palavras que me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que saí de ti, e creram que tu me enviaste” (Jo 17.8). Assim, Jesus Cristo é a Palavra viva, “o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser [de Deus], sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, [que] depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas (Hb 1.3). Portanto, a base normativa da totalidade e do ápice da história da primeira Reforma do séc. I AD é o próprio Senhor Jesus Cristo e sua Palavra Escrita. Sobre a Palavra, Pedro testifica: “que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (2Pd 1.20-21). E Paulo reafirma a necessidade de permanecer nela a fim de obter sabedoria para a salvação pela fé em Cristo: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra (ver 2Tm 3.14-17).

Aspecto descritivo. O apóstolo Paulo reafirmou o aspecto normativo ao dizer que havia recebido o evangelho “não da parte de homens, nem por intermédio de homem algum, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai, que o ressuscitou dentre os mortos” (Gl 1.1). Falou também de outro aspecto, descritivo, a que pessoas como nós, que não viram e ouviram diretamente o Cristo ressurreto, deveríamos nos ater, isto é, o evangelho pregado (Gl 1.8, 9). A segunda reforma, do século XVI, cumpriu exatamente essa orientação apostólica, como Calvino disse: “Nossa fé nele não será firme se não compreendermos seu divino poder (...) assim, não devemos receber friamente o fato de que ele veio de Deus, e também entender por que razão e propósito ele veio – para que nos fosse sabedoria, e santificação, e justiça, e redenção” (Calvin’s Commentary, John 16.28).

Aspecto situacional – refere-se aos montes dos quais se avista o monte do Senhor. Assim como muitos montes figuram o monte do Senhor – Sião, Oliveiras, Gólgota, etc., – assim também muitos “montes” da história marcaram muitas reformas. O apóstolo Paulo, com respeito à primeira Reforma, usa o argumento de Abraão para mostrar como a perfeita e boa Lei de Deus atua em relação à situação decaída dos homens, e como Cristo sofreu a maldição da lei em nosso lugar: “Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão” (Gálatas 3.8). E argumenta (Gl. 4.22-31) que Abraão teve dois filhos, um da mulher escrava, nascido escravo, e outro, da livre, nascido da promessa. “Estas coisas são alegóricas; porque estas mulheres são duas alianças; uma, na verdade, se refere ao monte Sinai, que gera para escravidão”. Agar, ele diz, figura ambos, o monte Sinai e Jerusalém escrava de legalismo; “mas a Jerusalém lá de cima é livre”. Em outra situação, o diálogo de Jesus com a mulher samaritana é elucidativo: ela disse: “Nossos pais adoravam neste monte; vós, entretanto, dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar.” E Jesus respondeu: “...podes crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus” (Jo 4.20-22). Portanto, o que se depreende é que tanto a Reforma do séc. XVI quanto todas as reformas necessárias ao longo da história, para serem coerentes com o aspecto normativo e asseguradas no aspecto descritivo, têm manter em mente um aspecto situacional: que a verdadeira lei de Deus, em Cristo e em sua Palavra, apresentam duas perspectivas excludentes: ou vemos a graça de Deus em todo esplendor da verdade em amor, ou olhamos para miragens de lutas inglórias, carnais e escravizantes. No primeiro caso, fica a admoestação de Pedro:
... santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão e temor, com boa consciência, de modo que, naquilo em que falam contra vós outros, fiquem envergonhados os que difamam o vosso bom procedimento em Cristo, porque, se for da vontade de Deus, é melhor que sofrais por praticardes o que é bom do que praticando o mal. 1 Pd (3.15-17).

Aspecto existencial. Certamente há nos montes da terra um elemento de luta e de dor. Jesus, Filho de Deus e Filho do homem, enfrentou essas coisas ao entrar no mundo. Dele, que é a verdade e o amor, a justiça e a bondade, foi dito: “Eis que este menino está destinado tanto para ruína como para levantamento de muitos em Israel e para ser alvo de contradição (também uma espada traspassará a tua própria alma), para que se manifestem os pensamentos de muitos corações” (Lc 2.34-35). Dominava-lhe a graça e a ira do Pai, como disse João: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo 1.14) e “Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus” (3.16). Paulo também diz o mesmo, em outras palavras: “Ou desprezas a riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento (Rm 2.4)? E: “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça (1.18). Paulo ainda reflete esse sentimento em moldes humanos, quando diz: “lutas por fora, temores por dentro” (2Co 7.5). Certamente os reformadores do séc. XVI refletiram essa tensão. Em uma carta a Falais, Calvino escreveu:
No presente estado de coisas, reconheço a intenção de nosso Deus de privar-nos de um Evangelho triunfante, a fim de nos constranger a lutar sob a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. Contentemo-nos com o fato de que ele reitera seu método de lidar de maneira miraculosa com a preservação da igreja, por seu próprio poder e sem ajuda de arma carnal (Library of Geneva. Vol. 106, July 1517).

No momento em que entendermos que “a nossa luta não é contra o sangue e a carne” (Ef 6.12) e derivarmos da primeira Reforma do séc. I a importância de nosso momento, então, reconheceremos os benefícios da Reforma do séc. XVI.


Wadislau Martins Gomes

quinta-feira, outubro 10, 2013

FALSAS EMOÇÕES

 

Um dos rótulos comuns que as pessoas “colam” sobre nós, mulheres, é que somos exageradamente emocionais – enquanto o gênero masculino se caracterizaria por uma racionalidade límpida e clara. Sempre resisti a esse juízo, embora tenha de admitir que me emociono à toa. Lau zombava de mim porque, quando recém casada, ao assistir a um filme em desenho animado (Peter Pan), eu chorei com os dizeres de Wendy sobre o que é uma mãe. Estava felicíssima por meu estado civil, não tinha saudade do tempo em que estava debaixo da asa da mamãe, e a perspectiva de que eu mesma em breve seria mãe animava meu coração. Mas chorei. Às vezes choro até hoje com livros ou filmes melosos e superficiais. Choro com músicas tocantes, com fotos que falam mais que mil palavras. Meus sentimentos se movem com coisas belas, coisas feias, coisas tristes, coisas alegres. Manteiga derretida sou eu, seja na frustração de observar minhas crescentes limitações, sejam nas vitórias e derrotas que – meninas, eu vi! – ou de observar na vida de pessoas amadas.
 
Além da emoção que brota de sentimentos misturados, característicos de minha humanidade criada à “imagem de Deus, mas decaída”, existem também falsas emoções que sobrevem quando as pessoas rebaixam uma as outras com formas de linguagem que ocultam o sentimento verdadeiro, e não nos deixam plenamente cônscios da diferença entre o que é verdade e o que é falso. É o exemplo do kitsch – uma obra de arte que não vem como resposta ao mundo real, mas é uma fabricação projetada para substituí-lo. Vemos muito evangelho kitsch nos dias atuais – apresentações bonitas, sanitizadas do que seja atraente no evangelho de Jesus Cristo, mas que negam o poder e a glória da cruz e da ressurreição. Tanto o produtor (escritor, pregador, promotor, pensador superficial) quanto o consumidor (nós ouvintes, leitores, curtidores) conspiram para persuadir um ao outro de que o que sentem nessa obra kitsch de escrita, postagem, pregação, compartilhamento – seja algo profundo, importante e verdadeiro. A ênfase na comunicação mudou, do conteúdo do que se diz para o poder que fala por meio dele – não obstante a verdade ou inverdade do que é e pode ser.
 
Reconheço diferenças culturais e de gênero, algumas mais de educação do que biológicas, outras, do ensino bíblico transmitido de geração em geração – e lembro que desde Eva, uma sensibilidade para com os relacionamentos caracterizaria nossa persona (Gn 3.16) enquanto Adão procuraria desbravar, vencer espinhos e multiplicar o rumo que tinha pela frente (Gn 3.17-19). Mas ambos tinham o mandato cultural de cultivar e guardar, de cuidar, preservar e alargar os limites. Ambos também são compostos de raciocínios segundo a imagem de Deus junto a sentimentos segundo o coração do Senhor da Criação, que desde seu princípio fez tudo muito bom, um jardim de delícias e de criatividade multiplicadora.
 
No âmbito da cultura atual, constatamos a falsidade reinante e cada vez mais crescente, e chegamos a perguntar se não seria possível continuar indo com as ondas como nesse rio caudaloso que quer nos dominar e afogar. Não seria possível continuar na falsidade das emoções esdrúxulas? Isso não seria preferível às vidas autênticas e sinceras em que as paixões humanas florescem sem controle, muitas vezes em plenitude de maldade? Quem sabe o destino da cultura seja induzir a todos para um sonho de Disneyland sempre que a perigosa cobiça por realidade nos assoberba. Afinal, quando se olha as instituições culturais nas democracias hodiernas, podemos achar que seu propósito é de falsear, e que isso se faz para o bem e para a ignorante felicidade de todos.
 
Dick Keyes, em Seeing through Cynicism, disse: “A fé cristã partilha, pelo menos parcialmente, de certos diagnósticos comuns de juízos cínicos... não existem cantos escondidos de inocência neste nosso mundo. Existe neste mundo o sofrimento aparentemente sem propósito, sem sentido, de desperdício; existe, misturado ao amor, beleza, paz, prosperidade e validade – ódio, caos, pobreza e morte. Tais realidades não são distribuídas conforme alguma aparente igualdade ou justiça. A maioria dos observadores honestos poderá ver junto ao Pregador de Eclesiastes: ‘Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: Os velozes nem sempre vencem a corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio, pois o tempo e o acaso afetam a todos’ Ec 9.11)”.
 
Quero trazer às minhas emoções e ao meu raciocínio dois princípios:
               
a) Quanto às emoções:
 
Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus,pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus;antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana,a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra,e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai (Fp 2.5-11).
               
E b) quanto ao raciocínio:
 
Seja bendito o nome de Deus, de eternidade a eternidade,porque dele é a sabedoria e o poder; é ele quem muda o tempo e as estações, remove reis e estabelece reis; ele dá sabedoria aos sábios e entendimento aos inteligentes. Ele revela o profundo e o escondido; conhece o que está em trevas, e com ele mora a luz. A ti, ó Deus de meus pais, eu te rendo graças e te louvo, porque me deste sabedoria e poder (Dn 2.20-23).
 
Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus (Rm 12.1-2).
 
...antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão e temor, com boa consciência, de modo que, naquilo em que falam contra vós outros, fiquem envergonhados os que difamam o vosso bom procedimento em Cristo, porque, se for da vontade de Deus, é melhor que sofrais por praticardes o que é bom do que praticando o mal. (1Pe 3.15-17).
 
A razão e a sensibilidade estão juntas sob a esfera da vida no Espírito. Porque no fim, nossa emoção e nossa razão têm de andar juntos sob o senhorio de Jesus Cristo!
 
Elizabeth Gomes

terça-feira, outubro 01, 2013

A REFORMA E O BOI DE BRIGA



As excelentes aproximações de cristãos que conhecem a Reforma Protestante e reconhecem suas bases na Escritura Sagradas são como festas de louvor e ação de graças. São festas santas em que a obra de Cristo é exaltada, como disse Calvino citando Oséias: “‘Tira a iniqüidade’, diz ele – eis a remissão dos pecados! ‘E ofereceremos como novilhos os sacrifícios de nossos lábios’ – eis a satisfação!”

Contudo, no contraponto, há figurações de outros que seguem o passo sem saber para onde. Parece mais festa de circo ou parque de diversões no arraial: rojões, banda ou violeiros, corrida do boi, e os inevitáveis rasga roupas. “Dou um boi pra não entrar numa briga e uma boiada pra não sair dela” – diz o cabra macho. Nas ruas, isso parece até coisa bonita quando o boi não investe e dá uma carreira no matuto.

É claro que, desde o início da Reforma, havia os que davam marradas, e Calvino não fugiu à luta, pegando os bois pelos chifres. Sadoleto, Servetus e outros sentiram a doma do reformador. O próprio apóstolo Paulo deu nome aos bois: por exemplo, Demas, Alexandre, o latoeiro, etc. Judas, “servo de Cristo e irmão de Tiago”, que também não tinha medo de boi matreiro, exortou-nos a batalhar “diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos”. Mas ainda que condenasse os homens ímpios que transformavam a graça de Deus em libertinagem, brutos sem razão, ele também advertiu: “Contudo, o arcanjo Miguel, quando contendia com o diabo e disputava a respeito do corpo de Moisés, não se atreveu a proferir juízo infamatório contra ele; pelo contrário, disse: O Senhor te repreenda!” (Judas 9.)

Adversários são herança da fé, como o Senhor Jesus preveniu: “Lembrai-vos da palavra que eu vos disse: não é o servo maior do que seu senhor. Se me perseguiram a mim, também perseguirão a vós outros” (João 15.20).  Mas lembre-se do que ele também disse: “amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mateus 5.44-45).

Calvino (Institutas 3.7.6) diz:

O Senhor preceitua que se deve fazer o bem a todos em geral, os quais em grande parte são muitíssimo indignos, se forem estimados em seu próprio mérito. Mas aqui a Escritura nos apresenta uma excelente razão, quando ensina que não se deve atentar para o que os homens mereçam em si próprios, pelo contrário, deve-se levar em conta a imagem de Deus em todos, à qual devemos toda honra e amor. Entretanto, essa mesma imagem deve ser mais diligentemente observada nos domésticos da fé [Gl 6.10], até onde foi ela renovada e restaurada pelo Espírito de Cristo.

E em outro lugar, cita Agostinho: “É de admirar-se”, diz ele, “a paciência de Cristo, porque admitiu a Judas ao banquete no qual instituiu a figura de seu corpo e sangue e deu aos discípulos”. (Institutas 4.17.21).

A diferença do trato bíblico e do trato ímpio é que o servo de Cristo enfrenta cara a cara os repreensíveis e os inimigos da fé, como Paulo fez com Pedro e a Elimas, o mágico.  Não se faz calar alguém com a força do pensamento à distância nem com a de argumentos, pois o coração rebelde só vê o que está presente e próximo. Quando houver necessidade de que, como disse Van Til,  uma voz se levante “em defesa das pequenas ovelhas de Jesus”, será bem que haja um contato pessoal, por carta ou telefone (lembrando sempre de que cartas são documentos e telefonemas são vazios de testemunho). No caso de a pessoa repreendida ser um irmão, poderá se arrepender e ter a paz restaurada; caso contrário, deverá ser denunciada à igreja para disciplina. No caso de ser um impenitente, então será preciso que seja exposto para vergonha sua e proteção dos irmãos. No entanto, isso deverá ser feito com o respeito devido a todo ser humano, por causa da imagem de Deus, nele deformada e, em nós, reformada à imagem de Cristo.

Paulo coloca bem isso em 2Coríntios 10.1-18, quando roga, invocando a “mansidão e benignidade de Cristo”, que não tivesse de ser ousado quando presente com os crentes daquela igreja. Ele preferia ser humilde em presença e ousado para servi-los à distância.

Porque, embora andando na carne, não militamos segundo a carne. Porque as armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando nós sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo.

Mas, se preciso fosse, queria que todos os crentes estivessem prontos, como ele estava disposto, “para punir toda desobediência, uma vez completa a vossa submissão”. E diz ainda: “para que não pareça ser meu intuito intimidar-vos por meio de cartas” e “Considere o tal isto: que o que somos na palavra por cartas, estando ausentes, tal seremos em atos, quando presentes”. Sobretudo, a preocupação do apóstolo não é com sua própria figura ou apresentação, nem com sua “missão”, mas com a medida da glória de Cristo. Não temia ultrapassar os seus limites, uma vez que ele mesmo havia pregado o evangelho aos coríntios, considerando-os dentro de sua esfera de ação juntamente com a tarefa de ir além das fronteiras. Entretanto, tinha um cuidado com o equilíbrio da ousadia e da humildade. A chave? “Aquele, porém, que se gloria, glorie-se no Senhor. Porque não é aprovado quem a si mesmo se louva, e sim aquele a quem o Senhor louva”.

Wadislau Martins Gomes

terça-feira, setembro 10, 2013

SUPERABUNDANTE GENEROSIDADE


"Generosidade de Deus" -- ao lado de nossa casa (foto de Tércio Garófalo).

Uma amiga que trouxe à nossa casa bandejas de guloseimas da festa de natal de sua empresa, quando um missionário e professor querido chegou para ser hospedado em nossa casa e nossa dispensa e geladeira estavam vazias. Um irmão que poupou as críticas e nos encorajou na caminhada com Cristo em um momento especialmente difícil de nossa vida. Uma judia que eu conheci em um encontro para futuros escritores e convidou a seis de nós colegas para comer (a suas expensas) em um restaurante fino de Philadelphia, simplesmente porque “recebi uma herança generosa e quero compartilhar com outras pessoas”. Um casal que, sendo Wadislau seu pastor anos antes, quando batalhava por cada centavo que recebiam como faxineiros, agora, financeiramente prósperos, ao contemplar uma viagem de sonhos para Israel, deu-nos passagens e ainda um dinheiro para eventuais despesas, “por simples gratidão”. Uma irmã em Cristo de grandes posses, sabendo que eu não tinha ajudante e estávamos prestes a hospedar um grupo de pessoas em nossa casa/Refúgio para um curso, veio com três faxineiras e suas próprias mãos e “deu uma geral” de cima a baixo em tudo, das janelas aos banheiros ao chão, por amor. Irmãs que compartilham sacolas de roupas, acessórios, sapatos e bolsas (às vezes ainda com etiquetas da loja de origem) para missionárias e velhas amigas como eu, multiplicando o compartilhamento com muitas outras servas do Senhor. Minha ajudante de uma vez por semana que faz questão de me presentear carinhosamente com trufas e artesanatos produto de suas mãos. Uma irmã que ao comprar cremes e maquiagens de griffe faz questão de mandar algo muito especial a outra irmã que não tem recursos para gastar em “superficialidades” que fazem tanto bem e perfumam a vida.

O parágrafo acima podia se estender por páginas para descrever alguns dos atos de generosidade com os quais fui contemplada. Contudo, por natureza, tenho de admitir que me esqueço rapidamente de favores recebidos, lembrando com muita presteza aquilo que fizeram de ruim ou não fizeram de bom por mim. Isso ocorre embora eu tenha sido agraciada com muitas coisas boas. Desde menina, testemunhei e fui e alvo de grandes e pequenos e gestos de generosidade.

Quanto ao assunto da generosidade, a Palavra de Deus é muito clara. Quero destacar dois aspectos: 1) A generosidade de Deus e 2) Deus deseja que o imitemos, e em nossas limitações humanas, desenvolvamos coração, mãos e vidas generosas.

Se procurarmos na chave bíblica o vocábulo “generosidade”, depararemos com algumas situações descritas como “generosidade” de reis que não exemplificam a bondade cristã e sim a abundância de presentes como forma de garantir favores ou estabelecer alianças. Mesmo o patriarca Jacó, queria comprar o perdão de seu irmão mandando bandos de camelos e gado, presentes afirmando que “agora sou próspero e quero garantir um acordo pacífico” (Gn 32); Esaú, que trocou seu direito de primogenitura por um guisado de lentilhas, foi mais nobre que seu irmão e generosamente o perdoou (Gn 33.4). Muitas vezes, nossa própria generosidade é motivada por um secularismo profano de “levar vantagem” ou assegurar acordos como nos acordos entre nações atuais.

Mas a generosidade de Deus é diferente. Benignidade e bondade são reveladas por Deus em todos os seus feitos. Ele é longânimo e assaz benigno (Sl 103.8) em todas as suas obras (Sl 145.17) – até mesmo com os ingratos (Lc 6.35). É o que nos conduz ao arrependimento (Rm 2.4) e, por sua generosidade, Deus nos perdoa segundo a abundância de sua misericórdia (Ne 13.22). A provisão de Deus é prova de sua bondosa generosidade (Sl 68.10) e por generosa bondade Deus nos consola (Sl 119.76). Na verdade, o Senhor nos dá tudo de que precisamos para a vida e a piedade (2 Pe 1.3-11).

Deus requer de seus servos essa mesma espécie de generosidade de forma geral (Pv 11.25;  Pv 22.9; Zc 7.9) como também especificamente – porque é o sentimento semelhante ao de Cristo (Fp 2.2; 5; 3.15; Rm 15.5; 2 Tm 6.18).

Ao estudar esse tema da generosidade, fiquei tocada pelo exemplo da igreja de Corinto, cuja generosidade em angariar oferta para os crentes da igreja perseguida de Jerusalém foi além do imaginável para gente cuja cultura gentílica era anteriormente egoísta. Eis aí, algumas de suas características marcantes (2 Co 8.2-15):

a) no meio de muita prova de tribulação, manifestaram abundância de alegria;
b) na profunda pobreza deles superabundou grande riqueza da sua generosidade;
c) na medida de suas posses—e mesmo acima de suas posses—se mostraram voluntários;
d) imploraram a graça de participarem da assistência aos santos;
e) deram a si mesmos primeiro ao Senhor, e em seguida, “a nós”; e
f) demonstraram suberabundância  na fé, na palavra, no saber, em todo cuidado, no amor mútuo.

De maneira totalmente contrária à do “evangelho da prosperidade”, Paulo não ordena aos crentes de Corinto, mas recomenda, como consequência da vida em Cristo, que provem “pela diligência de outros a sinceridade do vosso amor”, completando a obra começada “segundo vossas posses”. Ele ainda enfatiza que Deus aceita nossa oferta generosa quando de boa vontade conforme o que a pessoa tem – não segundo o que não tem, com a motivação de outros terem alívio e quem foi generoso não ficar sobrecarregado! O alvo dessa generosidade: para que haja igualdade entre os irmãos (vv 13, 14), para que a presente abundância supra a presente escassez deles, para que a abundância deles venha a suprir vossa falta, e assim, haja igualdade.

Fiquei impressionada com o reforço da repetição de termos contrastantes, como abundância/escassez, riqueza/pobreza. Em vez de destacar o lucro quando somos generosos, Paulo joga com palavras lembrando que Jesus, sendo rico se fez pobre por amor de nós, para, por sua pobreza, nos tornar ricos! Ele Jesus, sendo Senhor do universo, esvaziou-se, tomou forma de servo até a morte, e morte de cruz – para nos enriquecer com toda sorte de bênção espiritual nos lugares celestiais! Isso não é questão de “torta no céu”, mas sim, no passado e para o presente e o futuro. Viver baseado na obra de Cristo, aprendendo a “estar contente em toda e qualquer situação... humilhado, exaltado, tendo tudo, nada tendo...”, experimentando sempre “O que muito colheu não teve demais e o que pouco colheu não teve falta”, é uma lição de generoso céu.


Você e eu, quer sejamos agentes quer receptores da generosidade, podemos, sim, devemos ser ambos – agindo por bondade em abundante graça na vida de dar e receber! Não me lembro o autor, mas lembro desde menina de cantar:
 
 
Que te darei meu Mestre,
            Meu tudo é nada em si
            E se eu te der o quanto eu tiver
            Serei devedor a ti.
                     Cristo, meu tudo é nada diante da imensidão
                     De tua graça demonstrada em nossa salvação.
                     Mas o meu nada é tudo se posto a teu dispor.
                     Haja o que houver, e venha o que vier, sou todo teu, Senhor!

Elizabeth Gomes
 
 
(Veja ainda, de Elizabeth Gomes, “Generosidade e gratidão”, Ética (nas pequenas coisas); São Paulo: Editora Vida, 2010, p. 126).

sexta-feira, agosto 23, 2013

PREGUIÇA, ATIVISMO VAZIO, OU TRABALHO DINÂMICO DE FRUTOS ETERNOS


 
Quando os filhos eram pequenos e no culto doméstico estudávamos o livro de Provérbios, Wadislau sugeriu que fizéssemos um concurso de corinhos para ajudar a gravar algum conceito importante. Um corinho criado foi baseado em Provérbios 6.6-11 e muitas vezes depois, cantávamos em ronda: “Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, considera os seus caminhos e sê sábio!” Para uma turminha que tinha de levantar cedo e preparar café da manhã, cuidar de animais ou horta, ou caminhar um bom trecho antes de pegar a condução para a escola em madrugadas quando chegava a gear, a lembrança podia impulsionar, animar ou irritar – às vezes, simultaneamente. Pai, mãe e três filhos não tinham como “comer o pão da preguiça” (Pv 31.27), e aqueles que se encontravam conosco entravam no mesmo ritmo com maior ou menor empenho.

Hoje em dia, confesso que me irrito quanto vejo gente que diz servir a Deus, mas demonstra preguiça básica na obra. Lembro do rapaz que disse que queria ser pastor porque “tem respeito, ganha bem, e só prega aos domingos e no culto de quarta-feira”. Qualquer pastor que conheço certamente contestará esse conceito equivocado, mas ainda se encontram muitos que se esqueceram totalmente do hino “Mãos ao trabalho jovens”, e preferem achar um jeito de mandar outros fazer o que tem de ser feito. Não apenas pastores – muitas pessoas que professam ser cristãs vindas de todas as áreas da vida insistem mais em seu “direito” de descanso sem que tenham trabalhado, do que desempenhar um trabalho digno que reflita a ética protestante do trabalho.

Ética protestante do trabalho—o que é isso?!  Nossa visão ética do trabalho não começou com a Reforma protestante, ainda que tenha sido desenvolvido na produtiva Genebra de Calvino bem como no castelo de intensa atividade laboral que foi Wartenburgo de Lutero. Jesus, que mandou que observássemos os lírios do campo e as aves do céu para não andarmos ansiosos pelo que haveríamos de comer ou vestir (Mt 6.28), também disse aos judeus que o criticaram por curar no sábado que “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (Jo 5.17). A Lei de Deus previa e ordenava o trabalho por seis dias da semana, e incluía o descanso semanal como parte integrante da vida de todo trabalhador, desde o maior até o mais modesto (Ex 20.9 e muitas outras referências).

Hoje em dia muitos cristãos que dizem pautar a vida pela Palavra de Deus estão mais preocupados com férias, dias de folga e descanso remunerado do que com a dignidade de fazer um trabalho bem feito—quer como sapateiro quer como cirurgião de cérebro! Reclamam das longas horas de trabalho sem se lembrar de agradecer o privilégio de ter um emprego em que podem trabalhar e gozar de seus frutos no fim de cada mês. Vivem sonhando com o dia da aposentadoria quando poderão ficar de papo pro ar—ainda que outros queiram desenvolver novo trabalho, uma segunda carreira, renovada fonte de renda ou de deleite pessoal.

Um blog não é lugar para longos discursos sobre filosofia ou pragmática do trabalho. Atualmente estou traduzindo um livro sobre estar demasiadamente ocupado para fazer o que realmente é importante, e me vejo constantemente advertida pelo Senhor quanto a minha motivação em questões de trabalho, descanso, ativismo constante ou produtividade contida. Quando ficamos com cabelos brancos não podemos deixar de observar que não é mais possível manter o mesmo ritmo de atividades que antigamente. Assim, quero apenas destacar algumas dicas que vão além de qualquer idade ou atividade que tenhamos.

Quanto à preguiça, ela é sempre nociva e contrária à noção de descanso em Deus. A preguiça faz cair em profundo sono, e o ocioso vem a padecer fome, diz Provérbios (19.15). Deus descansou de sua obra depois de haver criado todo o universo (Gn 2.1-2) – não por estar cansado, mas por ter completado toda a fase inicial da criação. Criados à imagem de Deus, nós humanos devemos compreender a importância do descanso para a fundamentação de tudo que fazemos. Tendo a Jesus a nos pastorear, somos levados às águas de descanso mesmo quando andamos no vale da sombra da morte! (Sl 23) Interessante observar que o autor de Hebreus fala sobre entrar no descanso de Deus (o mesmo descanso que Isaías e Jeremias comentaram negativamente quanto ao povo da aliança): “Portanto, resta um repouso para o povo de Deus. Porque aquele que entrou no descanso de Deus, também ele mesmo descansou de suas obras, como Deus das suas. Esforcemo-nos, pois, por entrar naquele descanso, a fim de que ninguém caia, segundo o mesmo exemplo de desobediência” (Hb 4.9-11) no contexto imediato da eficiente espada que nos adestra para a batalha, discernindo entre alma e espírito, juntas e medulas (v.12).

Quanto ao trabalho, ele não é maldição e sim bênção. A maldição estava no trabalho ser frustrado por fadigas, suor e espinhos (Gn 3.17-19) – a promessa para a pessoa que teme ao Senhor é que “do trabalho de tuas mãos comerás...” (Sl 128.2) e o próprio Deus trabalha para aquele que nele espera (Is 64.4). Paulo, que pela graça de Deus pôde afirmar “Sou o que sou... trabalhei muito mais que todos... não eu mas a graça de Deus comigo” (1Co 15.10) dá palavras de ânimo aos coríntios quando enfrentavam questões de vida e de morte, dizendo: “sede firmes, inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que no Senhor, o vosso trabalho não é vão” (1Co 15.58). “Deus não é injusto para ficar esquecido do vosso trabalho e do amor que evidenciastes para com o seu nome, pois servistes e ainda servis aos santos. Desejamos, porém, continue cada um de vós mostrando, até ao fim, a mesma diligência para a plena certeza da esperança; para que não vos torneis indolentes, mas imitadores daqueles que, pela fé e pela longanimidade, herdam as promessas”(Hb 6.10-12). Lembro-me do hino “Os seus intentos cumpre Deus no decorrer dos anos” que afirma: “Nosso trabalho vão será se Deus não for presente/ Só ele o esforço aqui bendiz e é quem nutre a semente” quando a glória de Deus há de o mundo inundar como as águas cobrem o mar (Novo Cântico 316).

Qualquer e todo trabalho que eu fizer não poderá ser apenas por pão, manutenção ou diversão. Meus valores trabalhísticos são eternos e não pecuniários. O trabalhador é digno de receber por seu trabalho (2 Tm 2.6) e somos exortados “a progredirdes cada vez mais e a diligenciardes por viver tranquilamente, cuidar do que é vosso e trabalhar com as próprias mãos, como vos ordenamos; de modo que vos porteis com dignidade para com os de fora e de nada venhais a precisar” (1Ts 4.10-12 – e isso ele fala, mais uma vez, no contexto de gente que enfrentava questões de vida e morte!). Mas eu trabalho para Deus; quem me sustenta em tudo que faço é meu Senhor (Cl 3.23-24)! Esse conceito possibilita até mesmo viver sob injustiças e em tempos aflitivos.

Deus preparou as obras para que andássemos nelas porque somos feitura sua! Fui criada sob orientação de bom desempenho, que chamavam de performance-oriented. Esse peso era uma canga legalista que muitos crentes salvos pela graça de Jesus carregam, achando que santidade é ação, produção, realização. Interpretam mal o conceito de galardão, contando os pontinhos e as estrelinhas e fazendo comparações destrutivas com irmãos de fé e de caminhada. Mas o jugo que Jesus nos ordena a tomar é “suave” (Mt 11.29) e o apóstolo Paulo repreende quem se submete novamente ao “jugo da escravidão” da lei (Gl 5.1). “Mãos ao trabalho” não pode ser por necessidade de provar ser melhor do que outros, ou necessidade de cumprir obrigações “porque senão Deus não age” (lembro de uma irmã arminiana que lastimou alguém que não convidou alguém para a igreja, comentando: “Assim, Deus não pôde salvá-lo”!). Fomos salvos não por obras, mas pela graça (Ef 2.8). Nosso louvor, bem como toda obra que Deus nos dá para fazer, “é fruto de lábios que confessam o teu nome” (Hb 13.15). Assim, tenho de re-aprender o que seja graça, e trabalhar não para alcançar alguma coisa, mas porque fui alcançada pelo Deus infinito que entrou em minha finitude para transmitir sua graça e verdade. Não vou ser preguiçosa, mas viver a operosidade da fé em meu trabalho, em meu cansaço, ociosidade ou descanso, produzindo frutos como uma planta enxertada na Videira. Quero mesmo na maturidade, “florescer como a palmeira, crescer como o cedro no Líbano. Plantados na Casa do SENHOR, florescerão nos átrios do nosso Deus. Na velhice darão ainda frutos, serão cheios de seiva e de verdor, para anunciar que o SENHOR é reto. Ele é a minha rocha, e nele não há injustiça” Salmo 92.12-15.

Elizabeth Gomes