terça-feira, agosto 17, 2021

É TEMPO DE OUVIR

 



Minha mãe teria celebrado ontem cem anos de idade, se estivesse ainda viva sobre a terra. Ela era surda. No dia em que foi estar com o Senhor, ela ia do seu apartamento para o elevador, que dava acesso ao piso inferir da grande casa, para tomar café com minha irmã e meu cunhado. Ao se lembrar de que não havia colocado o aparelho de audição, minha mãe, que já andava bem devagar, voltou para a mesa na saleta onde estava o Beltone. Nessa hora, ele caiu, derrubando a  mesinha e o relógio que tocava sinos a cada meia hora. Foi mesmo fulminante. Num instante estiva na bonita e confortável casa de Chesapeake, Virginia, a qual havia comprado com a filhano outro, estava na casa do Pai Celestial a quem servira em dois lados do Atlântico, desde a sua conversão aos dezoito anos de idade. No Brasil, onde ela  servira como missionária, fomos informados do falecimento e nos apressamos a comprar passagens e locomovermo-nos para outro continente — em vinte e quatro horas. Levada por Kitty à casa funerária, testemunhei o casulo vazio que ainda retinha resquícios da beleza de uma mãe que certamente já cantava com voz perfeita em outras bandas, e a quem eu nunca mais  ouviria, neste lado da eternidade.

 

Por que a lembrança da morte da mamãe quando eu ponderava meditar sobre o tema de aprender a OUVIR? É fácil de explicar a cadeia de pensamentos: o detalhe da sua queda ao tentar pegar o aparelho levou-me a pensar que surdez e audição fazem parte de meu histórico familiar, por muitas gerações. Além de minha mãe, minha avó, duas tias e um tio, e inúmeros parentes anteriores a eles, e eu, tínhamos dificuldades para ouvir. Herdei deles os problemas de audição e sofri quatro cirurgias para saná-los. Depois de meu AVC em 2007, passei a usar um aparelho no ouvido, e esse problema não me pareceu mais tão grave.

 

Certa vez, mamãe comentou sobre os da minha própria casa: "Your family is too loud!" —  porque em casa todo mundo falava muito, gostava de conversar longas horas e, às vezes, falava até demais ao passo que ela e sua casa eram sempre caladas. Lembrei da mamãe desligando o próprio aparelho quando a balbúrdia de algum lugar a incomodava, e descobri que eu também fazia o mesmo quando estava cansada de ouvir.

 

Sempre fui, no entanto, grata pelas oportunidades de ouvir (e fazer) música, os sussurros e vozes das pessoas amadas, e os sons da vida ao redor. Sendo esposa e mãe de pastores, nada me empolga mais do que ouvir a Palavra de Deus com paixão, poder e coerência de vida. Nada desgosta mais do que ouvir palavras de murmuração ou discórdia, ainda que, às vezes, eu seja culpada de não ser pronta para ouvir, e usar mal as palavras em vez de bem-dizer.

 

Tenho alguns amigos que se comunicam com pessoas surdas mediante a língua de Libras, mas para mim, não é o caso. Descobri que ouvir não é algo passivo. Exige esforço e atenção. No meu caso, obtive ajuda de um pequeno aparelho eletrônico inserido no meu "melhor" ouvido  (porque no "pior" nem adianta aumentar o som, que não ouço). Mas a quase um ano, meu aparelho "pifou", e com os problemas da pandemia, demorei muito para levá-lo ao conserto. Havia me acomodado à surdez — quase não saía de casa e não tinha outros com quem falar. Minha família sofreu minha falta de comunicação e muitas vezes virei literalmente piada da velha da Praça da Alegria. Até que um dia, assumi e confessei o meu pecado e resolvi voltar à fonoaudióloga e à Widex. Estou há três semanas com o aparelho restaurado, ouvindo perfeitamente. Nos primeiros dias de aparelho, tudo parecia barulhento e alto demais --sem cacofonia e balbúrdia, eu havia me esquecido como a vida é sonora. Foi por pouco que eu não me transformara em rebelde que recusa ouvir.

 

A primeira menção do termo ouvir, na Biblia, foi quando Adão e Eva pecaram, depois de fazerem o que lhes era costumeiro no jardim antes da  invasão da serpente: "Quando ouviram a voz do Senhor Deus, que andava no jardim pela viração do dia...." (Gn 3.8-19).  Mas em vez da alegria da comunicação de cada dia com Deus, eles tiveram medo e se esconderam.

A seguinte menção de "ouvir", ainda em Gênesis, foi quando Agar fugiu com Ismael da injustiça de Abraão e Sara. "Deus ouviu a voz do menino" (Gn 21.15-21), portanto ele diz: "Não temas". Mais tarde, o narrador da História da Redenção diz que "Deus ouviu o gemido de seu povo e atentou para a sua condição" (Ex 2.24-25; 3.7-22), chamando Moisés para a grande libertação. 

Por toda a Biblia, vemos que, embora não seja homem para possuir ouvidos, boca ou braço, Deus é quem primeiro ouve o choro, o clamor e o grito de seu povo, e atende com graça, misericórdia e perdão.

Ao dar dar diretrizes a vida, Deus começa, conclamando o povo a ouvir:

Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor.

Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, 

De todo o teu coração, 

de toda a tua alma, 

e de toda tua força (Dt 6.4 a 9; cf.  todo o resto da Torah).

 

Isso vai muito além de qualquer mantra ou vã repetição  trata de nossos afetos, no mais mais íntimo do ser e de nossa força interna e externa  tudo que somos e temose tem de ser compartilhado com quem nos é mais íntimo, nossa família imediata e estendida, em todo tempo, em todas as nossas atividades, nas nossas mãos e na nossa cabeça! Ao longo de toda a Palavra, constatamos que OUVIR é questão de atender e obedecer!

 

Profetas, sacerdotes e reis conclamam indivíduos, famílias, povos e nações a ouvir e atender a fim de obter sabedoria.  Desde ouvir os ensinos dos pais (livro de Provérbios) até as mensagens retumbantes dos profetas. Isaias  e Jeremias, por exemplo, repetem continuamente  o chamado para ouvir o que Deus diz. Ezequiel recebeu a mensagem de pregar com fidelidade ao povo, "quer ouçam, quer deixem de ouvir" (Eq 3.27). Zacarias convocou os cativos de Judá a reconstruir o templo, dizendo "Aqueles que estão longe virão e ajudarão no edificar o templo do Senhor, e sabereis que o Senhor dos Exércitos  me enviou a vós outros. Isto sucederá se diligentemente ouvirdes a voz do Senhor, vosso Deus" (Zc 6.15).

 

Nessa questão toda, o que mais me toca é o que Jesus afirmou em João 5.24: "quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna; não entra em juízo, mas passou da morte para a vida". O Bom Pastor dá a vida pelas ovelhas; elas ouvem a sua voz e o seguem (Jo 10.11), e ainda em o ouvir, haverá um dia um só rebanho!(Jo 10.16). 

 

Na primeira epistola de João, o discípulo amado explica que "o que temos visto e ouvido, anunciamos também a vós outros, para que tenham comunhão conosco" (1Jo 1.1-4).

O Senhor Jesus diz que "Bem-aventurados são aqueles que lêem e aqueles que ouvem as palavras da profecia, e guardam as coisas nela escritas, porque o tempo está próximo" (Ap 1.3). 

Estamos em tempos difíceis, o tempo foge, não temos mais tempo de ignorar o que Deus (e seu mensageiro na palavra dita ou escrita) falou. É nosso mister dizer com o menino Samuel (que ouviu a Deus durante toda a vida): "Fala, Senhor, porque teu servo ouve".

 

Elizabeth Gomes