Vitimização é um problemão danado; nem o dicionário aceita. O sentimento é indescritível. O que é possível fazer para dar uma ideia, é imaginar. Você entra em um banco por aquela porta gerativa de ansiedade. De repente, a respeitável anciã ao lado se lança contra a parede, estatela olhos e boca em desafino, dedo em riste em sua direção: “Não, por favor, não!” O bem treinado vigilante se lança ao chão, a senhora da mesinha do fundo se levanta brava como gerente, e todos os olhares convergem para a cena.
Quando cada participante da peça chega em casa e conta o caso, todo mundo acaba sendo vítima. Seu sentimento, no entanto, será o pior. “Se pelo menos não fosse uma velhinha, ela ia ver”. Vitimização tem disso: o fraco abate o forte exagerando fraqueza ante uma pretensa ameaça. Você sabe: o menor infrator pego em fragrante, o cônjuge que abusa o outro, o motociclista depois da cortada e do acidente, e o atacante que errou o golpe e acertou a parede.
Com tudo que havia para me incomodar na entrevista do Gondim, na Carta Capital de 27 de abril, fiquei engasgado com uma expressão: “Fui eleito o herege da vez”, como o destempero da velhinha vitimizada, gritando um “Deus me livre de um Brasil evangélico”. Na verdade, lá no banco, você poderia ter respondido: “Claro, senhora, como posso ajudá-la?” Mas nas páginas da imprensa giratória, ouve-se o grito e deixa-se pra lá. No entanto, não quero levar para casa o sentimento de que fui vítima do golpe da velhinha, não quero deixar de ajudar aos que veem a lição de vitimização; nem quero discutir opiniões, segundo diz 1Tm 4.7. Talvez, em benefício da alma da velhinha e dos circunstantes que ainda confiam nas instituições da fé verdadeira, eu diria o seguinte.
Deus me livre? Que deus? Um que não tem controle, não está sempre presente nem tem autoridade para livrar sua criação de acidentes e incidentes? O Brasil evangélico é mais poderoso do que esse deus. Claro que eu vejo esse Brasil evangélico com apreensão, mas, em vez de atacar a fé, ataco o pecado da rebelião que é descrença, da reversão mental que é infidelidade e da inversão da referência homem/Deus. A verdadeira igreja de Cristo, por disposição da graça de Deus, está aí, no meio da igreja brasileira. Somos pecadores, não menos do que todos os homens, e se nos alcança a graça salvadora, somos justificados pelo Deus que justifica o ímpio. “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica” (Rm 8.33).
Aborto, homossexualismo e influência islâmica? Esclareça-me algumas coisas: aborto é livre; mas, e se iniciássemos um movimento de aborto de papagaios e baleias? Homossexualismo é opção natural de identidade sexual, mas desordens de personalidades devem ser psicológica ou psiquiatricamente tratadas? Influência islâmica no mundo faz parte da ordem da história, mas proibição legal e ilegal da pregação cristã nos países islâmicos é de boa ordem? Ora, ora, esses temas não estão na agenda do cristianismo mais do que outras, e só entram em pauta por causa da efervescência do nosso tempo.
Tem mais: a cosmovisão anticristã é certa; a cristã é errada? No Brasil do futebol, é sabido que o jogo tem dois times, dois gols e regras próprias, e que o acerto pluralista (“eclético, ecumênico”) que seja bom para os dois lados é infração. Aqui também, ora, há duas cosmovisões possíveis: a do regenerado e a do não regenerado. Um tem seu ponto de referência em Deus; o outro, no homem. “Nós nos revoltamos quando um político abre a porta para o apadrinhado”. Nós também. Mas também incomoda quando o raciocínio é: se é assim comigo (ele), “Por que seria diferente com Deus?” Com efeito, é porque Deus não imita o homem, mas chama o homem para espelhar seu caráter.
“Se para ter sua adesão eu preciso apelar a valores cada vez mais primitivos e sensoriais e produzir o medo do mundo mágico, transcendental, então minha mensagem está fragilizada”. Aí, eu concordo, mas não com a maneira intencionada. A mensagem da vitimização, aí vista, sim, é frágil. Não da fragilidade humana que, como a erva, de manhã nasce e logo seca, pois essa é bíblica (Sl 90; Is 40; Tg 1; 1Pd 1; ver Mt 6; Lc 12). Antes, é fraca por causa da falta da transcendência que permite que nos comuniquemos (transcendência pessoal) e que permite que nos comuniquemos com Deus; sobretudo, que nos permite a eternidade (Ec 3.11). Nisso sim, há fraqueza doentia, moralmente má, eticamente perversa, que leva o homem a chamar ao soberano Deus da Bíblia de títere (marionete, pelego, bufão). “Vivemos como se Deus não existisse porque só assim nos humanizamos...”. Isso é que é se jogar contra a parede, gritando: sou vítima de Deus, enquanto o ataca. Mas não tem nada não; não há como reprimir a glória de Deus. Ele está no controle, presente e em autoridade. Como disse Gamaliel: porque, se este conselho ou esta obra vem de homens, perecerá; mas, se é de Deus, não podereis destruí-los, para que não sejais, porventura, achados lutando contra Deus. E concordaram com ele (At 5.38-39).
Wadislau Martins Gomes