sábado, dezembro 02, 2017

À LEI, AO DIREITO, À JUSTIÇA, À GRAÇA!




Antes, o menino era pego com o dedo no nariz e, pronto, tirava os olhos da menina e punha-o debaixo da cadeira juntamente com outras vergonhas. Hoje, é possível que ele mostre a caca. Antes, caráter e clareza eram esteios da vida de um casal; se uma falta de caráter levava o marido a mentir sobre o motivo do atraso, por respeito aos sentimentos da esposa, ela sofria, mas relevava. Hoje, ela já não liga para a mentira nem para onde ele esteve nem para o atraso. O que é que está havendo com a gente?
                Qualquer um que tenha um pouco de clareza mental desconfia, até mesmo, dos motivos por trás da maioria das propagandas da TV e da net. Claro que deve haver algum grau de honestidade no meio do ruído do comércio, mas a regra é desconfiar primeiro. Você acredita na ocular miraculosa que bate todas as lentes mais acreditadas? Nas notícias que não adiantam a que vêm e querem que você clique e pague pra ver? No conhecimento e sabedoria de cabos eleitorais bolsonaros ou lulistas ou de revolucionários ameaçando intervenções destras e canhotas?
                A coisa ainda fica mais pesada quando precisamos falar que nem todo político é safado a fim de dizer que a política governamental está safada. O certo é que, “se gritar: pega ladrão! não fica um, meu irmão” – nem mesmo quem cantou o verso. Quem não está com a espada no pescoço por ter sido pego com dinheiro na mala ou na cueca, também não aprova projetos que promovam lavagem a jato das coisas morais e éticas. Na área da justiça e do direito, o bicho pega feio. O que é que um ministro da injustiça tem que consegue fazer e acontecer?
                E nós, onde ficamos? De acordo com a Palavra de Deus: A ti, ó Senhor, pertence a justiça, mas a nós, o corar de vergonha ... a nós pertence o corar de vergonha, aos nossos reis, aos nossos príncipes e aos nossos pais, porque temos pecado contra ti (Dn 9.7-8). É isso aí, envergonhados da nossa falha de caráter e de clareza espiritual, que nos levam a esperar em redenções morais políticas, que não procedem de toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo (Ef 1.3). É por causa de nossas ações erradas ou de nossas omissões suspeitas que o mundo não reconhece o direito e a justiça do evangelho que a igreja deveria pregar e viver. Deveríamos ser exemplos de caráter santo e de desempenho social amoroso. Ou, no mínimo, deveríamos estar sob perseguição.
Tenho pedido a Deus que levante pessoas estudiosas do direito para ensinar e motivar as nossas igrejas a cumprirem a parte da missão de Deus que trata da cidadania (cf. O Sermão do Monte, Mt caps. 5 a 7). Poucos são os advogados, nas igrejas brasileiras, que conhecem os fundamentos bíblicos da lei e da justiça aplicados ao direito exercido em nossa terra. Isso se dá, em parte, por causa da quase ausência de boa literatura a esse respeito. Há algumas publicações recentes, mas muito do que existe, são tentativas de práticas jurídicas ou justificativas de opiniões de um e outro dos grandes sistemas do direito “secular”, utilizando textos bíblicos isolados.
A Bíblia, sem sombra de dúvida, é um livro de lei, de justiça, de direito privado e público, e daí em diante — tratando todos esses sub-itens a partir de um ponto de vista teológico. Será bom lembrar que muitos dos reformadores eram acadêmicos de direito, entre eles Lutero e Calvino. De passagem, menciono os muitos escritos de Kuyper e de Dooyeveerd, os quais serão indispensáveis ao pesquisador. Além desses, entre outros de igual importância, há livros que mostram aspectos práticos do direito bíblico: Law and the Bible, Eds. Robert Cochram Jr and David VanDrunen (www.IVPress.com/books), The Ten Commandments, Thomas Watson (1692, diversas editoras); The Ten Commandments: Manual for the Christian Life, de J. Douma (P&R Publishing); A lei da perfeita liberdade, Michael Horton (Editora Cultura Cristã, 2000), e daí em diante.
O que segue é uma tentativa de provocar um gosto pelo estudo do assunto e pela educação das nossas igrejas no exercício de nossa dupla cidadania celestial e terreal.
Aprecio muito os livros seminais. Não livros simplistas, mas sementes férteis que plantadas em solo arroteado e bom, crescem a cem, a mil por dez. Como disse David Powlison, não se trata da simplicidade aquém, mas além da complexidade. O The Law, de Frédéric Bastiat, é um desse livros (Auburn, AL, USA: Ludwig von Mises Institute, 1850; 145 pp). Já nas últimas cinquenta páginas, Bastiat repete perguntas e respostas que procurou levantar na mente do leitor: “O que é a lei? O que ela deveria ser? Onde, de fato, termina a prerrogativa do legislador?” A sua resposta é pronta: “A lei é a força comum organizada para prevenir a injustiça – em suma, Lei é Justiça” (p. 115).
Se o leitor for criativo, lembrar-se-á de que a lei escrita na Palavra de Deus foi dada para servir de consciência ao homem decaído de seu estado original. A questão é que, antes do pecado, nossos primeiros pais acatavam a lei preveniente e evidente na criação. Depois da Queda, sem o temor de Deus no coração e diante dos olhos, veio a lei de Deus a fim de calar qualquer justificativa humana e colocar a todos sob condenação – as obras da lei a ninguém justificam, antes, fornecem a consciência do pecado. 
A obra redentiva da lei apontou e sempre aponta para o Redentor, o Filho de Deus que no devido tempo se encarnou para cumprir a lei fazendo-se justiça em nosso lugar. Toda a humanidade está sob o juízo da lei de Deus, quer pessoas regeneradas quer naturais, mostrando “a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os” (Rm 2,15; cf. 2.11-14; 3.18-22; 1Co 1.30).
A missão da lei dos homens, como diz Bastiat, não é a de “regular nossas consciências, nossa vontade, nossa educação, nossos sentimentos, nossos trabalhos, nossos intercâmbios, nossos dons, e nossas diversões” (p. 116). Essa é a função da lei de Deus, na Palavra escrita e no testemunho interno do Espírito, assegurando ao regenerado a justiça de Cristo e suas bênçãos, e ao não regenerado, a consciência e a final consequência do pecado. Em relação à humanidade em geral, a missão da lei humana é a de “prevenir que os direitos de uma pessoa, acima descritos, sofram interferência por parte de outras”.
A lei garante tais direitos por meio do exercício de sua força, isto é a justiça. “Como cada indivíduo tem o direito ao recurso dessa força somente em caso de defesa pessoal, assim também a força coletiva, a qual é a união de forças individuais, não pode ser racionalmente usada para qualquer outro fim” (p. 116). A lei somente será justa se for a organização dos direitos individuais que existirem diante da lei. Pois a lei é justiça. Daí, Bastiat depreende o que deveria estar em nosso coração e evidente aos nossos olhos: se a lei for usada para oprimir o povo seja por meio do controle da consciência do indivíduo (em termos de sua linguagem, educação, associações e identidade social, de gênero etc.) seja por meio do despojo de sua propriedade, mesmo com alegada motivação filantrópica – nesses casos a justiça deverá ser reclamada por parte de uma união de forças individuais.
O ideal de justiça, diz Bastiat, não “pode ser mais claro e mais simples, mais perfeitamente definido e unido, ou mais visível a cada olho; pois justiça é uma dada quantidade, imutável e constante, que não admite aumento ou diminuição.” Ideal, eu digo, porque a justiça não existirá em um mundo decaído, sendo atingida única e exclusivamente em Cristo por meio da ação do seu Espírito. “A partir daí, faça a lei humana ser algo religioso, fraternal, equalizador, industrial, literário, ou artístico, e você estará sobre terreno desconhecido, uma utopia forçada, ou, pior, uma multidão de utopias em contendas para obter a posse da lei a fim de impor [sua versão de justiça] sobre” o indivíduo.
Como é que poderemos impor limites à consciência? Mudar identidade de gênero? Fornecer educação igualitária a pessoas com diferentes dons e motivos? Administrar o labor criativo e recompensador? Como operar justiça a uns sem fazer injustiça a outros? Pessoalmente, sei que a perfeição não existirá aqui e agora. O mundo jaz no maligno e seus caminhos são tenebrosos e mortais. Há, entretanto, uma esperança baseada na promessa divina. Deus concedeu os Dez Mandamentos a um povo que, ainda que carente da habitação do Espírito, tinha a promessa dessa graça para a própria política como povo organizado e para o cumprimento de sua missão política externa.
Ninguém jamais cumpriu a Lei senão o Filho do Homem, Jesus. Ele é a nossa justiça. Assim, o indivíduo regenerado, enxertado na Videira, recebe dele a vocação e os dons para a própria vida e para a missão de Deus no mundo. Em uma aplicação bem prática, o apóstolo Paulo discorre sobre como, individualmente, ele lidou com os seus valores e motivos internos, e com suas posses externas, à luz do conhecimento e da comunhão com Cristo:
Mas o que para mim era ganho reputei-o perda por Cristo. E, na verdade, tenho também por perda todas as coisas, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como escória, para que possa ganhar a Cristo.
Estas palavras, Paulo escreveu a uma igreja, falando sobre a vida dos membros na unidade da fé e sobre a missão da igreja no mundo. Ele continua:
E seja achado nele, não tendo a minha justiça que vem da lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a justiça que vem de Deus pela fé; para conhecê-lo, e à virtude da sua ressurreição, e à comunicação de suas aflições, sendo feito conforme a sua morte; para ver se de alguma maneira posso chegar à ressurreição dentre os mortos.
Sua motivação não era mais uma de reivindicação de direitos, mas de cessão dos próprios direitos em função das virtudes de Cristo a serem vividas e proclamadas. É assim que Paulo, considerando as fraquezas humanas e os poderes de Cristo, convoca-nos e anima-nos a viver do mesmo modo:
Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus. Por isso todos quantos já somos perfeitos, sintamos isto mesmo; e, se sentis alguma coisa de outra maneira, também Deus vo-lo revelará. Mas, naquilo a que já chegamos, andemos segundo a mesma regra, e sintamos o mesmo (Fp 3.7-16).

Wadislau Martins Gomes

sexta-feira, novembro 17, 2017

CONSIDERAÇÕES SOBRE PEDRAS ESCANDALOSAS



Celebramos os quinhentos anos desde que Lutero postou suas Noventa e Cinco Teses à porta da igreja de Wittenberg, na Alemanha, protestando contra os erros e abusos da igreja medieval. O ato produziu a maior transformação religiosa e filosófica da cristandade desde quando a igreja começou nos dias de Jesus e de seus Apóstolos. Estamos alegres e corretos ao celebrar e pertencer a um povo que retornou ao conhecimento e a prática das Escrituras. Temos justo orgulho de nossa história protestante.
Mês passado, meu filho esteve em Wittenberg, junto com pensadores reformados do mundo inteiro, para celebrar e firmar sua cosmovisão reformada. Contou-me, porém, algo de que eu tinha ouvido falar remotamente, e que muito me perturbou. Em meio aos festejos da cidade e do mundo, um homem solitário portava uma placa perguntando por que Lutero não se arrependeu nem levou o povo da igreja ao arrependimento pelo antissemitismo que difundiram, simbolizado pela escultura em pedra de um baixo relevo obsceno e infame da “Judensau”, a figura de uma porca em que os judeus eram os leitões que nela mamavam.
Como cristã que ama a Bíblia e, por conseguinte, ama o povo de quem veio Jesus e as Escrituras, fiquei chocada. Sabia que o antissemitismo existe desde quando Deus chamou Abraão para sair de sua terra e formar o seu povo, quando prometeu que abençoaria todos que o abençoassem. Ao longo da história sempre houve faraós, amalequitas e amorreus, hamãs e sambalás, assírios e babilônicos e persas, antíocos e herodes e neros e inquisições nas católicas Espanha e Portugal, pograms na Russia e Polônia, a destruição por islâmicos e o horrendo nazismo que antecedeu, fez parte e ainda tem seguidores por todo o mundo “civilizado”.
Quem lê a historia do mundo não pode ignorar a insidiosa existência do antissemitismo. Permanecem em nossa língua expressões preconceituosas como “judiar” como sinônimo de maltratar, (só que as vítimas da judiação eram os judeus, e não aqueles que judiavam deles) ainda que a colonização do Brasil tivesse sido realizada por muitos “novos cristãos” (judeus forçados a se “converter” para não morrer na fogueira). A primeira sinagoga na América foi em Recife, permitida durante a permanência protestante holandesa no Brasil. Quando os holandeses foram expulsos do Brasil, Mauricio de Nassau foi para a América do Norte e fundou Nova York (onde hoje em dia existem mais judeus do que no Estado de Israel). Temos indícios de que o Imperador Dom Pedro II amava o povo judeu, conhecesse profundamente a língua hebraica, e garantisse liberdade de culto a imigrantes judeus. O Brasil, que em 1948 aprovou a fundação do moderno Estado de Israel, até a pouco tempo apoiou e financiou o terrorismo palestino e do Estado Islâmico. Não obstante, voltemos a Lutero.
 Lutero transformou o culto, o estudo da Palavra de Deus, o casamento e a família, a educação, a música na igreja e fora dela, a política na Alemanha – e isso se estendeu por toda a Europa. A luz raiou sobre o mundo conhecido, com a aurora da Reforma. Lutero era conhecedor do Antigo e Novo Testamento (e deu a primeira Bíblia em língua alemã, aprimorando a própria língua alemã moderna), o hebraico como também o grego. Ele argumentava que se os judeus fossem tratados com bondade e ensinados corretamente as Sagradas Escrituras — Antigo e Novo Testamentos — então “muitos deles se tornariam verdadeiros cristãos e retornariam à fé de seus pais, os profetas e os patriarcas.” Quando os judeus se convertem ao cristianismo, Lutero disse, “eles se tornam nossos irmãos e irmãs em Cristo. Porém, poucos judeus se tornam cristãos.” Essa atitude anterior de Lutero, de maior aceitação dos judeus, virou irada rejeição, não por judeus serem judeus, mas por não serem cristãos. Em 1543, Lutero publicou Os judeus e as suas mentiras, no qual instava com os líderes alemães a “afugentar todos os judeus de suas terras.” Este era “um juízo imperdoavelmente severo” para alguém que tivesse demonstrado tanto amor pelo povo de Israel em seu trabalho como estudioso do Antigo Testamento” (David B. Calhoun, “Fiel até o final,” em Sproul e Nichols, editores, O legado de Lutero, S. José dos Campos: Editora Fiel, 2017. Pior, apesar de pastorear por dezessete anos a igreja de Wittenberg e conseguir nela inúmeras conversões e transformações, Lutero nunca tentou tirar a “Judensau” de seus símbolos. Pelo contrário, muitas eram as indicações de que nunca procurou eliminar o antissemitismo da sua congregação ou seu povo – talvez por ele mesmo ser cego quanto a seriedade deste pecado contra Deus.
            Lutero é prova visível que grandes homens e mulheres de Deus, que fizeram grandes coisas para a humanidade, não estão isentos de cometer grandes pecados. Temos exemplos clássicos em Abraão, Gideão, Saul, Davi, Salomão, e em nossos irmãos em Cristo, Pedro, Paulo, e Tomé. O fato que fizeram grandes coisas não diminui a seriedade nem as consequências dos seus imensos pecados. O homem segundo o coração de Deus adulterou e mandou matar seu capitão; o homem mais sábio sobre a terra perdeu seu impacto por sua poligamia desenfreada e idólatra; o iniciador da transformação do mundo por meio da Reforma foi omisso, se não pessoalmente responsável pelo problema dos maus tratos do povo de Deus.
Essa triste história do “Judensau” lembra outros relatos perturbadores de pecados de grandes homens de Deus nos dias de hoje. Não me refiro a coisas banais como os charutos de C. S. Lewis e de Charles Spurgeon, ou a posição legalista implacável de Charles Ryrie com respeito ao divórcio até ele mesmo ferir seu casamento, divorciar-se e casar com outra. Usos e costumes não são motivos para divisões na igreja. Mas crassas falhas de caráter deviam ser vistas e tratadas com seriedade. Em nossos anos de aconselhamento bíblico, temos visto inúmeras pessoas adultas que foram permanentemente machucadas por abuso sexual ocorrido ainda na infância. Pior que muitas dessas pessoas que sofreram abuso foram feridas por “homens de Deus”— avós, pais, tios, irmãos, padrastos, professores. pastores – gente em quem confiavam, que representavam a igreja e a fé e a família Deus, fizeram não apenas efígies de “Judensauen”, mas eles mesmos arrancaram a ingenuidade ou inocência de gente criada à imagem de Deus.
Percebi recentemente em postagem no facebook que uma amiga está profundamente zangada com os atos e atitudes de um pastor do seu conhecimento. Porque esse homem “reformado” agiu satanicamente, ela se voltou para um cristianismo vazio, de sensações, e que ignora a ação das Escrituras na totalidade da vida. Muitas vezes, feridas como essa, que contaminam todos os aspectos da vida, começam com algum tipo de abuso – alguém que usou da “autoridade” para dessacrar e ferir o brio de uma pessoa vulnerável.  É como a existência de um baixo relevo de Judensau entre as pedras construindo a igreja. Jesus fez advertência muito séria quanto a essas coisas:
Qualquer, porém, que fizer tropeçar a um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma grande pedra de moinho, e fosse afogado na profundeza do mar (Mt 18.6).

Seja ela a existência de uma pedra com desenho obsceno de porca amamentando judeus na construção de uma grande igreja histórica, seja na pedra de moinho a que Jesus referiu (Mc 9.42) logo antes de falar dos escândalos:

Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é inevitável que venham escândalos, mas ai do homem pelo qual vem o escândalo!  Portanto, se a tua mão ou o teu pé te faz tropeçar, corta-o e lança-o fora de ti; melhor é entrares na vida manco ou aleijado do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno.  Se um dos teus olhos te faz tropeçar, arranca-o e lança-o fora de ti; melhor é entrares na vida com um só dos teus olhos do que, tendo dois, seres lançado no inferno de fogo (Mt 18.7-9).

Jesus falava aos escribas e fariseus:
Nunca lestes nas Escrituras: A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular; isto procede do Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos? Portanto, vos digo que o reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos.Todo o que cair sobre esta pedra ficará em pedaços; e aquele sobre quem ela cair ficará reduzido a pó” (Mt 21.41-44).

Pouco depois disso, lamentou sobre Jerusalém lembrando que ali não ficaria pedra sobre pedra (Mt 24.2). Depois da ressurreição e ascensão de Jesus, Pedro, que havia traído covardemente o Mestre, se encheu de coragem e pregou sobre a pedra – que não era Pedro – era Cristo:

Este Jesus é pedra rejeitada por vós, os construtores, a qual se tornou a pedra angular.  E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos (Atos 4.11-12).  

Paulo também via a pedra fundamental da fé:
Edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular; no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor,  no qual também vós juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito. (Ef 2.20 – 3.1)

Pedro teve esta visão por todo seu ministério:
“também vós mesmos, como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo. Pois isso está na Escritura: Eis que ponho em Sião uma pedra angular, eleita e preciosa; e quem nela crer não será, de modo algum, envergonhado.  Para vós outros, portanto, os que credes, é a preciosidade; mas, para os descrentes, A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular   e: Pedra de tropeço e rocha de ofensa. São estes os que tropeçam na palavra, sendo desobedientes, para o que também foram postos (1 Pe 2.5-8).  

Não quero ser pedra de tropeço nem para judeus, nem para gentios, nem para a igreja de Deus (1Co 10.32)! Quero me firmar na Pedra Viva, na Rocha Eterna, e eu mesmo ser como pedra viva na edificação do corpo de Cristo – jamais pedra no sapato nem pedra de tropeço na história do povo de Deus. “Tirai os tropeços do caminho do meu povo,” diz nosso Deus (Isaías 57.14).
  
Que aprendamos com Jesus, e nos arrependamos de quaisquer pecados que causem nossos irmãos a tropeçar!


Elizabeth Gomes

quinta-feira, outubro 26, 2017

NAVEGANDO NA REALIDADE DOS SONHOS


Amo minha casa e sou caseira assumida de sala e quarto, forno e fogão, jardim e horta, varanda repleta de gente amiga e de cadeira de preguiça ao sol com bom livro na mão. Também gosto de sair e bater perna para perto e para longe – eu aproveitava cada convite que Wadislau tinha para pregar ou ensinar, e acompanhava-0 segundo o exemplo da mulher de Pedro. Agora, com a miastenia gravis que acomenet o9 meu marido (diagnosticada há mais de quatro anos), as apreciadas viagens ao Norte, Sul, Leste e Oeste do Brasil, a  cada três ou quatro anos para visitar filha e netos nos Estados Unidos, ou compartilhar em teologia prática o amor de Deus onde quer que for têm sido escassas quando não impossíveis. Nem me fale em enfrentar uma viagem à Terra do Sol Nascente, onde nosso filho caçula e a família querida estão estabelecidos para a glória do Deus a quem servem! A ideia de trinta e seis horas de voo antes mesmo de chegar ao destino atualmente não é viável.

Mais uma hospitalização de meu marido tornava esdrúxula idéia de viajar. Alguém sugeriu e tornou possível a opção de fazer um cruzeiro. Ontem mesmo vi uma postagem de um irmão criticando pastores que dirigem carros importados e fazem viagens caras como desperdício pecaminoso dos recursos que Deus dá, e imaginei que, se ele visse nosso roteiro sonhado, nos colocaria no topo da lista de grandes pecadores. Mas Deus nos deu este presente – portanto, voltemos ao cruzeiro. Seria uma forma de viajar sem estresse, com médico e hospital a bordo, descendo nos portos quando possível, descansando na cabine quando Deus diz “pára um pouco” para respirar. Conhecer um pouco da história da civilização ocidental, um cantinho do Mediterrâneo, relembrar do Deus a quem servimos a graça sem par que encherá toda a terra “como as águas cobrem o mar” – talvez seja a primeira e última grande viagem que faremos deste lado da eternidade.

 Talvez ainda dê para visitar Israel, Egito, Turquia, Armênia, Grécia e o lado oriental onde nasceu nossa fé, ou o extremo oriente onde estão nossos queridos no país menos evangelizado do mundo e dar um pulo num dos mais cristianizados (Coréia) e, como no sonho de Hudson Taylor, de população convertida mesmo sob domínio materialista, ou ainda em exóticas terras onde temos irmãos servindo a Cristo na Tailândia, no Camboja, na Indonésia e nas grandes ilhas do primeiro mundo da Austrália, Nova Zelândia e tantos outros. Eu “toparia” viajar pela Europa toda para apreciar as belezas em que antepassados há muitos séculos lutavam e conviviam. Mas não dá. 

Temos de restringir o sonho à realidade possível, e o Deus do impossível nos possibilitou um “giro” europeu de Lisboa a Barcelona, Marsela, Gênova, Málaga até o norte da África em Casablanca antes de retornar ao porto lusitano no Atlântico jungido ao Tejo. Cada lugar um ponto, uma ponta, de um país de “muito mais”! Experimentamos cozinhas autênticas com bacalhau, pato assado e pastéis de Belém, uma paella inesquecível em Barcelona e em Málaga tapas e um prato de jamon com ervas. Em Marsela, onde Lau não agüentou fazer turismo, fui caminhar sozinha e sentir aromas de Buillabesse, de lavanda e flores de Provence, ao andar de tram e à pé pelas vielas de lojas de moda internacional e de todo tipo de especiarias antigas do Saladin. Andei como nunca! Ah Gênova – la bela Italia onde tomamos capuccino numa pâtisserie diante da catedral de San Paolo , fomos a mirantes mirabolantes ver simultaneamente sonhos medievais e modernos, e eu trouxe do quintal da casa de Cristóvão Colombo uma azeitona madura cuja semente vou plantar para ver se germina aqui no Refúgio de Mogi das Cruzes. 

Havia no Magnifica quase três mil passageiros servidos por uns mil tripulantes. Ouviam-se línguas estranhas e familiares, e alternávamos automaticamente entre inglês, português, italiano e espanhol, alemão e mistureba internacional nos corredores, elevadores e escadas, nas entradas e saídas dos restaurantes e lojas, bares e butiques, teatro e hospital. Algumas famílias jovens com miúdos e bebés, falando árabe, inglês, italiano e finlandês, croata e francês, e uns dez a quinze por cento de profissionais liberais e comerciantes bem-sucedidos. Centenas de passageiros eram, como nós, de terceira idade, aproveitando os anos de reformados (no sentido lusitano de aposentados) porque navegar é preciso. Uma fila para desembarque me lembrava cena do filme Cocoon com gente velha gesticulando, claudicando, caminhando avidamente para locais onde encontrariam (ou não) fonte da juventude. O navio tinha múltiplas atrações que não nos atraíam – lojas de produtos de luxo, SPA com mil ofertas de embelezamento, piscinas e cassinos e jogos de todo tipo. Toda noite havia apresentações musicais de canto e instrumentos ao vivo, show no teatro, com teatro, canto, orquestra, danças e malabarismos dignos de cirque de soleil – podia divertir-se até morrer, se assim quisesse – e me deleitei quase diariamente com o talento de toda espécie de artistas antes desconhecidos.

Em sua maior parte, o mar estava tranqüilo, exceto uns dois dias quando o balanço nos fazia perguntar se estávamos tontos por bebedeira (sem termos ingerido nada alcoólico) ou prestes a sofrer um AVC. Lembrei-me do apóstolo Paulo, que naufragou no mar Adriático (uma extensão do Mediterrâneo a oeste da Grécia e leste da Itália, beirando a Albânia, Croácia e Macedônia) a caminho de Roma, antes de chegar a Siracusa, e foi parar na ilha de Malta, entre bárbaros e serpentes venenosas – onde foi regiamente hospedado pelo homem principal da ilha e trouxe-lhe as novas de Jesus Cristo. Mas animei-me ao ver pela sacada de nossos aposentos que o prateado mar se aquietou e nossa aventura não chegaria a tais extremos.

As refeições se davam principalmente em dois dos restaurantes do navio, um de bufês variados, outro de serviço francês à la carte, exceto quando entrávamos nas cidades onde tivemos refeições inesquecíveis em Barcelona, Málaga e a inigualável Lisboa – e no nosso quarto, serviço japonês quando Lau não agüentou deslocar-se para outro andar. Andar – balançando com as ondas, caminhando entre as multidões, ou sentar – ao lado de pessoas outrora desconhecidas que se tornaram velhas amigas em poucos minutos – faz-me lembrar do banquete de qual participarão pessoas de todas as tribos e nações depois que terminarmos a peregrinação sobre esse planeta azul. Passei a orar por pessoas que nunca antes tive o privilégio de conhecer, a sentir suas dores, seus sofrimentos em meio aos grandes sucessos da vida – e observando rostos, gestos, andares, pensei em como Cristo nos ama e cuida dos detalhes com magnífica maestria e arte eterna que se renova a cada momento.

Não foi uma viagem piegas nem creio que estávamos conscientes de maior presença ou poder de Deus nessa nossa viagem pela costa do Mediterrâneo. Mas lembrei-me da história de outra viagem há quase um século, de navio no Atlântico, “o barco que nem Deus consegue afundar” – o Titanic – cuja orquestra, enquanto afundava, tocava “mais perto quero estar, meu Deus de ti”. Somos testemunhas da bondade e da severidade de Deus, e todos, cada um em seu mundo singular, no mesmo barco, vivemos e respiramos nele. Espero que esta viagem de sonhos me torne um pouco mais piedosa peregrina quando reafirmo: “Ó vem meu Piloto ser!”, sabedora de que, “como as águas cobrem o mar, toda terra há de se encher do amor de Deus e da glória do Senhor como as águas cobrem o mar!” (Hq 2.14.)

Elizabeth Gomes

segunda-feira, agosto 07, 2017

INIMIGOS


“Persegui os inimigos e os alcancei, os esmaguei e 
os pisoteei e nunca mais se levantaram!” (Sl  18.37-38)

A mocidade de nossa igreja cantava este coro com veemência e animação e por dentro eu me encolhia de vergonha. Certo que era baseado em versículos bíblicos (Salmo 18.37-38), verdade que o cristão tem lutas e, consequentemente, inimigos contra quem luta, mas a exaltação guerreira parecia totalmente contrária ao que Jesus Cristo, Príncipe da Paz, nos ensinou. “Eu não tenho inimigos,” eu achava. “Haja paz na terra a começar em mim”, cantei no coração.

A belicosidade de muitos crentes por toda história humana é pedra no sapato em nossa caminhada com Deus, e pedra de tropeço para muitos que observam o nosso caminhar. Mas tenho de admitir que a Bíblia relata muitas inimizades ferrenhas. Olhe o que diz a Palavra de Deus sobre inimigos.

A primeira referência a inimizade ocorre na Queda, e foi uma declaração de Deus à Serpente:
Porei inimizade entre ti e a mulher, entre atua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar (Gn 3.15).

Até os dias atuais, existe inimizade entre o descendente da Humanidade e o descendente da serpente, aquele cobra safado chamado diabo. Inimigos atacam o povo de Deus por todo lado (Ex 15.6, Lv 26.8, Js  7.12 , Jz 5.31- Js  7.12 , Jz 5.31).

Quando pediram (e coroaram) um rei, Saul, Samuel relata a história passada de Israel, lembrando que foi sempre o Senhor que era seu rei (1 Sm 12.11 – 12) e os livrava dos inimigos. Davi, um rei segundo o coração de Deus, teve uma oportunidade singular de acabar com seu arquinimigo, mas não ousou levantar a mão contra o ungido do Senhor, mesmo que este o tivesse enganado e tentado assassiná-lo várias vezes. Perguntou: “Quem há que, encontrando o inimigo, o deixa ir por bom caminho?” A história é resumida em 1 Samuel 24. Quem sabe ele mesmo ensinou seu filho Salomão, compilador de provérbios, que “Sendo o caminho dos homens agradável ao Senhor, este reconcilia com eles os seus inimigos,” (Pv 16.7) e
Quando cair o teu inimigo, não te alegres, e não se regozije o teu coração quando ele tropeçar; para que o Senhor não veja isso, e lhe desagrade, e desvie dele a sua ira. Não te aflijas por causa dos malfeitores, nem tenhas inveja dos perversos, porque o maligno não terá bom futuro, e a lâmpada dos perversos se apagará (Pv 24.17-20).

Jesus, o Príncipe da Paz, citou o Salmo 110: “Disse o Senhor ao meu Senhor: assenta-te a minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés” (Mt 22.44; Marcos 12.36; Lucas 20.43); Pedro o citou em seu magnífico sermão estréia (At 2.35); Paulo em sua explanação sobre a ressurreição (1Co 15.25) e o autor de Hebreus em sua majestosa introdução à epístola que apresenta Jesus como sacerdote, profeta e rei ( Hb 1.13). Em sua morte sobre a cruz, Jesus, o Descendente da mulher, pisou a cabeça da serpente dando início à destruição de toda inimizade, e mostrando que os inimigos de Deus serão estrado dos seus pés. Desde o inicio de seu ministério terreno, Jesus ensinou: “Ouvistes o que foi dito, Amaras o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu porem vos digo: Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem” (Mt 5.43-45; Lc 6.27-35). A palavra aconselha: Se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer (Rm 12.20). Contando a parábola do Semeador, Jesus incluiu na narrativa o fato de que haveria um inimigo que veio e semeou joio Mt 13.25, 28. Ele tinha inimigos, admitindo que os inimigos do homem seriam os da própria casa ((Mq 7.6, Mt 10.36). Antes de sua paixão e morte, Jesus chorou sobre Jerusalém, dizendo que seria destruída (Sobre ti virão dias em que teus inimigos te cercarão de trincheiras e, por todos os lados te apertarão o cerco, e te arrastarão e a teus filhos dentro de ti; não deixarão em ti pedra sobre pedra, porque não reconheceste o dia de tua visitação - Lc 19.41-44). Na Páscoa em que o traidor comia com ele à mesa junto com os outros discípulos, horas mais tarde, Jesus remiria seus inimigos e os reconciliaria com Deus. Em Cristo Jesus, nós que estávamos longe,
fomos aproximados pelo seu sangue. Ele é a nossa paz... de ambos fez um, derrubou a parede de separação que estava no meio, a inimizade, aboliu a lei dos mandamentos em forma de ordenanças, para que dos dois criasse,em si mesmo, um novo homem, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade (Ef 2.13-17).

Existem inimigos da cruz de Cristo, cujo destino é a perdição, e o deus deles o ventre, a glória deles é infâmia, visto que só se preocupam com coisas terrenas (Fp 3.18). São inimigos no entendimento (Cl 1.21). Paulo definiu essa inimizade como “o pendor da carne”, ou inimizade contra Deus (Rm 8.7), uma das obras da carne (...prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissenções, facções, invejas, bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a essas – Gl 5.19-21) que militam contra o fruto do Espírito.

Nossa luta, contudo, “não é contra o sangue e a carne, e sim, contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestes” (Ef 6.12), e para tais inimigos, temos de nos revestir com as armas que Deus oferece (Ef 6.10-18).

Em sua carta aos Romanos, Paulo fala que quando éramos inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte de seu Filho... de quem recebemos, agora, o ministério da reconciliação 5.10-11). Advertindo os crentes de Tessalônica, Paulo disse
Caso alguém não preste obediência... notai-o; nem  vos associeis com ele, para que fique envergonhado. Todavia, não o considereis por inimigo, mas adverti-o como irmão. Ora, o Senhor da paz, ele mesmo, vos dê continuamente a paz em todas as circunstâncias. O Senhor seja com todos vós (2Ts 3.15-16).

Entre as qualidades imprescindíveis do bispo está ser inimigo de contendas (1Tm 3.3). Nos últimos tempos os seres humanos serão egoístas (e uma série de pecados comuns hoje em dia)... inimigos do bem (2Tm 3.1) e Tiago lembra que a amizade do mundo é inimiga de Deus (Tg 4.4-6).

Diante de tantos trechos sobre o que Deus pensa de inimizades, fico estarrecida ao observar comentários na mídia quanto à política, nas redes sociais, nas igrejas cristãs (tanto as mais ortodoxas como também as apóstatas!), no trabalho e nas famílias. Numa família que conheço, as filhas acusaram a mãe de insano malfeito; noutra família um irmão processa sua irmã e cunhado porque seu filho quebrou o braço brincando com o primo no pula-pula. Este irmão (que é pastor) defende que só os processou para acessar o seguro de indenização, mas o casal que foi processado (o esposo também pastor) ficou tão ferido que recusa qualquer contato com o irmão ou com a mãe que não teve nada a ver com o assunto, nem com outro irmão que está com câncer terminal e o recebeu em casa. Numa igreja, uma mulher que encantava com sua voz no culto, engana quatro ou cinco casais a fazer um investimento de todas as suas economias num esquema fraudulento, e depois “some” da igreja e da cidade, deixando os irmãos em Cristo feridos e sem recursos. Casais brigam, divorciam, juntam-se a outros e querem ser reconhecidos como inculpáveis na igreja e fora dela. Pessoas casam-se, enganando aquela com quem casou e assumindo uma relação ou série de casos homossexuais. Há inimizades de todo tipo e muitos abismos parecem intransponíveis. Na terra sob domínio de Satanás, será assim até que o último inimigo, a morte, seja vencido por Jesus Cristo (1 Co 15.26).

Amo a expressão Shalom aleichem e o costume de muitos irmãos em Cristo de se saudarem com “a paz do Senhor”. Mas temo que por muita gente seja dita da boca para fora. Algumas pessoas dizem “Eu preciso sentir paz para perdoar fulano de tal”, ou “vou orar para ver se consigo paz a respeito desse caso”. Esquecem que o árbitro no coração que rege a vida do crente é a paz de Cristo – conquistada na cruz, paga com sangue, à qual fomos chamados em um só corpo (Cl 3.13-17).  Antes tínhamos inimigos porque éramos inimigos de Deus, estávamos longe e éramos alienados. Mas se cremos em Jesus “temos acesso ao Pai em um Espírito... já não somos estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e somos família de Deus” (Ef 2.13-19).


Elizabeth Gomes

segunda-feira, julho 24, 2017

DEPRESSÃO, PÂNICO, E VESPÕES

Não sei como consegui perder a página com a postagem de janeiro de 2011 a qual repito aqui.


“Depressão dói mais do que aguilhoada de vespa na alma”. Quem disse isso não sabia que eu já experimentei os dois, na alma e no corpo. Ferroada no dedo, no beiço, nas costas – nada se compara à fisgada da bandida, na alma. Principalmente para quem é alérgico a flutuações do humor. Vem daí, que eu estava lendo Deuteronômio 7 e deparei com o termo “vespão”, em um contexto de depressão e de pânico. Sabe como é – parece coincidência, mas é apenas que algo conhecido chama a atenção.

O contexto do relato é a preparação do povo israelita para a conquista da terra prometida. Até aí, tudo bem. Deus diz que o povo irá inevitavelmente vencer nações mais poderosas. Maravilhoso! Deus recomenda duas coisas a serem mantidas em mente: guardar a lealdade ao pacto que ele fez com o povo, e obedecer aos mandamentos pactuais. Ótimo! Sobretudo, porque tem mais. Deus promete que o povo seria bendito, prolífero, sadio e bem sucedido. Quem quer mais? Um pedaço de quindim, talvez?

Entretanto, a coisa muda quando vem a recomendação: Não tenha temor, quando perceber que as nações são mais numerosas, dizendo: como poderei desapossá-las? Não queremos nem pensar; vai que acontece! Pior ainda é quando Deus diz que mandará vespões entre eles [os inimigos], até que pereçam (v. 20). Aí, a gente pensa: “E se as vespas se voltarem contra mim?” Pelo menos, a minha experiência diz que abelha, vespa ou marimbondo, todo esse exército fedido prefere, no meio de tantos, atacar logo a mim. O interessante é que a palavra “vespões” (hb., tisir’rāh) tem um sentido de “pânico” e “depressão” (cf. Peter C. Craigie, The Book of Deuteronomy. Grand Rapids, MI, Eerdmans, 1976, p. 182, n. 14).

Antes de chegar ao ponto, deixe-me colocar quatro coisas (sobre as quais poderemos tratar mais detalhadamente, em outra ocasião): 
(1) Depressão não é um mal em si mesmo; ela está para a alma assim como a dor está para o físico: previne que passemos o limite de nossa capacidade. 
(2) Depressão pode ser causada por problemas espirituais com reflexo no corpo, ou pelo corpo com reflexos na alma. 
(3) Depressão nem sempre é fruto de pecado, mas também não poderá ser seu motivo. 
(4) Em qualquer dos casos há uma ação requerida daquele que sofre a depressão, no sentido de se utilizar bem dessa provação a fim de recuperar o contentamento no Senhor.

Como reagir a dois desses marimbondos “cavalo do cão” que nos atacam a toda com veneno paralisante – depressão e pânico!? Bem, se for daqueles de asas e ferrões, e não houver alergia: repouso, imobilização da área, torniquete (incisão e sucção removem 20% do veneno se feitos na primeira meia hora), sem estimulantes e muito líquido. Se o caso for pior, hospital, depressa! Mas, se for daquelas que pegam a alma, amarram, amordaçam e fazem definhar, aí, sendo de fundo físico, um médico e um bom conselheiro cristão poderão ajudar; se for de fundo emocional (a maioria das vezes), o tratamento poderá ser caseiro. Em qualquer dos casos, requererá a aplicação do quarto item, acima. A ação prescrita envolve, entre outras coisas, o uso da memória. Em todo o texto de Deuteronômio, caps. 4 a 8, é enfatizado o recurso da memória: “lembrar” e “não esquecer”.

Lembrar as coisas que o Senhor fez para e em sua vida. Os israelitas, em função da falta de confiança em Deus (Dt 1.44), haviam sofrido uma derrota militar sob um ataque como que “de abelhas”; agora, o Senhor lhes prometia a mesma paga aos inimigos. Aí está! As depressões poderão ser nossas grandes amigas quando precisarmos de um recesso (como quando salta de um muro e flexiona os joelhos a fim de diminuir o choque); mas se nos deixarmos dominar pela depressão ou pelo pânico, o veneno vai direto à memória. A promessa do Senhor aos israelitas, agora, é o contrário: ele mandaria vespões entre eles [os inimigos], até que pereçam (v. 20).

No nosso caso, são vespões contra vespões; e lembranças são como marimbondos santos que nos auxiliam na vitória contra a depressão e o pânico. Temos de manter na memória o dia da nossa salvação, quando, na cruz, o Senhor venceu o aguilhão do pecado, e sarou nossas feridas. Durante todo tempo, agora, ele tem nos disciplinado para a batalha, para que não sejamos (adaptando a figura) como meninos fugindo de abelhas (cf. Ef 4.14). Ceder à tentação de se deixar levar pelo “branco” que dá na mente, pela modorra que segue o dito: “não me faz rir que dói”, ou pelo sentimento de não querer ser consolado, tudo isso é como feronômio que só atrai mais marimbondos. É preciso lembrar os mandamentos e promessas do Senhor. Se acharmos que não dá para lembrar nada, alguém poderá ser o “grilo falante” da nossa consciência, lendo a Bíblia (Salmo 107; Mateus 26.36-42; João 12.23-28) ou outro livro (p.e., David Powlison, Uma Nova Visão: SP, Editora Cultura Cristã, 2009). Orar, agradecendo a Deus as experiências específicas com sua bondade durante toda a vida é um “santo remédio”!

Não podemos nos esquecer de quem Deus é. A Bíblia diz: Não te espantes diante deles, porque o Senhor, teu Deus, está no meio de ti, Deus grande e temível (Dt 7.21). Medo de quê? Futuro, pessoas, situações, tudo? Deveríamos ter medo de não confiar em Deus. A promessa do Senhor foi que ele estaria no meio dos israelitas, do mesmo modo que ele está no nosso meio, habitando em nós e no meio do problema. Ele é Deus presente; não estamos sós.

Deus tem um propósito e um plano bom para nós. Deus disse ao povo que daria a vitória na conquista da terra prometida, pouco a pouco, porque ele não estava preparado, ainda, para governá-la e para que as feras do campo se não multipliquem contra ele. O Senhor, em tudo nos prepara para a vitória (cf. Romanos 8.22-39). Não podemos nos esquecer de que Deus nos amou, entregando seu Filho a fim de que tivéssemos a vida eterna (cf. João 3.16). Seu propósito é o de que vivamos uma vida de tempo e qualidade eternos. As muitas lutas são parte do seu plano para fortalecer nossos joelhos. Hebreus 12.11-13 diz que a “disciplina, no momento, não parece ser motivo de alegria”, mas, depois, produz fruto de justiça. Assim, somos instados a restabelecer as “mãos descaídas e os joelhos trôpegos e fazei caminhos retos para os pés”, a fim de sermos curados. Dobrar os joelhos diante de Deus, e exercitar os joelhos diante dos homens cura pânicos e depressões. (Você já tentou matar marimbondo, no quarto, com toalha de rosto?).

O Senhor é homem de guerra (Êxodo 15.3). A vitória que ele dá, requer o exercício da lei da guerra. Primeiro, retire da cabeça os livros sobre a arte da guerra (tem muitos, novos e antigos; cf. Carl Von Clausewitz, 1780-1831). A lei da guerra, na Bíblia não é a da vitória da carne autônoma, independente, egoísta; é a arte de amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como já amamos a nós mesmos. Assim, Paulo também diz que “nossa luta não é contra o sangue e a carne” (Efésios 6.12). Nessa luta contra a depressão e o pânico, os inimigos são aquelas coisas que militam contra o Espírito de Deus. Paulo também diz, em Gálatas 5.13-25, que nossa carne é escrava de lutas intestinas: prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções, invejas, bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a estas (vv. 19b-21). Contra esses, a ordem bíblica é: (1) destruir o poder de fogo inimigo e inabilitá-lo para a luta; (2) subjugar o inimigo interno até à morte e não permitir que o seu ambiente externo tenha força de contra-ataque; (3) a guerra só termina quando a vontade do inimigo for inteiramente dominada pelo Espírito de Deus (cf. Dt. 20.10-18).

O ponto chave em tudo isso é: “mais vale dois marimbondos voando do que um na mão”. Dt 7. 23-26, finalmente, reafirma aos israelitas a promessa de Deus, de destruir o inimigo enquanto os prepara e fortalece para a vitória (vv. 23-24). A parte de Deus, deixemos com ele e confiemos em seu poder e bondade. Quanto a nós, havemos de queimar todos os ídolos e parafernália de idolatria – até mesmo, o culto aos rótulos diagnósticos, o temor da doença, os caldos de galinha psicológicos etc. A depressão e o pânico são tão valorizados que parecem prata e ouro, mas são apenas peças banhadas que escondem cobiça (quebra dos primeiros quatro mandamentos) e sujeição à carne (quebra dos últimos seis mandamentos).

Bem sei quando dói a picada do marimbondo e não quero ser um vespão na sua tristeza. Antes, peço a Deus que o veneno da bendita acione o antídoto da Palavra de Deus e sua comunhão a fim de que você reúna toda a fraqueza dos ossos, músculos e nervos, e toda a força e óleo da graça para sair campo afora, catando mel de abelhas.

Wadislau Martins Gomes

sexta-feira, junho 16, 2017

VASOS TRINCADOS COM TESOUROS ETERNOS


     Recentemente uma moça comentou a respeito de postagens de outros no facebook: “Não devemos expor nossos pecados; afinal, todos em nossa rede são crentes em Cristo e devemos glorificar a Deus e mostrar a vitória que só a ele pertence”. Sei que ela estava bem-intencionada, mas muito equivocada.
     Primeiro, porque, embora o facebook possa ser usado como ferramenta de testemunho cristão, nós somos mesmo pecadores (1Jo 1.8-10). Não podemos pensar de nos mesmos além do que convém (Rm 12.3) nem nos achar melhor do que os outros! Melhor, só Jesus Cristo, que é melhor do que tudo que temos ou pretendemos ter e ser.
     Segundo, facebook não é a igreja, ou seja, não é uma comunidade de pecadores salvos pela graça por Jesus. Pessoalmente, tenho muitos irmãos na humanidade, amigos e conhecidos de longa data, que não são irmãos na fé: gente inteligente, simpática, que se define como agnóstica, espírita, católica, judia, quem sabe até muçulmana – com quem comunico por meio do facebook.  Eu respeito a imagem de Deus que está nelas, mesmo que fraturada e dilacerada por incredulidade ou por credulidade anti-bíblica. 
     Tenho também contatos de toda matiz do arco íris: os que assumem uma bandeira LGTB e os que participam de alguma atividade heterossexual condenada por Deus como fornicação, adultério e alguma espécie de violência sexual. Se eles manifestarem esses conceitos verbalmente, tentando incitar a outros a pecar, rejeitarei pecado, atentando ao que Paulo disse: “tais fostes alguns de vós, mas vós vos lavastes...” (1Co 6.11).
     Se alguém é pecador contumaz e se diz cristão, a Biblia adverte “com este nem comais”, mas se nem na igreja Jesus permite que ceifemos o joio enquanto está crescendo junto ao trigo (Mt 13), como posso eu, uma crente comum, podar alguém que “apenas” não é cristã, sem amá-la e apresentar-lhe a verdade, que incluirá o pecado, e a redenção em Cristo? Creio que a igreja tem uma responsabilidade de disciplinar quem anda contrário à Palavra de Deus, para manter a pureza da Noiva, mas, no facebook não sou a disciplinadora, mas uma testemunha. Sou sim, embaixatriz do Reino de Deus e fui chamada para um sacerdócio santo (1 Pe 2.9) agradável a Deus( Rm 12.1-2), mas não sou melhor que eles. Como disse Paulo, o maior teólogo e apóstolo do primeiro século (e de todos) “Cristo veio salvar os pecadores, dos quais eu sou principal”(1 Tm 1.15.), e eu não posso me julgar melhor que eles ou que ele!
     Não somos do mundo, mas estamos no mundo (Jo 17) e o Senhor rogou que fôssemos guardados do mal, não que esfregássemos no nariz dos outros que somos melhores do que eles! Temos em nós os tesouros inefáveis de Jesus Cristo, mas nós somos vasos de barro (Rm 9.23; 2 Co 4.7), às vezes trincados, outras vezes detonados, sempre carentes de sermos refeitos à imagem de Deus. É para este mundo que Deus nos conclama a ser sal e luz (Mt 5.13), enquanto indo fazer discípulos de todas as nações, pregar e viver o evangelho a toda criatura, ensinando a guardar... (Mt 28.19,20).
     Outro tipo de exclusão que vejo muito nos que confundem a igreja visível ou invisível do Senhor Jesus Cristo com “minha comunidade nas redes sociais”, é a partidária: “Eu sou de Paulo, eu sou de Pedro, eu sou de Apolo, ou o [certinho} eu sou de Cristo (1 Co 3.4). Noutras palavras, se você não for do meu time, você não é crente. Cada um deve ter firme em mente o que crê, mas respeitar quem pensa de maneira diferente. 
     Eu creio, por exemplo, que todo crente faz parte da nação santa, do sacerdócio real, do povo de propriedade exclusiva de Deus – minha posição de estar em Cristo e ser nova criatura, em que não há diferença entre homem ou mulher, judeu ou gentio, escravo ou livre (Col 3.28). Isso não significa que as mulheres devam ser pastoras. O pastorado do rebanho de Deus como função pertence a homens dotados por Deus para o pastorado e ensino (2 Tm 4.1-5; Tt 1.5-9). Tenho amigas que amam ao Senhor, são evangelizadoras e estudiosas da Palavra de Deus, que se denominam (ou outros as denominam) pastoras. Creio que elas estão equivocadas e perdem ao não reconhecer a liderança masculina em casa e na igreja – mas não brigo com elas por se chamarem de pastoras, e reconheço que elas são crentes em Cristo. A mulher de Pedro o acompanhava em suas viagens, mas não se chamava de pastora Pedrina! Priscila era discípula de Paulo junto com seu marido Áquila, e estudiosa da Palavra a ponto de esclarecer a Apolo onde ele estava errado, mas não foi designada pastora. Dorcas, Lóide e Eunice, Lídia, Marta, Maria Madalena, Joana, muitas outras mulheres foram discípulas, mas não eram conclamadas a pastorear o rebanho de Deus, nem eram bispas ou apóstolas. Não brigo nem falo mal delas. Se uma perguntar minha opinião sobre o pastorado feminino, eu converso com ela sobre as razões pelas quais não creio que seja uma injunção cultural ultrapassada, mas ordem da Bíblia – mas não a rejeito como minha irmã em Cristo de quem aprendo muito!
     Amar ao Senhor Jesus (nós o amamos porque ele nos amou primeiro) é consequência de nosso novo nascimento e de estarmos nele. Neste sentido, todo crente, homem ou mulher, é teólogo (ama o logos de Deus), missionário evangelizador, faz parte de seu Reino, sacerdócio (conforme já vimos em 1 Pedro) e embaixador/embaixatriz do mesmo. Mas por ordem e função, nem todo crente -- e nisso se incluem as mulheres – é designado para chefiar o corpo de Cristo!
     Como no caso de diversas diferenças doutrinárias (batistas / presbiterianos; arminianistas/calvinistas; pentecostais/tradicionais não pentecostais; aliancistas/dispensacionalistas e uma miríade de outros ismos e istas, minha pergunta não é “qual o seu partido?” e sim “conta-me como você conheceu a Cristo”. Algumas das irmãs que mais me abençoaram quando eu era jovem eram (são) pentecostais; por outro lado, tive dissabores com alguns irmãos que pensam iguais a mim. E me entristeço ao lembrar que eu magoei alguns irmãos no passado, em coisas que eu poderia ter deixado passar. Também houve casos de erros de irmãos que eu fui conclamada a testemunhar, falei (ou escrevi) e ainda não consegui reatar com eles/elas. De coração, desejo que a paz que Cristo conquistou na cruz seja o árbitro entre nós (Cl 3.15).
     Às vezes, quando posto uma foto mais bem-vestida ou de alguma vitória profissional, alguém quer me elogiar e diz: “Poderosa!” “Você é meu exemplo” ou outra coisa parecida, e eu penso: Eu não sou essa poderosa que ele/ela pensa. Sou fraca, pecadora, indigna. Isso não é por ter uma “baixa autoimagem”. Na verdade, eu almejo espelhar a imagem de Deus em Cristo, pois minha imagem é espelho rachado, e a dele, do Verbo de Deus, que se encarnou e se fez um de nós. Todo poder, toda glória é de Deus – e, se eu roubar um pingo desse mérito para mim mesma, estarei mostrando um simulacro tolo e falso. Na verdade, só podemos conhecer a nós mesmos à medida que conhecermos melhor a Jesus Cristo, porque nele reside toda a sabedoria.
     Tenho de aprender a não tentar “endireitar os outros” nem rejeitá-los por pensarem diferente, mas amar a meus irmãos em Cristo e ser sensível à dor de meu irmão na carne. Que deixemos toda e qualquer soberba fútil, e aprendamos com Jesus Cristo que “subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus, antes, a si mesmo se esvaziou, tornando em semelhança de homens, e reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz.” (Filipenses 2.5-8).
Elizabeth Gomes

quinta-feira, maio 11, 2017

LIMPANDO OS ARMÁRIOS




De vez em quando, percebemos que os armários estão tão abarrotados de tralhas que não conseguimos achar nada. Quando planejamos uma viagem, há mudança de estação, ou mesmo percebemos um mudança interior, um bom jeito de resolver pendências é eliminar o supérfluo, reciclar o que é aproveitável, e exercer verdadeira generosidade compartilhando o que possuímos e amamos.

Nos lares judaicos, os dias antes de Pesach eram de limpeza extrema de cada canto da casa, botando para fora tudo, de vestimentas até alimentos, para guardar novamente – depois de eliminar qualquer fermento que encontrassem. Os oito dias de celebração da libertação do cativeiro do Egito tinham de ser pareve: não se comia nada fermentado. Em vias de deixar suas casas indo ao deserto onde vagariam por quarenta anos, não havia como deixar crescer o pão – daí o matzo substituiria a challah, e de mochilas prontas eles comeriam o cordeiro vestidos com roupas e calçados para a viagem. Mais de quatro mil anos depois, a “caça ao fermento” continua a marcar a memória das crianças israelitas. Hoje os cristãos não têm esse hábito judaico, mas deveríamos estar atentos à advertência de Jesus: “Guardai-vos do fermento dos fariseus” e nos livrar do mofo das idéias altaneiras e das coisas que acumulamos no afã de ter e ser mais.

Limpar os armários, quer de alimentos quer de roupas, calçados e mil coisas mais, é um hábito saudável. Quando minha mãe teve de sair da sua casa para morar com minha irmã, a tarefa que me coube na visita que lhe fazia era descartar o que não deveria levar. Ela tinha alimentos em latas de cinco anos depois da validade expirada. Sei exatamente quanto tempo, porque ela tinha o costume de marcar na lata a data em que comprou “esse espinafre”, “esses mariscos” que guardava para uma ocasião especial, os pacotes de castanhas e passas de anos passados... Quando cheguei ao armário de remédios, vi o risco que ela passara: na Virginia dos anos noventas tinha remédios do Brasil do fim dos anos sessentas – melhoral, mercúrio cromo, sonrisal! Joguei tudo fora, e vi mamãe chorar.

No guarda roupa a coisa não estava muito melhor. Amei descobrir uma saia xadrez que ela comprara em Porto Alegre quando eu era ainda adolescente – confesso que tomei para mim e usei mais alguns anos antes de transformar em jardineira para minha neta. Era lã de primeira e a traça e a ferrugem não tinham corrompido! Mamãe era muito organizada, e em cada roupa pendurada no cabide, ela guardava a etiqueta da data em que comprou ou mandou fazer, mencionando quais os acessórios que combinavam. Quando ainda trabalhava, ia tirando e usando as roupas em ordem em que estavam guardadas, e colocava uma borrachinha no cabide para indicar se estava lavada e passada ou se poderia usar mais uma vez antes de lavar. Ela tinha chapéus dos anos cinquentas, e, dobradinha, embrulhada em papel de seda, uma roupa chinesa que sua tia avó, médica missionária na China, dera-lhe quando ela era menina de uns treze anos. Eu tenho esta túnica guardadinha em meu armário de Mogi das Cruzes. Eu debochava dos costumes acumuladores de uma mãe que cresceu durante a depressão dos anos trinta e nos criou como filhas de missionários nos cinqüentas e sessentas. Mas aprendi muita história com esses vestidos antigos.

Minha irmã e eu aprendemos cedo que não podíamos esbanjar, que as roupas e sapatos eram caros (tínhamos, cada uma, um par “chique” para a igreja, um para brincar no quintal, e o sapato de uniforme para a semana toda). Quase não comprávamos roupa; éramos abastecidas quando a cada quatro ou cinco anos, íamos com a família de férias para os Estados Unidos, onde diversas igrejas tinham “mission barrel”, um barril (ou melhor, baú) repleto de boas roupas usadas para a família missionária. Enquanto lá, os avós e as tias faziam questão de nos presentear com roupas para o natal e nossos aniversários, mas nossas pièces de résistance eram os retro fashion que nós aprendíamos a usar e quando nos perguntavam onde compramos, dizíamos simplesmente “nos Estados Unidos”.

Somos sempre missionários e, depois de mais de cinquenta anos, aprendendo a viver com parcimônia, sou grata pela mãe que nos ensinou a não colocar nosso amor nas coisas – ainda que ela mesma acumulasse e usasse mil velharias. Mas sou grata por conviver com um marido generoso que me deu uma visão mais ampla do que se deve guardar e o que se deve dar, esbanjando beleza e graça em todas as coisas. Pelo menos duas vezes por ano, eu faço uma limpeza geral no meu armário. Se tem alguma coisa que eu não visto há mais de ano, isso vai para a pilha de “dar”. Se engordei ou emagreci, e tem alguma roupa de que gosto muito mas não fica bem em mim, vai para a pilha de “dar”. Confesso que tem umas duas ou três peças que ainda não me servem mas que coloco como meta para perder peso. A pilha de “reciclar” é menor que a de dar, porque fazer reforma implica em gasto, apesar de eu aproveitar e redimir muita coisa. A pilha de dar tem de se tornar um monte, e imagino as diversas pessoas que se agasalharão com aquilo que me abrigou. Aliás, “dar” também implica em gastos: lavar e passar, tintureiro e, às vezes, costureira para pequenos consertos. Não dou aquilo que eu me envergonharia de usar. Deixar bonito, cheiroso, com botões pregados e barras feitas faz parte de dar com alegria.

Faço essa limpa nas minhas coisas e nas de meu marido – sempre perguntando a ele se concorda que demos tal camisa ou calça. Quando os filhos estavam em casa, participavam dessa tarefa (assim eu não dava o que eles não queriam que desse) e se alegravam em compartilhar roupas, calçados e brinquedos.

Engraçado que, a cada vez que vasculho e limpo meu armário, Deus faz questão de me dar algo novo. Tenho duas amigas irmãs que no passar dos anos, diversas vezes, compartilharam comigo. sacolas e malas de roupas de qualidade, e nessa fartura eu compartilho com outras amigas. Depois de uns anos, renovam-se as vestes. Divertimo-nos com a criatividade e variedade que Deus nos permite nessas limpezas e recicladas.

Lembro-me especialmente de duas igrejas que criaram “boutique missionária”, onde obreiros que ganham pouco pudessem abastecer suas malas e vestir suas crianças com boas roupas. O “Conte Comigo”, ministério das mulheres de professores do seminário às mulheres jovens de seminaristas e pastores “principiantes” também tem um farto guarda-roupa disponível a quem precisa. Algumas igrejas promovem bazares, não para angariar fundos em substituição ao dízimo, mas para que pessoas com menos recursos possam “comprar” a preço simbólico coisas úteis de que necessitam. Qualquer que seja seu método de distribuição para quem precisa, deve ser feito levando em conta a dignidade da pessoa humana e a beleza dos relacionamentos em Cristo.

Algumas “reciclagens” são inesquecíveis. Quando eu e minha irmã éramos crianças, nossa tia fez coroas de princesa com pedaços de bijuteria quebrada e brincos sem par – nossas coroas trouxeram um senso de majestade e valor a duas crianças solitárias. Quando papai faleceu, entre suas coisas deixou umas vintenas de lindas gravatas de seda, algumas espalhafatosas, muito demais para o gosto de meu marido. Abri as costuras de cada gravata e as costurei, fazendo uma saia multicolorida que usei uns dois anos em festa antes de dar para minha filha que aproveitou por um tempo antes de passar adiante. Uma sombrinha detonada de tecido forte de oncinha virou uma sacola prática que uso a mais de dez anos. Um tailleur clássico de minha mãe virou um conjunto chique e juvenil para uma menina linda. Reciclar é exercício de criatividade!

Não podemos nos limitar a dar o que não usamos mais. Uma irmã querida (hoje no céu) estava em casa num almoço e viu que a porta de meu forno não parava fechada. Naquela semana, um caminhão chegou em casa com um fogão novinho em folha. Uma vez, uma mulher cristã pensava em trocar de geladeira, quando soube que a geladeira de uma amiga havia “pifado”. Comprou e mandou entregar uma geladeira na casa da amiga, e só comprou geladeira nova para si no ano seguinte. As duas são gratas ao Senhor que é dono das geladeiras, fogões, aparelhos domésticos, e todos os bois nos milhares de campos da terra.

Limpar os armários é mais que livrar-se do excedente e dar a outro que precise. Implica em limpar os recantos e lugares escondidos de nossa vida, pensando no próximo e fazendo algo tangível, aas vezes a quem nem imaginávamos.

Quando mamãe vivia na terra, ela gostava de estender a roupa no varal, e escrevia nomes nos prendedores de roupa. Ao colocar os prendedores, orava pela pessoa cujo nome estava na sua mão. O coração sempre disposto a falar com Deus que mamãe demonstrou, é um legado muito precioso que espero aprender e transmitir a outros. Depois que ganhou uma secadora, ela passou a usar o tempo “da roupa”para ler sua Bíblia (além das muitas outras horas em que a estudava). Não tem preço a lembrança de uma mãe piedosa que aproveitava cada detalhe comum do cotidiano para atribuir a Deus a glória e amar as pessoas que pertencem a ele. Tudo tinha esse propósito.

Além do prosaico e comum com que vivemos todo dia, a limpeza dos armários pode significar glória e tesouros. Quando minha avó comprou a casa em que mamãe passou os primeiros anos da sua vida, descobriu atrás duma parede uma grande caixa com jogo de talheres de prata do tempo da revolução americana em final do século XVIII. Tesouros diferentes e intangíveis, eu encontrei revirando as “tralhas” de minha mãe para ajudar a limpar os armários. Proponho que essa limpeza seja feita de quando em quando – sempre disposta a tirar as teias de aranha e aguentar o cheiro do tira-mofo para tornar a vida mais organizada, e dar alguns passos de generosidade enquanto melhoramos nosso próprio espaço. Nunca se sabe o quanto poderemos alargar o espaço e expandir o bem estar de outras pessoas!

Elizabeth Gomes

quarta-feira, maio 10, 2017

BELEZA TEOLÓGICA SEM PRETENSÃO DOGMÁTICA





UMA INCURSÃO NA PALAVRA E NA MARCENARIA

Beleza só por beleza poderá ser pura vaidade – concluiu o hábil pregador das coisas do Criador e da criação. É como estudo e conhecimento, escrita e publicação, madeira e marcenaria: quando sem peso de glória, é mais para peso de gafanhoto. É correr atrás de vento de mocidade no tempo da penumbra, de fio de prata rompido, de nuvem chovida, e de pote quebrado junto à fonte. É como boca de beco, desafino de medo, e espanto sem grito. É ânsia de produção e aplauso sem apetite nem dente. 

Isso é, verdadeiramente, coisa séria para quem esculpe com palavras e harmoniza madeiras. Lá em casa, por exemplo, quando canso de uma oficina, vou à outra, acompanhado sempre da Palavra de Deus e da oração. Mudam as ferramentas, numa, o Aurélio, o Othon Garcia, e um e outro escritor de gosto (que de letras sei pouco) e, noutra, a serra, a plaina, o martelo e mais um sem número de apetrechos. Numa, o rasgo do texto abrindo a mente e, noutra, o traço na madeira e o risco de sangue na mão (que nunca passei de servente e aprendiz). 

Beleza ainda que por beleza além de linda será sábia e verdadeira se for bela como a santidade do Criador e como toda a palavra que sai de sua boca. Salomão relacionou a experiência das cãs à florescência da amendoeira. De fato, há paralelos interessantes entre o labor da palavra e o lavor da madeira. Há gramática, metro, conjugação, esquadro, conjunção, junção, e há estilos. As palavras cuidadosamente usadas, disse o Sábio, são como pregos bem fincados. 

Em quaisquer das responsabilidades e prazeres, o que eu peço é que Deus fixe suas palavras no meu coração e me conceda olhos e mãos para louvá-lo no uso da madeira. Que eu não use o estudo e a pregação da Palavra nem a escolha e o trato da madeira dos modos contra os quais advertiram os profetas: são como “espantalho em pepinal” e “ídolos mudos”. Antes, sejam as minhas palavras ricas como jóias e as minhas tentativas artesanais sejam obras santas como no Templo do Senhor. Sejam a minha teologia e a minha prática, figura pública e privada, mente e coração, e os membros do meu corpo, sempre fiéis a Deus e coerentes diante de Deus e dos homens, como as de Cristo no madeiro. 

Ah! E haja madeira boa para meus projetos – e madeira da boa para as minhas costas tanto para apoio quanto para disciplina.


Wadislau Martins Gomes

segunda-feira, abril 17, 2017

NOVIDADE DE VIDA


A Semana Santa, para os judeus a semana da Pesach, lembra a libertação da escravidão do Egito e a peregrinação rumo a Terra Prometida. Para quem crê em Jesus não há como deixar de comunicar a morte e a ressurreição a amigos e companheiros de peregrinação. Ele é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, Pão da vida sem fermento — matzo — que comeu as ervas amargas do cálice da ira de Deus e deu-nos o cálice da nova aliança no seu sangue e, hoje, o vinho da alegria indizível de sua presença.

Em que a ressurreição de Jesus Cristo faz diferença em nossas vidas? Em tudo! Esse “tudo” inclui atitudes, ações, comissões e omissões. Dois discípulos caminhavam tristes com os terríveis acontecimentos dos últimos dias. Todas as suas esperanças de libertação e de um novo reino de justiça pareciam frustradas com a morte daquele que criam ser o Messias. Outro caminhante se aproximou deles e perguntou o que tomava conta das suas emoções. “Só você não sabe do que aconteceu nesse Pesach em que esperávamos que alguém maior que Moisés nos desse libertação completa e perene?!”O estrangeiro foi falando das Escrituras, expondo de alef a tau tudo que Deus falou e fez. Só depois de atender o convite “fica conosco que já é tarde e o dia declina”, sentado à mesa para repartir com eles o pão, quando agradeceu ao Pai, é que viram quem era! “Não nos ardia o coração quando ele nos falava?”

Ressurreição é transcendência onipotente falando com linguagem compreensível das coisas eternas que removem as pedras do caminho e transportam vida, tornando-a crível e praticável. “Por que buscais entre os mortos ao que vive?” e “Por que choras?” muda para “Não temais; ide dizer a meus irmãos que vão à Galiléia; lá me verão (Mt 28.10). Quem testemunhou a crucificação e o túmulo vazio não pode mais viver em temor—tem uma missão a cumprir: Ide dizei a meus irmãos.

As reações dos discípulos foram diversas. Uns viram e creram. Outros permaneceram incrédulos. Outros só creriam depois de colocar o dedo nas feridas de Jesus. Soldados foram pagos para dizer que roubaram o cadáver. Mas não havia cadáver. Ele andou entre nós, falou conosco, partiu pão conosco. Muitos entenderam, outros entenderam mal, ainda outros afirmaram tratar de embuste mesmo contra as evidências da verdade.

Quando penso em cumprir a missão dos que testemunharam a crucificação — viram-no colocado no sepulcro que pretendiam encher de perfume e flores, viram a pedra removida, o túmulo vazio, ouviram os anjos falando, o próprio Jesus perguntando “por que choras”, chamando Maria pelo nome — eu mesma olho para a Grande Comissão que exige integridade na feitura de discípulos: tudo que somos e temos, transparência realista, consciência do que não somos e, até mesmo, nossas carências. Os discípulos — gente como nós, ignorante e covarde, medrosa, orgulhosa e desejosa de obter o melhor lugar no reino — passaram a ter coragem e ousadia de falar e não se calaram diante de ameaças, cuidaram do rebanho de Deus, e evangelizaram conterrâneos, vizinhos e estrangeiros, até os confins da terra. A marcha que começou com onze foi, ao longo dos séculos, acrescentada de milhares de pessoas de todas as raças, tribos e nações, e continua até hoje com grandes servos de Deus do presente e do passado, e gente pequena como eu.

Sou, como todo verdadeiro cristão, uma missionária — quero cumprir a missão de Deus de glorificá-lo também na obediência à Grande Comissão de Jesus Cristo, no poder do Espírito Santo. Isso tem de ser feito com a integridade que vem do próprio Deus da paz que nos conserva espírito, alma e corpo íntegros e implica inteireza de cada aspecto de nossa vida (1Ts 5.23-24). Todos os que participamos do sacerdócio santo (1Pe 2.9-10) temos a missão de proclamar as grandezas daquele que nos chamou das trevas para o reino do Filho do seu amor. Isso não implica em pastorado feminino (que não tem respaldo bíblico), mas na ação e atuação de cada crente que cresce na graça e no conhecimento de Cristo Jesus. Rejeito qualquer “missão integral” baseada em marxismo ou ação social que não tenha como centro Jesus Cristo, morto por nossos pecados e ressurreto para garantia de nossa justificação. Como disse Lutero, “Somos todos mendigos”.

Entre as diversas crises de fé que temos e que observamos na vida de nossos irmãos, temos as dificuldades na política, na ética, que nos forçam a enxergar o que não queremos ver e de cujas baixas não conseguimos escapar, tanto no ambiente que nos cerca quanto em nossa experiência interior — coisas que nos abalam e que, às vezes, nos devoram. “Quantos que corriam bem de ti longe agora estão, outros seguem, mas também sem fervor vivendo estão...“ (Hino Vivifica, 132 HNC).

Muitas igrejas (e seus membros individualmente) optam por aquilo que é conveniente, moderno, muitas vezes duvidoso, por estarem focados mais no pensamento do mundo do que no de Jesus Cristo, de quem tomamos o nome. Nossa mensagem tem de ser ortodoxa: anunciando todo o conselho de Deus com fidelidade segundo a fé na graça salvadora de Jesus Cristo. Isso, junto com uma fé firmada na morte e ressurreição de Jesus Cristo, na Palavra de Deus, tem de ser vivido na prática. Se agirmos sem ortopraxia, anularemos qualquer ortodoxia proclamada. Hoje, alguns nem mesmo querem mais ser ortodoxos. (Sempre houve pessoas assim.) Preferem ser atuais, e sua contextualização anula os textos firmes da Palavra da Verdade. Como dizia um tio amado, mas enganado, “É necessário sempre um pouco de heresia”. Vemos cada dia mais as características dos últimos dias em que virão tempos difíceis. A advertência descritiva de Paulo ao filho na fé, Timóteo, está mais real que nunca:
Nos últimos tempos os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder (2Tm 3.1-5).

A volta do Senhor é iminente, e é nossa bendita esperança, mesmo que muitos amigos no evangelho ignorem a centralidade da volta de Cristo para nossa ética social. Rejeito a idéia de que nossos atos irão apressar ou causar a volta de Jesus (como se nossas obras tivessem mérito!). Creio nas palavras do Jesus ressurreto e glorificado: “Eis que venho sem demora ... Eu sou o Alfa e o Omega...”

O brilhante Charles Wesley escreveu um hino dizendo: “Mil línguas eu quisera ter para entoar louvor” (SH 211), e eu tinha o mesmo sentimento: queria saber expressar o louvor de inúmeros modos e acabo não conseguindo comunicar sequer em meu próprio idioma as profundezas e a amplidão do amor de Deus. Uma das sequelas que retive depois de um AVC sofrido em 2007 foi que perdi a cristalinidade da voz com que gostava de cantar. Tenho me descoberto, no entanto, uma salmista de coração. Com voz de taquara rachada, ainda louvo porque meu louvor não é fruto de voz e respiração treinadas. O meu louvor, como disse o autor de Hebreus, é fruto de lábios que confessam o teu nome (Hb 13.15). Experimentei a disciplina do Senhor, “para aproveitamento, a fim de sermos participantes da sua santidade”, que produz fruto pacífico aos que por ela tem sido exercitados, fruto de justiça (Hb 12.11). Agora vivo para o seu louvor na paixão e sofrimento, no sepultamento de minhas próprias aspirações, na alegria daquela manhã de domingo em que ouvimos que ele não está aqui, mas ressuscitou! “Faz-me conhecer os teus caminhos; ensina-me as tuas veredas; guia-me na tua verdade e ensina-me, pois tu és o Deus da minha salvação,” diz o salmista (Sl 25.4,5). Seja esta a minha oração, e a de cada salmista de coração!

Somos, sim, mendigos, mas que falam a outros mendigos onde podemos encontrar o pão! Cremos nas promessas futuras porque conhecemos o Deus que não pode mentir e que nos “tirou do império das trevas e nos transportou para o reino do seu amor” (Cl 1.13). Ainda que indignos, somos povo de Deus, filhos de Abraão pela fé, enxertados na Videira. O apóstolo Paulo em Romanos 8, 9 e 10 mostra que Deus não rejeitou seu povo da aliança, o povo de Israel, e lembra ainda que para a salvação não há diferença entre judeu e gentio, escravo ou livre, homem ou mulher (Cl 3.23): fomos adotados como povo de Deus, enxertados em sua família. A ressurreição lembra o convite insistente de nosso Deus, que nutre e que cura, floresce e firma, a filhas de Eva e filhos de Adão que, pela fé, são também filhos de Abraão:
Volta, ó Israel, para o SENHOR, teu Deus, porque, pelos teus pecados, estás caído. Tende convosco palavras de arrependimento, e convertei-vos ao SENHOR; dizei-lhe: Perdoa toda iniqüidade, aceita o que é bom e, em vez de novilhos, os sacrifícios dos nossos lábios... tu és nosso Deus; por ti o órfão alcançará misericórdia. Curarei a sua enfermidade, eu de mim mesmo os amarei porque a minha ira se apartou deles. Serei para Israel como orvalho, ele florescerá como o lírio e lançará as suas raízes como o cedro do Líbano. Estender-se-ão os seus ramos, o seu esplendor será como o da oliveira, e sua fragrância, como a do Líbano. Os que se assentam de novo à sua sombra voltarão; serão vivificados como o cereal, e florescerão como a vide... (Os 14.4-7).


Elizabeth Gomes