quinta-feira, abril 30, 2015

O DIA QUE MINHA FILHA QUIS IR EMBORA DE CASA


Sou grata a Deus pelos  nossos filhos que  hoje são pessoas equilibradas, sensatas e tementes a Deus, que criam os seus filhos com sabedoria. Tenho de confessar,  no entanto, que eu nem sempre fui mãe exemplar—pelo contrário, teve uma ocasião que quase botei tudo a perder.

Era jovem esposa de pastor, mãe de dois meninos com uma menina no meio de sanduíche. Eu queria ser esposa ideal,  super mãe, mulher maravilha, fazer tudo que esperavam de mim e agradar a todos em minha casa, igreja, e na sociede em geral. Acima de tudo, queria ser bem-sucedida e não cometer os erros que meus pais cometeram na minha criação. Estava focada no meu desempenho, cumprindo a lei de  Deus e as muitas leis de homens e mulheres  que confundem fé e legalismo.

Como sempre, eu estava atarefada. “Que nem barata tonta,” meu marido às vezes dizia. Era o programa usual de domingo, com mais alguns pormenores de dia especial. No domingo pela manhã, eu consegui sair antes da hora com Wadislau e nossos três, que estavam prontos para ir à escola dominical, onde tudo transcorreu de maneira normal. O ensaio do coral depois da EBD estava bem mais demorado, porque teríamos um evento especial com todas as igrejas da nossa denominação logo à tarde. Nós estaríamos  apresentando junto a um grande coral da cidade (os diversos corais haviam ensaiado, cada um em sua própria igreja, e cantariam juntos na hora desse culto da Reforma. Chegando em casa, era só esquentar a carne que eu preparara no dia anterior (ainda bem) e fazer o macarrão, mas assim mesmo seria difícil colocar o almoço na mesa antes das treze horas—e o encontro das igrejas em um grande ginásio de esportes estava marcado para as quinze horas. Ainda na escola dominical, descobri que a missionaria vinda da África estaria se hospedando em nossa casa, e lembrei que naquela manhã não deu tempo de arrumar as camas e tirar as roupas do chão do banheiro antes de ela chegar e nós apresentarmo-la ao nosso lindo lar. Com certeza ela entenderia—não era possível que uma moça criada em Angola cheio de guerras ficasse perturbada com um pouco de desordem de uma casa com três crianças, de oito, cinco e três anos de idade.

Acomodamos Dalia Maria no quarto que seria dela nos próximos dias, indicamos onde colocar a mala e lavar as  mãos, e demos as mãos para agradecer o alimento sobre nossa mesa. Não sei se queimei o molho do macarrão ou o que—o almoço ficou desfalcado e acrescentamos pãozinho à carne. Eu orei para que o caçula não sujasse a única camisa limpa e Deborah parasse de mexer na comida sem comer. Eu estava animada com nossa visitante, que havia sido locutora de rádio em Luanda antes dos portugueses serem expulsos e sua cidade virar caos total. Conversava, perguntava, e lembrei a todos de comer a sobremesa depressa porque deveríamos estar no Grande Culto de Celebração dentro de meia hora.

Deborah saiu da mesa e voltou para a sala com a frasqueira verde em mãos. Eu trouxera a maleta anos atrás quando vim ao Brasil ao encontro daquele que seria meu marido. Minha linda menina lançou a bomba:

--Vou embora desta casa. Não quero mais morar com vocês. Já peguei  a mala...

Querendo dizer algo que fizesse ela entender, e sem saber o que, dizer, disse:

-- Então eu vou junto.

Ela desceu a escada para o térreo, saiu pelo portão murmurando algo como “ninguém liga pra mim aqui em casa”,  e eu saí atrás dela, querendo saber até onde iria a pantomima. Deborah desde pequena era decidida e expressava seus sentimentos com  dramaticidade. Ela foi andando a passos largos, atravessou a rua e eu a segui, atravessando logo atrás. Fui perguntando:

-- Para onde você vai?

-- Qualquer lugar sem vocês!

Pensei em modificar um pouco a tática e apontei para uma casa uns cinco metros adiante:

-- Quer ver se a mamãe dessa casa fica com você?

-- Não! Só quero ficar longe! Ela apressava o passo para a frente da próxima casa, e eu perguntei:

-- E essa casa? Acha que vai ser bom  morar com eles?

Ela resmungou que não. Apontei para a casa seguinte.  Ela já estava chorando, e corria mais  depressa.  Atrás  dela eu a seguia e chorava. Será que minha filhinha estava tão triste comigo que preferia se aventurar a uma casa estranha do que nosso lar cristão?

-- Não quero! Não vou. Eu quero você, mesmo quando cê não tem tempo pra mim. Quero o papai. O Davi caçoa de mim, mas quero ele de irmão mais velho. E o Daninho... O choro agora saía em torrentes e eu a tomei nos braços, chorando tanto quanto minha princesinha independente de cinco anos. Voltamos  para casa, bem abraçadinhas. Chegando até lá, fui preparar-lhe um Nescau, que ela tomou ainda de cara molhada. Lavei meu rosto na pia do banheiro, e o dela com uma toalha umedecida. Escovei seu cabelo, dei-lhe uma roupa linda para vestir. Acabamos de nos aprontar e fomos para o carro. Quando tomamos nossos lugares, Wadislau notou que ela e eu tínhamos chorado, e perguntou:

-- Tudo bem, querida?

-- Tudo bem.

Do banco de trás ouvimos a declaração de Deborah, expremida entre Davi e Dália Maria, que segurava Daniel ao colo:

-- Minha casa é o melhor lugar do mundo. Eu amo todo mundo de vocês! Nunca, mas nunca mais vou fugir de casa.
Na conferência, era comovente o cântico coral. Mais de duzentas vozes cantando “Castelo Forte é nosso Deus, Espada e bom Refúgio, Com seu poder defende os seus Em todo transe agudo. Com fúria pertinaz..” Passara a fúria, acabara o transe agudo. Agora eu estava louca para chegar em casa e sentar no beliche de baixo do quarto dos meninos, bem juntinho da Deborah, para contar mais uma história para o meu trio predileto. Não me lembro onde nossa visita dormiu. Para mim e para a Deborah, não havia melhor refúgio que junto à nossa família.

Elizabeth Gomes