sexta-feira, julho 27, 2012

O DESGASTE DA EUFROSINA



“Eu me desgasto... mas deixar-me gastar...” – sua voz quase sumia nas reticências. Certamente, até eu que sou mais devagar, entendo o sentimento. Não será de boa vontade que permitirei que me façam de bobo; pelo menos, não será naturalmente nem com facilidade. Já, gastar pelo bem do próximo poderia ser mais fácil, especialmente se a boa ação tiver a possibilidade de ser reconhecida.

No caso da Eufrosina, o sentimento estava à mostra: “Sinto-me abusada” – e eu também entendo isso. Às vezes, quando ocorre comigo, parece que estou sendo punido ou rejeitado ou que falhei, ou os três, e isso me dá um medo desgraçado. Afinal, todos nós queremos evitar uma dor já conhecida; faz parte da natureza decaída em pecado. Temos medo de punição porque somos culpados, de rejeição porque fomos expulsos da presença de Deus, e de falha porque o sucesso pessoal é só o que nos resta.

Contudo, eu e Eufrosina temos de saber que esse senso de justiça própria, ou de injustiça, está na raiz do problema. O nome da raiz é ira, isto é, um sentimento de que uma injustiça foi cometida. Em si mesma, a ira é salutar. O próprio Deus se ira (Romanos 1.18) e o apóstolo Paulo ensina que devemos nos irar, mas sem pecar (Efésios 4.26). A ira brota pecaminosa quando explode imediatamente contra os outros ou quando é plantada no coração a semente amarga de tragar (Hebreus 12.14-17).

Eufrosina e eu temos de saber também que o problema já foi resolvido na obra completa de Cristo. Ele pagou pela nossa culpa e nos atribuiu a sua justiça de maneira que temos paz com Deus e acesso a todas as bênçãos de sua graça.

Assim, sem medo de culpa, de rejeição e de falha, não precisamos mais de causar nosso próprio impacto pessoal, mas deveríamos refletir o caráter de Deus em todas as ocasiões, especialmente ao enfrentar as dores e os desconfortos dos compromissos com pessoas. Para isso, Deus nos dá paciência, perseverança, experiência do conhecimento de nós mesmos e dos outros e, especialmente, o amor, que não temos naturalmente, mas que o Espírito derrama em nosso coração (Romanos 5.1-5).

De fato, não temos nenhuma inclinação natural para nos deixar gastar em favor dos outros. Quer ver? Se nós dois pusermos as mãos numa chapa quente, qual a mão você tiraria primeiro? Entretanto, no dia que você ou eu amar a Deus sobre todas as coisas e ao outro como a si mesmo, certamente nos apoiaremos sobre a mão ferida a fim de ajudar na dor do outro. Nós temos um poder espiritual do alto e de maior valor, a pulsão da graça de Jesus Cristo, o qual, sabendo que já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, como havia amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim (João 13.1).

Hoje, nas orações e meditações da manhã, li na Palavra de Deus: Eu, de muito boa vontade, gastarei e me deixarei gastar pelas vossas almas, ainda que, amando-vos cada vez mais, seja menos amado (2Coríntios 12.15 - ARC). É duro, não é, Eufrosina? Mas não será, se a boa vontade de Deus for determinante no coração. Poderá ser mais difícil no começo, mas será mais fácil no final. No início, havia o medo de nos perder, ainda que não possuíssemos a nós mesmos; depois, haverá a posse do coração do outro, ainda que, amando (...) cada vez mais, seja menos amado.

Isso não significa que simplesmente encobriremos os pecados. De modo nenhum! Não os que cometemos contra os outros nem as que são contra nós nem as que testemunhamos entre os nossos irmãos. Mas, com efeito, cobriremos tudo com a paz da cruz de Cristo, se preciso for até o sangue. Em fé arrependida, confessaremos nossas faltas a quem estiver no círculo do pecado, confrontaremos o irmão faltoso com a verdade em amor assegurada pelo Espírito, e promoveremos a paz entre todos.

Muitas vezes, Eufrosina, será como comer porco espinho aos goles de água; mas fique tranquila, pois aquele que bebeu por nós o cálice da ira e sofreu as nossas dores é o mesmo que nos deu o cálice e o pão da nova aliança.

Wadislau Martins Gomes

quinta-feira, julho 26, 2012

ABUNDANTE GENEROSIDADE



 
Quando morávamos em Filadélfia e Wadislau fazia pós-graduação, trabalhei em uma biblioteca pública para ajudar com o sustento de nossa casa. Ganhava pouco, mas tive oportunidade de aprender muito com duas paixões: gente e livros (o que leva de volta aos dois grandes impactos de nossa vida: pessoas e ideias). Conheci pessoas estimulantes, inteligentes, que sempre faziam pensar mais. E pude ler livros que marcaram minha vida. A biblioteca pública de duzentos mil volumes tinha cerca de seis ou sete funcionários, e contava com a ajuda de vinte a trinta voluntários para fazer o trabalho de catalogar, guardar e atender aos muitos clientes. Certo dia, um voluntário da biblioteca perguntou à chefe se não havia algum livro ou revista em língua portuguesa, a que ela respondeu: “A biblioteca só tem livros em inglês, mas procure com essa assistente, que ela veio do Brasil” – e apontou para mim.

Aí começou uma grande amizade com Hugo e Carole Rosenau. Mr. Rosenau era judeu alemão que foi preso e mandado para Auschwitz com toda a família, incluindo a namorada, Carole. Apesar de ter visto dizimada sua parentela, e todos terem sido separados e alquebrados pelos anos de campo de concentração, sobreviveram, e, quando a guerra terminou, seus pais e a namorada foram para os Estados Unidos. Hugo teve asilo no Brasil. Foi parar em Salvador, Bahia, por onze anos, antes de conseguir migrar para os Estados Unidos, onde reencontrou os pais idosos e, noutro lugar, a não mais tão jovem namorada. Casaram e estabeleceram família em liberdade.

Dizia Mr. Rosenau que nunca se esqueceu da generosidade dos brasileiros que o acolheram, e queria algum contato com coisas do Brasil. Elegeu a mim com minha família brasileira para uma amizade singular. Eles nos convidaram para jantar em sua casa, para celebrar Chanukah e ir à sinagoga em várias ocasiões. Sempre nos presenteavam com pequenos gestos e grandes oportunidades culturais – especialmente com entradas para assistir a apresentações de orquestras sinfônicas, teatro e shows de diversos tipos. Pelo menos duas vezes por mês, tínhamos essas saídas, às vezes junto deles, outras vezes, só para mim e meu marido. Nós também os recebemos em nossa casa com refeições e gravações de músicas brasileiras. Todos os dias, Mr. Rosenau ia visitar seu idoso pai (já com 95 anos) na casa de repouso que ficava a um quarteirão de nossa casa, e no trajeto, jogava em nossa varanda o jornal do dia (o New York Times e o Philadelphia Inquirer), que acabara de ler (ele amava a literatura e o teatro) “para que nós tivéssemos também a leitura das notícias frescas”. Carole me chamava para ir à floricultura quando planejava acrescentar alguma muda ao seu jardim.

Hugo foi chamado a Nova York para uma homenagem aos sobreviventes do holocausto, onde sua entrevista foi filmada e sua história divulgada pelo mundo. O casal judeu reformado (a ala mais liberal do judaísmo) na casa dos setenta anos, e o casal brasileiro cristão reformado (o segmento mais ortodoxo do protestantismo) no começo da casa dos quarenta anos, firmou amizade inesquecível.

Depois que voltamos para o Brasil, tentei manter contato com eles, mas o cartão de Rosh Hashanáh que enviei ao seu endereço voltou com carimbo de deceased – falecido. Nunca mais soube deles nem consegui os endereços de seus filhos, que moravam na Europa e em Washington, para expressar nossos sentimentos pela perda.

Nos nossos três primeiros anos de ministério em Belo Horizonte, quando recém-formados, fomos missionários entre os judeus. Contudo, o maior e melhor tempo que tivemos de amizade com judeus foi em Elkins Park, Pennsylvania, com os velhos Hugo e Carole. Eles ouviram o evangelho, mas nunca manifestaram interesse mais profundo em Yeshua Hameshiah. Nós orávamos por eles e falávamos sem forçar o evangelho goela abaixo. Só Deus sabe se houve conversão no final – nós não víamos nenhum indício disso no tempo em que andamos juntos. Mas sempre nos lembraremos dos Rosenau com carinho, como os amigos generosos que foram conosco. Queria que nós, como cristãos comprometidos com a abundante bondade e misericórdia de Deus (Ef 1.8), tivéssemos sinais da generosidade que aqueles descrentes marcados pelo holocausto demonstraram a um pastor presbiteriano estudante em terra estranha e a sua mulher assistente de bibliotecária do Montgomery County, nos anos oitentas.

Elizabeth Gomes

quarta-feira, julho 04, 2012

TÃO GRANDE NUVEM DE TESTEMUNHAS



Estávamos indo ao aeroporto e a Serra do Itapeti, encoberta de nuvens, parecia imensa planície coberta de neve virgem. Névoa era espessa “como um creme de ervilhas”, diria o inglês, e indagávamos se os aviões iriam decolar na hora marcada, de tanta incerteza da visibilidade no futuro próximo. O sol acabou saindo antes de chegarmos ao aeroporto e em poucos minutos o mundo a nosso redor era o que conhecíamos bem. O vôo sairia sem atrasos ou interrupções. Mas eu fiquei pensando na grande nuvem...

...de testemunhas. De gente que nos rodeia por todos os lados e testifica a fidelidade e onipresença de Deus. Quando a névoa levanta, a gente vê que tudo aquilo que era duvidoso, temeroso e incerto encobria o mesmo cenário que deparamos dia a dia, numa rotina constante e segura. Encontro velhos amigos de passados distantes – e novas amizades travadas por termos um elo em comum: a vida em Cristo e, ao ligar os pontos nos traçados dessas vidas, observo três características em comum:

1)      No fundo, somos iguais, os mesmos de sempre, gente comum que respira o mesmo ar e aspira aos mesmos sonhos de anos atrás;

2)      Naquilo que externamos, somos singulares, diferentes, cada qual tendo vitórias e sofrimentos únicos, sui generis. Ninguém conhece o meu labutar...

3)      Nesse misto de experiências comuns e singulares, somos um, porque todos “nele nos movemos e existimos, e dele somos”. Simultaneamente, somos membros iguais do mesmo corpo, com diferentes dons, ministérios e realizações.

Nessas diferenças, temos experiências de vida diversas e nos encontramos em estágios diferentes da peregrinação, muitas vezes sob névoas sombrias – mas certos de que acima das nuvens há um sol que esplende. Para todos nós, há sempre uma dupla certeza: quanto a quem nos sustenta, Deus é fiel; quanto a nós, os sustentados, pequenos imitadores de um grande Deus, é pela fé que vivemos, sofremos, obtemos vitórias ou até morremos em aparentes derrotas.

Estou impactada pelas situações de minhas irmãs e meus irmãos que enfrentam perdas irreparáveis, dificuldades em família (ou na falta que ela faz), finanças e finitude, doenças sérias que põem em risco sua permanência sobre esta terra. Alguns dentre nós, peregrinos, são bem chegados, outros, conhecidos intimados na oração – mas ninguém anônimo, pessoas com rosto e coração. Unem-nos os vales da sombra da morte e a esperança do sol da redenção – Ao anoitecer, pode vir o choro, mas a alegria vem pela manhã. Sobretudo, há aqueles cuja alegria brilha acima das nuvens, nuvem de testemunhas.

Ainda não temos a força de Paulo para dizer que preferimos partir e estar com Cristo, que é infinitamente melhor (Fp 1.23). No entanto, todos esses fazem parte da tão grande nuvem que nos rodeia de testemunhas, testificando que Ele está sempre ao meu redor para me guiar... amparar... fortalecer... animar... E desejamos que ele, o Deus de nossa vida e morte, seja o único engrandecido (Fp 1.20). Sempre. Cada vez.
Elizabeth Gomes