quinta-feira, maio 11, 2017

LIMPANDO OS ARMÁRIOS




De vez em quando, percebemos que os armários estão tão abarrotados de tralhas que não conseguimos achar nada. Quando planejamos uma viagem, há mudança de estação, ou mesmo percebemos um mudança interior, um bom jeito de resolver pendências é eliminar o supérfluo, reciclar o que é aproveitável, e exercer verdadeira generosidade compartilhando o que possuímos e amamos.

Nos lares judaicos, os dias antes de Pesach eram de limpeza extrema de cada canto da casa, botando para fora tudo, de vestimentas até alimentos, para guardar novamente – depois de eliminar qualquer fermento que encontrassem. Os oito dias de celebração da libertação do cativeiro do Egito tinham de ser pareve: não se comia nada fermentado. Em vias de deixar suas casas indo ao deserto onde vagariam por quarenta anos, não havia como deixar crescer o pão – daí o matzo substituiria a challah, e de mochilas prontas eles comeriam o cordeiro vestidos com roupas e calçados para a viagem. Mais de quatro mil anos depois, a “caça ao fermento” continua a marcar a memória das crianças israelitas. Hoje os cristãos não têm esse hábito judaico, mas deveríamos estar atentos à advertência de Jesus: “Guardai-vos do fermento dos fariseus” e nos livrar do mofo das idéias altaneiras e das coisas que acumulamos no afã de ter e ser mais.

Limpar os armários, quer de alimentos quer de roupas, calçados e mil coisas mais, é um hábito saudável. Quando minha mãe teve de sair da sua casa para morar com minha irmã, a tarefa que me coube na visita que lhe fazia era descartar o que não deveria levar. Ela tinha alimentos em latas de cinco anos depois da validade expirada. Sei exatamente quanto tempo, porque ela tinha o costume de marcar na lata a data em que comprou “esse espinafre”, “esses mariscos” que guardava para uma ocasião especial, os pacotes de castanhas e passas de anos passados... Quando cheguei ao armário de remédios, vi o risco que ela passara: na Virginia dos anos noventas tinha remédios do Brasil do fim dos anos sessentas – melhoral, mercúrio cromo, sonrisal! Joguei tudo fora, e vi mamãe chorar.

No guarda roupa a coisa não estava muito melhor. Amei descobrir uma saia xadrez que ela comprara em Porto Alegre quando eu era ainda adolescente – confesso que tomei para mim e usei mais alguns anos antes de transformar em jardineira para minha neta. Era lã de primeira e a traça e a ferrugem não tinham corrompido! Mamãe era muito organizada, e em cada roupa pendurada no cabide, ela guardava a etiqueta da data em que comprou ou mandou fazer, mencionando quais os acessórios que combinavam. Quando ainda trabalhava, ia tirando e usando as roupas em ordem em que estavam guardadas, e colocava uma borrachinha no cabide para indicar se estava lavada e passada ou se poderia usar mais uma vez antes de lavar. Ela tinha chapéus dos anos cinquentas, e, dobradinha, embrulhada em papel de seda, uma roupa chinesa que sua tia avó, médica missionária na China, dera-lhe quando ela era menina de uns treze anos. Eu tenho esta túnica guardadinha em meu armário de Mogi das Cruzes. Eu debochava dos costumes acumuladores de uma mãe que cresceu durante a depressão dos anos trinta e nos criou como filhas de missionários nos cinqüentas e sessentas. Mas aprendi muita história com esses vestidos antigos.

Minha irmã e eu aprendemos cedo que não podíamos esbanjar, que as roupas e sapatos eram caros (tínhamos, cada uma, um par “chique” para a igreja, um para brincar no quintal, e o sapato de uniforme para a semana toda). Quase não comprávamos roupa; éramos abastecidas quando a cada quatro ou cinco anos, íamos com a família de férias para os Estados Unidos, onde diversas igrejas tinham “mission barrel”, um barril (ou melhor, baú) repleto de boas roupas usadas para a família missionária. Enquanto lá, os avós e as tias faziam questão de nos presentear com roupas para o natal e nossos aniversários, mas nossas pièces de résistance eram os retro fashion que nós aprendíamos a usar e quando nos perguntavam onde compramos, dizíamos simplesmente “nos Estados Unidos”.

Somos sempre missionários e, depois de mais de cinquenta anos, aprendendo a viver com parcimônia, sou grata pela mãe que nos ensinou a não colocar nosso amor nas coisas – ainda que ela mesma acumulasse e usasse mil velharias. Mas sou grata por conviver com um marido generoso que me deu uma visão mais ampla do que se deve guardar e o que se deve dar, esbanjando beleza e graça em todas as coisas. Pelo menos duas vezes por ano, eu faço uma limpeza geral no meu armário. Se tem alguma coisa que eu não visto há mais de ano, isso vai para a pilha de “dar”. Se engordei ou emagreci, e tem alguma roupa de que gosto muito mas não fica bem em mim, vai para a pilha de “dar”. Confesso que tem umas duas ou três peças que ainda não me servem mas que coloco como meta para perder peso. A pilha de “reciclar” é menor que a de dar, porque fazer reforma implica em gasto, apesar de eu aproveitar e redimir muita coisa. A pilha de dar tem de se tornar um monte, e imagino as diversas pessoas que se agasalharão com aquilo que me abrigou. Aliás, “dar” também implica em gastos: lavar e passar, tintureiro e, às vezes, costureira para pequenos consertos. Não dou aquilo que eu me envergonharia de usar. Deixar bonito, cheiroso, com botões pregados e barras feitas faz parte de dar com alegria.

Faço essa limpa nas minhas coisas e nas de meu marido – sempre perguntando a ele se concorda que demos tal camisa ou calça. Quando os filhos estavam em casa, participavam dessa tarefa (assim eu não dava o que eles não queriam que desse) e se alegravam em compartilhar roupas, calçados e brinquedos.

Engraçado que, a cada vez que vasculho e limpo meu armário, Deus faz questão de me dar algo novo. Tenho duas amigas irmãs que no passar dos anos, diversas vezes, compartilharam comigo. sacolas e malas de roupas de qualidade, e nessa fartura eu compartilho com outras amigas. Depois de uns anos, renovam-se as vestes. Divertimo-nos com a criatividade e variedade que Deus nos permite nessas limpezas e recicladas.

Lembro-me especialmente de duas igrejas que criaram “boutique missionária”, onde obreiros que ganham pouco pudessem abastecer suas malas e vestir suas crianças com boas roupas. O “Conte Comigo”, ministério das mulheres de professores do seminário às mulheres jovens de seminaristas e pastores “principiantes” também tem um farto guarda-roupa disponível a quem precisa. Algumas igrejas promovem bazares, não para angariar fundos em substituição ao dízimo, mas para que pessoas com menos recursos possam “comprar” a preço simbólico coisas úteis de que necessitam. Qualquer que seja seu método de distribuição para quem precisa, deve ser feito levando em conta a dignidade da pessoa humana e a beleza dos relacionamentos em Cristo.

Algumas “reciclagens” são inesquecíveis. Quando eu e minha irmã éramos crianças, nossa tia fez coroas de princesa com pedaços de bijuteria quebrada e brincos sem par – nossas coroas trouxeram um senso de majestade e valor a duas crianças solitárias. Quando papai faleceu, entre suas coisas deixou umas vintenas de lindas gravatas de seda, algumas espalhafatosas, muito demais para o gosto de meu marido. Abri as costuras de cada gravata e as costurei, fazendo uma saia multicolorida que usei uns dois anos em festa antes de dar para minha filha que aproveitou por um tempo antes de passar adiante. Uma sombrinha detonada de tecido forte de oncinha virou uma sacola prática que uso a mais de dez anos. Um tailleur clássico de minha mãe virou um conjunto chique e juvenil para uma menina linda. Reciclar é exercício de criatividade!

Não podemos nos limitar a dar o que não usamos mais. Uma irmã querida (hoje no céu) estava em casa num almoço e viu que a porta de meu forno não parava fechada. Naquela semana, um caminhão chegou em casa com um fogão novinho em folha. Uma vez, uma mulher cristã pensava em trocar de geladeira, quando soube que a geladeira de uma amiga havia “pifado”. Comprou e mandou entregar uma geladeira na casa da amiga, e só comprou geladeira nova para si no ano seguinte. As duas são gratas ao Senhor que é dono das geladeiras, fogões, aparelhos domésticos, e todos os bois nos milhares de campos da terra.

Limpar os armários é mais que livrar-se do excedente e dar a outro que precise. Implica em limpar os recantos e lugares escondidos de nossa vida, pensando no próximo e fazendo algo tangível, aas vezes a quem nem imaginávamos.

Quando mamãe vivia na terra, ela gostava de estender a roupa no varal, e escrevia nomes nos prendedores de roupa. Ao colocar os prendedores, orava pela pessoa cujo nome estava na sua mão. O coração sempre disposto a falar com Deus que mamãe demonstrou, é um legado muito precioso que espero aprender e transmitir a outros. Depois que ganhou uma secadora, ela passou a usar o tempo “da roupa”para ler sua Bíblia (além das muitas outras horas em que a estudava). Não tem preço a lembrança de uma mãe piedosa que aproveitava cada detalhe comum do cotidiano para atribuir a Deus a glória e amar as pessoas que pertencem a ele. Tudo tinha esse propósito.

Além do prosaico e comum com que vivemos todo dia, a limpeza dos armários pode significar glória e tesouros. Quando minha avó comprou a casa em que mamãe passou os primeiros anos da sua vida, descobriu atrás duma parede uma grande caixa com jogo de talheres de prata do tempo da revolução americana em final do século XVIII. Tesouros diferentes e intangíveis, eu encontrei revirando as “tralhas” de minha mãe para ajudar a limpar os armários. Proponho que essa limpeza seja feita de quando em quando – sempre disposta a tirar as teias de aranha e aguentar o cheiro do tira-mofo para tornar a vida mais organizada, e dar alguns passos de generosidade enquanto melhoramos nosso próprio espaço. Nunca se sabe o quanto poderemos alargar o espaço e expandir o bem estar de outras pessoas!

Elizabeth Gomes

Um comentário:

Fábio Ribas disse...

Lindo demais, Bete. Quero que minha esposa e minhas filhas leiam este texto também. Vou ler junto com elas amanhã. Um texto tão família como este tem que ser lido todos nós juntos! Amei!