Celebramos os quinhentos anos desde que Lutero postou suas Noventa e
Cinco Teses à porta da igreja de Wittenberg, na Alemanha, protestando contra os
erros e abusos da igreja medieval. O ato produziu a maior transformação
religiosa e filosófica da cristandade desde quando a igreja começou nos dias de
Jesus e de seus Apóstolos. Estamos alegres e corretos ao celebrar e pertencer a
um povo que retornou ao conhecimento e a prática das Escrituras. Temos justo
orgulho de nossa história protestante.
Mês passado, meu filho esteve em Wittenberg,
junto com pensadores reformados do mundo inteiro, para celebrar e firmar sua
cosmovisão reformada. Contou-me, porém, algo de que eu tinha ouvido falar
remotamente, e que muito me perturbou. Em meio aos festejos da cidade e do
mundo, um homem solitário portava uma placa perguntando por que Lutero não se
arrependeu nem levou o povo da igreja ao arrependimento pelo antissemitismo que
difundiram, simbolizado pela escultura em pedra de um baixo relevo obsceno e
infame da “Judensau”, a figura de uma porca em que os judeus eram os leitões
que nela mamavam.
Como cristã que ama a Bíblia e, por
conseguinte, ama o povo de quem veio Jesus e as Escrituras, fiquei chocada.
Sabia que o antissemitismo existe desde quando Deus chamou Abraão para sair de
sua terra e formar o seu povo, quando prometeu que abençoaria todos que o
abençoassem. Ao longo da história sempre houve faraós, amalequitas e amorreus, hamãs
e sambalás, assírios e babilônicos e persas, antíocos e herodes e neros e inquisições
nas católicas Espanha e Portugal, pograms
na Russia e Polônia, a destruição por islâmicos e o horrendo nazismo que antecedeu,
fez parte e ainda tem seguidores por todo o mundo “civilizado”.
Quem lê a historia do mundo não pode
ignorar a insidiosa existência do antissemitismo. Permanecem em nossa língua
expressões preconceituosas como “judiar” como sinônimo de maltratar, (só que as
vítimas da judiação eram os judeus, e
não aqueles que judiavam deles) ainda
que a colonização do Brasil tivesse sido realizada por muitos “novos cristãos”
(judeus forçados a se “converter” para não morrer na fogueira). A primeira
sinagoga na América foi em Recife, permitida durante a permanência protestante
holandesa no Brasil. Quando os holandeses foram expulsos do Brasil, Mauricio de
Nassau foi para a América do Norte e fundou Nova York (onde hoje em dia existem
mais judeus do que no Estado de Israel). Temos indícios de que o Imperador Dom
Pedro II amava o povo judeu, conhecesse profundamente a língua hebraica, e garantisse
liberdade de culto a imigrantes judeus. O Brasil, que em 1948 aprovou a
fundação do moderno Estado de Israel, até a pouco tempo apoiou e financiou o
terrorismo palestino e do Estado Islâmico. Não obstante, voltemos a Lutero.
Lutero
transformou o culto, o estudo da Palavra de Deus, o casamento e a família, a
educação, a música na igreja e fora dela, a política na Alemanha – e isso se
estendeu por toda a Europa. A luz raiou sobre o mundo conhecido, com a aurora
da Reforma. Lutero era conhecedor do Antigo e Novo Testamento (e deu a primeira
Bíblia em língua alemã, aprimorando a própria língua alemã moderna), o hebraico
como também o grego. Ele argumentava que se os judeus fossem tratados com
bondade e ensinados corretamente as Sagradas Escrituras — Antigo e Novo
Testamentos — então “muitos deles se tornariam verdadeiros cristãos e retornariam
à fé de seus pais, os profetas e os patriarcas.” Quando os judeus se convertem
ao cristianismo, Lutero disse, “eles se tornam nossos irmãos e irmãs em Cristo.
Porém, poucos judeus se tornam cristãos.” Essa atitude anterior de Lutero, de
maior aceitação dos judeus, virou irada rejeição, não por judeus serem judeus,
mas por não serem cristãos. Em 1543, Lutero publicou Os judeus e as suas
mentiras, no qual instava com os líderes alemães a “afugentar todos os
judeus de suas terras.” Este era “um juízo imperdoavelmente severo” para
alguém que tivesse demonstrado tanto amor pelo povo de Israel em seu trabalho
como estudioso do Antigo Testamento” (David B. Calhoun, “Fiel até o final,” em
Sproul e Nichols, editores, O legado de
Lutero, S. José dos Campos: Editora Fiel, 2017. Pior, apesar de pastorear
por dezessete anos a igreja de Wittenberg e conseguir nela inúmeras conversões
e transformações, Lutero nunca tentou tirar a “Judensau” de seus símbolos. Pelo
contrário, muitas eram as indicações de que nunca procurou eliminar o antissemitismo
da sua congregação ou seu povo – talvez por ele mesmo ser cego quanto a
seriedade deste pecado contra Deus.
Lutero é prova visível
que grandes homens e mulheres de Deus, que fizeram grandes coisas para a
humanidade, não estão isentos de cometer grandes pecados. Temos exemplos
clássicos em Abraão, Gideão, Saul, Davi, Salomão, e em nossos irmãos em Cristo,
Pedro, Paulo, e Tomé. O fato que fizeram grandes coisas não diminui a seriedade
nem as consequências dos seus imensos pecados. O homem segundo o coração de
Deus adulterou e mandou matar seu capitão; o homem mais sábio sobre a terra
perdeu seu impacto por sua poligamia desenfreada e idólatra; o iniciador da
transformação do mundo por meio da Reforma foi omisso, se não pessoalmente
responsável pelo problema dos maus tratos do povo de Deus.
Essa triste história do “Judensau” lembra outros
relatos perturbadores de pecados de grandes homens de Deus nos dias de hoje.
Não me refiro a coisas banais como os charutos de C. S. Lewis e de Charles
Spurgeon, ou a posição legalista implacável de Charles Ryrie com respeito ao
divórcio até ele mesmo ferir seu casamento, divorciar-se e casar com outra.
Usos e costumes não são motivos para divisões na igreja. Mas crassas falhas de
caráter deviam ser vistas e tratadas com seriedade. Em nossos anos de aconselhamento
bíblico, temos visto inúmeras pessoas adultas que foram permanentemente
machucadas por abuso sexual ocorrido ainda na infância. Pior que muitas dessas
pessoas que sofreram abuso foram feridas por “homens de Deus”— avós, pais,
tios, irmãos, padrastos, professores. pastores – gente em quem confiavam, que
representavam a igreja e a fé e a família Deus, fizeram não apenas efígies de
“Judensauen”, mas eles mesmos arrancaram a ingenuidade ou inocência de gente
criada à imagem de Deus.
Percebi recentemente em postagem no facebook que uma
amiga está profundamente zangada com os atos e atitudes de um pastor do seu
conhecimento. Porque esse homem “reformado” agiu satanicamente, ela se voltou
para um cristianismo vazio, de sensações, e que ignora a ação das Escrituras na
totalidade da vida. Muitas vezes, feridas como essa, que contaminam todos os
aspectos da vida, começam com algum tipo de abuso – alguém que usou da
“autoridade” para dessacrar e ferir o brio de uma pessoa vulnerável. É como a existência de um baixo relevo de Judensau entre as pedras construindo a
igreja. Jesus fez advertência muito séria quanto a essas
coisas:
Qualquer, porém, que fizer tropeçar a um destes
pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço
uma grande pedra de moinho, e fosse afogado na profundeza do mar (Mt 18.6).
Seja ela a existência de uma pedra com desenho
obsceno de porca amamentando judeus na construção de uma grande igreja histórica,
seja na pedra de moinho a que Jesus referiu (Mc 9.42) logo antes de falar dos
escândalos:
Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é
inevitável que venham escândalos, mas ai do homem pelo qual vem o
escândalo! Portanto, se a tua mão ou o
teu pé te faz tropeçar, corta-o e lança-o fora de ti; melhor é entrares na vida
manco ou aleijado do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo
eterno. Se um dos teus olhos te faz
tropeçar, arranca-o e lança-o fora de ti; melhor é entrares na vida com um só
dos teus olhos do que, tendo dois, seres lançado no inferno de fogo (Mt 18.7-9).
Jesus falava aos escribas e fariseus:
Nunca lestes nas Escrituras: A pedra que os construtores
rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular; isto procede do Senhor
e é maravilhoso aos nossos olhos? Portanto, vos digo que o reino de Deus vos
será tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos.Todo
o que cair sobre esta pedra ficará em pedaços; e aquele sobre quem ela cair
ficará reduzido a pó” (Mt 21.41-44).
Pouco depois disso, lamentou sobre Jerusalém lembrando
que ali não ficaria pedra sobre pedra (Mt 24.2). Depois da ressurreição e ascensão
de Jesus, Pedro, que havia traído covardemente o Mestre, se encheu de coragem e
pregou sobre a pedra – que não era Pedro – era Cristo:
Este Jesus é pedra rejeitada por vós, os construtores, a
qual se tornou a pedra angular. E não há
salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome,
dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos (Atos
4.11-12).
Paulo
também via a pedra fundamental da fé:
Edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas,
sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular; no qual todo o edifício, bem
ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor, no qual também vós juntamente estais sendo
edificados para habitação de Deus no Espírito. (Ef 2.20
– 3.1)
Pedro teve esta visão por todo seu ministério:
“também vós mesmos, como pedras que vivem, sois
edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes
sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo. Pois
isso está na Escritura: Eis que ponho em Sião uma pedra angular, eleita e
preciosa; e quem nela crer não será, de modo algum, envergonhado. Para vós outros, portanto, os que credes, é a
preciosidade; mas, para os descrentes, A pedra que os construtores rejeitaram,
essa veio a ser a principal pedra, angular
e: Pedra de tropeço e rocha de ofensa.
São estes os que tropeçam na palavra, sendo desobedientes, para o que também
foram postos (1 Pe 2.5-8).
Não quero ser pedra de tropeço nem para judeus, nem para gentios, nem
para a igreja de Deus (1Co 10.32)! Quero me firmar na Pedra Viva, na Rocha
Eterna, e eu mesmo ser como pedra viva na edificação do corpo de Cristo –
jamais pedra no sapato nem pedra de tropeço na história do povo de Deus. “Tirai os tropeços do caminho do meu povo,” diz
nosso Deus (Isaías 57.14).
Que aprendamos com Jesus, e nos arrependamos de quaisquer pecados que
causem nossos irmãos a tropeçar!
Elizabeth Gomes
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