O Tecelão -- Van Gogh |
- Papai! - a voz de Andros soou estridente - De onde vêm os teares?
Em meio à modernidade da viscose e da microfibra, um artesão preservava como herança de família, o gosto e a lida na tecelagem manual. Para muitos, coisa para turistas. Para ele, opção de vida. Pouco dinheiro, muita satisfação. O filho talvez até tomasse gosto e mantivesse a tradição. À frente, no tear de pisos, o ritmo dos liçaróis cruzando os fios da teia tensos no órgão e no cilindro soava como pulsação de vida. Pé no pedal e mãos no pente e na lançadeira, o tecelão entretecia, coração, músculos e nervos na confecção da trama. Havia uma antecipação de tecido na urdidura, uma expectação de vida como teia de desígnio, trama de propósito, tapeçaria de história - quando tecelão e tecedura se encontravam na obra criativa.
O filho do tecelão, menino, desejava reatar a amizade com o pai. Não sabia sequer por que a atração pelo trabalho a que o pai dedicava o dia inteiro, a vida inteira. Sobe, lança, desce, ajusta... Os fios partidos naquela manhã já haviam sido arrematados. Só lhe restavam culpa e admiração - o pai consertava fios partidos.
- Sei lá. Este já foi do meu pai, e antes dele, do pai do meu pai... Parece que esteve aí o tempo todo...
- O tempo todo? Então o tear é “que nem” Deus.
O tecelão não gostava de conversar com o filho sobre Deus. “Sabe lá se ele existe?” Houve um tempo em que ele mesmo tinha crido. Foi quando ele ainda era menino, e o pai ameaçava, dizendo:
- Olha que Deus está vendo. Qualquer coisa errada, ele pá!
Pá deveria ser alguma coisa terrível. Assim como se Deus estivesse pronto para abater a vítima incauta. Depois, percebeu que Deus não estaria sempre atento. Havia coisas que ele não via, ou que talvez deixasse passar. E nesse caso, o pá não era tão pronto. Mais tarde, achou que Deus talvez nem mesmo existisse.
- Não, o tear não é Deus. Não vê que eu preciso operar o tear. Se ele fosse Deus, ele é quem me operaria. Se eu não trabalhar nele, o tear não faz nada.
A conversa estava indo para fora de controle. Quem conhece menino sabe que não se pode dar trela.
- Então, quem fez o tear?
- Não sei, menino. Apareceu aí.
O menino guardou a noite toda a figura de um imenso tear, o primeiro de todos os teares, que se fez presente aí – seria por acaso? Talvez um vento cósmico, como aqueles da aula de ciências, que tenha trazido para cá moléculas promissoras de teares? Tempos sem conta teriam passado para que elas se juntassem num tear? Mas como saberiam disso, antes que fossem? Que sentido? Que desígnio as juntaria e entreteceria? Que propósito? Coisa demais para uma cabeça adolescente.
– Talvez, fosse mesmo Deus, que criou todas as coisas, aquele que criou o tear.
– Eu fiz a terra e criei nela o homem; as minhas mãos estenderam os céus (Isaías 45.12) – segredou-lhe o Espírito, mas Andros não estava pronto para ouvir.
Na manhã seguinte, o pai exibiu, orgulhoso, a obra acabada. Fio a fio juntado sob sua autoridade de tecelão. Uma torcida aqui, um arremate ali, uma trançada, um aperto, cores vivas nas formas centrais, cores esmaecidas no fundo, pareciam ter sido despertadas da matéria. Madeira, algodão, ferro e mãos haviam despertado qualidades estéticas e emoções inusitadas.
- Não artesanato - ele disse -, obra de arte!
Mais tarde, o filho voltou ao pai que admirava a tapeçaria estendida sobre a mesa, e perguntou:
- Pai, eu nasci ou sempre estive aí?
Vinte anos se passaram. Com o filho do tecelão cresceram também as perspectivas, as expectativas, os erros, as preocupações, as perguntas.
- De onde a motivação para urdir a vida e imaginar o homem? - indagou, homem feito.
- Do sempre... do nada... do acaso - responde o século.
- Qual o sentido?
- Nenhum...
- Então, qual o propósito?
- Existir? Viver?
- Um tear tecendo tapetes sem chão, tapeçarias sem parede, gente sem origem e sem destino...
Durante os anos, o filho do tecelão viu muitos fios rompidos. Desobediências, mentiras, desafetos. Pequenos erros na urdidura da vida, muitos dos quais ficaram ali, despercebidos, e tantos outros que o pai ajudara a consertar. “Será que Deus existe?”, substituiu a questão: “Será que Deus sabe?”
- Melhor com Deus? Melhor sem Deus? Como o reatamento? Onde a rematação? - pergunta o filho do tecelão.
- Sem Deus. Ao acaso. Da melhor maneira. Impossível de saber - responde o século, impaciente.
- E eu? Apareci aqui?
Se vista apenas como um tear surgido de um estado impessoal e inconsciente - que, de maneira inusitada, processa qualidades estéticas, éticas, morais, e que consegue indagar a respeito de sua própria natureza - a personalidade humana separada de Deus parece um conceito bem perverso. O pensamento secular precisou atribuir fixidez à personalidade humana porque acredita que o mundo exista ao acaso, sem desígnio ou propósito. Reduziu tudo a carne e sangue. Entretanto, esse reducionismo não satisfaz a ânsia de ser, de conhecer, de pertencer. Tal como os liçaróis, abrindo, cruzando e prendendo a trama, a alma anseia movimentos de vida.
– Deve haver algo mais para que seja vida. Algo além de mim mesmo, algo dentro de mim, algo que se estenda para o mundo; um sentimento, um tremor de vida – murmurou Andros.
– Deus não existe – declarou o século, rabugento.
Soltos, sem as amarras da crença, os fios da imaginação não apreendem o sentido do tecido. Antes, promovem a rebeldia da descrença que dá à luz a autonomia; nutrem a reversão insidiosa da infidelidade que faz crescer a solidão; e estabelecem a inversão da origem e da finalidade do ser na descrença de tudo. A despersonalização secular do ser humano, sua carência de um referencial além da própria humanidade, acaba sendo aborrecida e irada, pois não oferece explicação para a pessoalidade que perpassa tudo quanto existe.
Certamente, somos todos tecelões de vida no tear de Deus. Jamais explicaremos o tear nem os fios nem a urdidura, mas seguimos pela vida criando cenas e desempenhando papéis, rompendo fios que em vão tentamos remendar. Sobretudo, não nos deixam as laçadas das indagações existenciais, o desejo de reatamento, e a expectação de um arremate final. O desespero solitário e impotente do homem sem Deus tece explicações avessas, imagina pontos e nós para modificar o sentido das cenas.
Davi, no Salmo 139.19-22, expôs a frustração de sua alma em relação àqueles que desconhecem o controle, a presença e autoridade de Deus. Pediu a Deus que desse cabo do homem que perverte a verdade em mentira por causa da rebelião insidiosa que movem contra o Senhor de todas as coisas. Suas respostas às indagações mais prementes do ser aborreciam a sua alma. Os inimigos de Deus eram os seus inimigos. Por quê? Porque ele conhecia ao Deus de sua criação e sustentador da sua vida, e ao poder da sua comunhão, e sabia que, sem ele, não há expectativa de vida, de reatamento de arremate feliz.
Quanto a ele mesmo, Davi revelou entendimento sobre o tema da pessoalidade e de sua referência divina. Sabia-se conhecido e sondado por Deus. Seus motivos e comportamentos estavam à mostra diante daquele que penetra os pensamentos. O rei Davi entendia a linguagem difusa na criação, a revelação do próprio Criador. Antes que a palavra lhe chegasse à língua, Deus já a conhecia. O Deus que criou o mundo por meio de sua palavra cujo poder agora o cercava por trás e por diante e por cima com mão criadora e mantenedora. Ele sabia que Deus é o ambiente do homem e que está no completo controle de todas as coisas e seres. Não conhecia o pastor de ovelhas a palavra de Deus? Não sabia pela revelação da Escritura que o Deus de seus pais - de Abrão, de Isaque e de Jacó, o Deus pessoal - havia criado o mundo segundo sua pessoalidade e como um ambiente próprio para a pessoalidade humana? Uma linguagem tácita o cercava por todos os lados, revelando um conhecimento que, ainda que não pudesse ser exaustivamente conhecido, não poderia também ser evitado. Para onde fugir do conhecimento de Deus? Sua presença lhe era patente em todas as dimensões. Seu controle estava na mecânica dos dias e na física da luz e das trevas. Especialmente, era-lhe evidente a sua autoridade. Deus era o seu Criador pessoal.
Pois tu formaste o meu interior tu me teceste no seio de minha mãe. Graças te dou, visto que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste; as tuas obras são admiráveis, e a minha alma o sabe muito bem; os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda. Tais pensamentos eram preciosos para o rei, grande e incontáveis (Salmo 139.1-18, 23-24).
O Tecelão da vida havia formado e tecido o salmista no ventre de sua mãe com fios e padrões ósseos e celulares, e o próprio código genético, de modo “assombrosamente maravilhoso”. Ele sabia acerca da extensão da soberania do seu Criador e da profundidade da pessoalidade impressa na sua obra de criação, especialmente, na criação da pessoa humana. Sabia que o Senhor e Criador da complexidade de cada um dos seus dias, tem autoridade sobre a vida do homem para escrever a sua história e para pedir contas dela.
Wadislau Martins Gomes
* Do livro de W. M. G., Personalidade centrada em Deus, em preparo.
Um comentário:
gostei muito do que li quando puder manda uns artigos para o meu email ( pb.salatielmogi@gmail.com )
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