Eu me vergo. Foi mal, o trocadilho. Contudo, atente bem a essa parábola da careca: Quando os cabelos do homem lhe caírem da cabeça, é calva; contudo, está limpo. Se lhe caírem na frente da cabeça, é antecalva; contudo, está limpo. Porém, se, na calva ou na antecalva, houver praga branca, que tira a vermelho, é lepra (Lv 13.40-42).
É que, às vezes, a confusão existe até para quem “está careca de saber”. Passa o tempo, e o brilho da cabeça do antigo mestre vai recebendo tantos chapéus – pré-Dort, pós-Dort, neo, novo e de novo – que, uma hora, ninguém mais sabe o que é que eles cobrem. Arminianismo vira estilo de corte, tulip vira flor enroscada na orelha e calvinismo vira espelho de vaidades. Sem ofensa – você não vê que até eu ouso meter a cara nessa conversa?
No entanto, há luzes e reflexos de glória que valem a pena de ser citados e repetidos. As perspectivas de Abraham Kuyper, por exemplo, são de fazer a gente tirar o chapéu para tanta simplicidade. Não o simplismo de definições de barbearia tocadas a tesoura e pente, mas a simplicidade própria dos mestres que penetram as complexidades da cabeça. Tomado do gênio de Calvino, Kuyper levou a sério a soberania de Deus sobre todas as áreas da vida e, literalmente, “fez” escola e política calvinistas. Ele foi o fundador da Universidade Livre de Amsterdam e Primeiro Ministro da Holanda (1901-1905). Suas Stone Lectures são valiosas. Correndo risco de mostrar mais ondas de cabelo do que dobras de cérebro, arrisco uns volteios inspirados na apresentação do neo-calvinista holandês.
(1) os temas de “Calvino” e “calvinismo” se diferenciam tal como cabeça e cabelo. O primeiro fornece o pensamento teológico apologético para a prática cristã, o segundo, o desdobramento prático dessa teoria. Aquele declara a experiência com os princípios da Palavra de Deus; este promove a experiência da vida calcada nesses princípios. Calvino instituiu sobre fé e prática cristã; o calvinismo vem desenvolvendo essa instrução nas diversas áreas da vida.
(2) Há, pelos menos, três aspectos do calvinismo a serem considerados (como cuidado com a higiene e saúde do cabelo). (i) O aspecto confessional, o qual dificilmente poderá superar o tratamento fornecido pelos documentos da reforma e pós-reforma, tais como confissões de fé e catecismos, sempre atuais na medida em que são fiéis à Bíblia. (ii) O aspecto de movimento, como rótulo denominacional, amado ou odiado em diferentes círculos, o qual não deveria ser elemento de base nem alvo de transformação. Finalmente, (iii) o calvinismo que considera a soberania de Deus sobre todas e cada área da vida e que promove a fé receptora da graça especial na ação da igreja e a da graça comum na atuação no mundo.
(3) Esse último, sim, é uma experiência de novidade de vida calcada na obra imutável de Cristo (cf. Rm 6.4). Nesse sentido, o calvinismo apresenta uma reforma religiosa sempre renovada. Como estilos de penteado. Poderíamos até chamar de aspecto hermenêutico: Deus apresenta na Bíblia a hermenêutica do seu próprio pensamento, utilizando a hermenêutica de homens divinamente inspirados, para que procedamos à hermenêutica de sua hermenêutica em nosso tempo e lugar, a fim de que em tudo e para todos seja manifesta a glória de sua graça.
Complicado, não é? Mas não desanime: vá desembaraçando esse emaranhado com o pente da Palavra, o óleo do Espírito, os movimentos das mãos em oração, vá batendo cabeça com os irmãos na unidade de Cristo, o cabeça da igreja, e você vai ver como logo a face do evangelho se ilumina. Porque Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo. Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós (2Co 4.6-7).
Ele não disse que careca era coisa bonita, mas o bom Calvino considerou, sim, que a arte é ingênita ao conhecimento humano, tão universal que não tem limites na mente e na natureza senão o reflexo da graça de Deus. A isso aponho à guisa de ilustração: como calva na cabeça; nem todos têm completa, bela, brilhante, mas todos têm ideia da graciosidade dos cabelos e da falta engraçada que eles fazem. Se meu jeito de dizer a coisa foi demais para tanta cabeça, leia o próprio reformador:
A esse reconhecimento o próprio Criador de nossa natureza amplamente nos desperta
enquanto cria os imbecis, nos quais põe à mostra de que dotes a alma do homem
excele quando não inundada de sua luz, luz que em todos, tão natural subsiste, que
a cada um é dádiva inteiramente graciosa de sua beneficência... Com efeito, a invenção ou o ensino sistemático das próprias artes, ou seu conhecimento mais íntimo e mais eminente, que é próprio de poucos, por certo que não é sólida prova da perspicácia universal. Contudo, porque atinge indistintamente a piedosos e a ímpios, com razão se conta entre os dons naturais (Institutas 2.14).
“Pegou”? Arte é dom gratuito, comum a todos os homens. Não há como definir arte em termos cristãos ou seculares. O que existe é arte boa, que louva a glória da graça de Deus (Ef 1.6), ou arte má, que louva a rebeldia humana contra a beleza da santidade do Senhor (Sl 96.9). E veja que não estou falando de coisas bonitinhas e feinhas. Quando a Bíblia canta ou pinta a natureza criada, ela o faz para glória do Criador. Quando declara a feiura da queda, em verso ou prosa, revela a beleza da redenção. Quando pinta um quadro à luz da verdade, ilumina a tristeza da mentira e a alegria da justificação. Tudo isso não é teoria evangelical, mas graça comum a que todo joelho tem de se dobrar e confessar: Jesus Cristo é Senhor!
Além da subida santidade de Deus e da maravilha que ele permite ao coração humano, o tema da arte tem reflexos em questões tão terrenas quanto nossa calva saudosa de cabelo. Explico: nosso conceito pessoal de arte não é motivado pelo belo de Deus, mas por nossas vaidades – seja da basta cabeleira seja da careca, de que, como disse o poeta, “uns são comensais e outros, adversos”. Por isso, dividimos, a nosso gosto, as artes sacras e as seculares. Permitimos, até mesmo, o “cântico” medíocre na forma musical e na letra antibíblica, e proibimos a música “secular”, mesmo que seja bonita e verdadeira naquilo que comunica.
E não é só. Arte é coisa que se estende além dos sentidos, à atuação humana. Francis Schaeffer já falava da “beleza da verdade e beleza do amor”. Na verdade, o amor humano – amor que é dado e não requerido – é uma arte que brota do conhecimento do amor de Deus em Cristo. Por meio de Jesus, pois, ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de louvor, que é o fruto de lábios que confessam o seu nome. Não negligencieis, igualmente, a prática do bem e a mútua cooperação; pois, com tais sacrifícios, Deus se compraz (Hb 13.15-16).
Calvinismo também é uma arte. Arte que não veio de Calvino, mas do Espírito, por meio de Paulo: Acolhei ao que é débil na fé, não, porém, para discutir opiniões... Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente .... e, se, porventura, pensais doutro modo, também isto Deus vos esclarecerá (Rm 14.1,5; Fp 3.15).
Wadislau Martins Gomes
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