sábado, janeiro 15, 2011

DEPOIS QUE A CHUVA CHOVEU, DEPOIS QUE A DOR DOEU...


Chuva que chove e dor que dói é mais do que frase de efeito, lugar comum ou redundância – é pura realidade! A chuva tem efeito, a dor dói e esse tipo de coisa vai ficando redundante. De modos diferentes, o choque da tragédia na região serrana do Rio abala o homem desconsolado, o povo desolado e os espectadores solidários. Os números se somam, quase que desconexos: mais de 500 mortos, mais de 6.000 desabrigados, mais de 8.000 desalojados. O governo federal destina R$100 milhões, o estadual R$35, os Estados Unidos doam US$100 mil e entidades diversas levantam doações assistenciais. Além do Rio, tem São Paulo e Minas, e muito mais, debaixo de água e carentes de cuidado.

As notícias também chovem e doem, e os comentários não podem evitar juízos e soluções redentivas: “Não tem nada a ver com pobre ou rico. É provável que cada vez mais essas ocupações irregulares provoquem danos à natureza que causem esse tipo de tragédia. Agora é hora de solidariedade e trabalhar pela recuperação, e, principalmente, a limpeza dessa região”, diz o Governador do Rio, Sérgio Cabral; e a Presidente Dilma Rousseff distoa: “Houve um absoluto desleixo em relação à população de baixa renda, que foi morar na beira de córrego, do rio e em encosta dos morros... será necessário desenvolver um amplo trabalho de prevenção para evitar novas tragédias”.

É muita chuva, muita dor, e, depois delas, os pontos de interrogação ficam enroscados na cabeça, fisgando a alma. Caladas fundas no peito, no meio de pasmo, do sofrimento e da solidariedade humana, há perguntas que alguns calam na boca e outras que calabreiam alto: Tudo isso, por causa da natureza? Ou “ato de Deus”? (Um editor saiu pelo escanteio: A culpa é de São Pedro). Essas indagações não são novas. Não contando no Dilúvio (o original da Bíblia, e os derivado nos épicos de Gilgamesh e de Atrahasis) nem nas tragédias de Pompéia, Cracatoa ou nos desatinos das grandes guerras, as perguntas correram soltas nas tragédias das Torres Gêmeas, Sumatra, Haiti, Chile, Golfo do México, etc. – e surgem nas nossas tragédias particulares. Naturalmente, somos pequenos diante do porte desses desastres, e, sem explicações que aplaquem nosso senso de injustiça, emitimos juízos e projetamos redenções (guarde isso).

Quando algumas pessoas (Lucas 13.1-5) “falavam a Jesus a respeito dos galileus cujo sangue Pilatos misturara com os sacrifícios que os mesmos realizavam”, o Senhor respondeu: “Pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem padecido estas coisas?” Note que Jesus não disse que seria culpa dos galileus. Da mesma maneira, ele não atribuiria culpa dos eventos atuais somente aos “pobres” que constroem em lugar de risco nem aos “ricos” que permitem esse estado de coisas nem aos maus administradores “políticos”. Antes, ele disse que ninguém é menos pecador do que outros: “Ou cuidais que aqueles dezoito sobre os quais desabou a torre de Siloé e os matou eram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não eram...” A realidade, do ponto de vista de Jesus, era mais ampla, como ele continuou: “Mas, se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis”. Certamente, ele não quis dizer que todos seriam imolados ou que experimentariam morte catastrófica, mas, sim, que todos estamos sujeitos a uma ordem cuja realidade decorre da verdade de Deus e não de nossos juízos e planos redentores. É claro que, pela graça comum de Deus, sua bondade não é totalmente apagada da mente humana, e nós nos condoemos e procuramos ajudar. Contudo, mesmo nessa ajuda, há juízo e esperança de redenção. O crente quer defender Deus da acusação de maldade, o descrente reprime a noção da existência de Deus, maliciosamente, perguntando: “O seu Deus, onde está?”; o ecólogo autônomo põe a culpa no homem que agride a natureza, o político de esquerda, nos ricos, e, os ricos, nos pobres que constroem “em qualquer lugar”. Os crentes dizem que Deus é bom, os humanistas aproveitam para fazer discurso, e os poderosos pagam “para não perder o investimento”.

Como é que poderíamos obter clareza e paz de mente e de coração para enfrentar a miséria que está aí (contingente) e a bondade que é a única razão para a vida (necessária)? Talvez, se, do alto do morro vizinho à desolação (em que todos nós, espectadores preocupados, nos postamos) e do fundo do vale soterrado (em que choram os afligidos), voltássemos os olhos para Deus a fim de ver suas perspectivas, então entenderíamos a parábola de Jesus, na sequência do texto acima (Lucas 13.6-9). Um homem plantou uma vinha, entregando-a ao cuidado de um viticultor. Por três anos, não achando fruto, deu ordens para que fosse cortada, mas ouviu: “Senhor, deixa-a ainda este ano, até que eu escave ao redor dela e lhe ponha estrume. Se vier a dar fruto, bem está; se não, mandarás cortá-la”.

A primeira perspectiva dessa realidade é que o mundo não é o que deveria ser. Paulo, na carta aos Romanos 8.20-23, diz que “a criação está sujeita à vaidade [destituída de verdade e sem vigor], não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou”, aguardando ser redimida; “sabemos”, ele diz, “que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora”. Se esse fato não for levado em conta, nenhum juízo de responsabilidade e nenhuma contabilização de saldos, perdas e lucros corresponderão à realidade. Tenha isso em mente: o mundo não é como deveria ser; ele se encontra decaído desde a ocorrência do maior de todos os desastres: a queda, no Éden (Gênesis 3).

A segunda perspectiva é que nós também não somos quem deveríamos ser. No mesmo lugar, o apóstolo escreveu: “todos pecaram e carecem da glória (reflexo do caráter) de Deus” (Romanos 3.23). Isso implica que nossa visão está cerceada pela culpa do pecado e pela rebelião contra Deus, de forma que não apenas pensamos ao contrário da sua verdade, mas que nos colocamos em seu lugar como juízes e redentores para a situação. Não reconhecendo ao Deus que se revela, em níveis diferentes, na natureza e na consciência, na Bíblia e em Jesus Cristo, vivemos sob a maldição de considerar a presente realidade como sendo verdadeira, e de desconsiderar aquele que é o único Juiz e Redentor (cf. Romanos 1.18-32).

A terceira perspectiva é a da natureza da esperança, a qual não é a que deveria ser. De um lado, somos inundados pelo humanismo realista pessimista, que nos move morro abaixo nas encostas da “sobrevivência do mais apto” e da motivação da “instintividade humana” (quer dizer, “quem pode mais chora menos” e “eu quero levar vantagem em tudo”). De outro lado, somos soterrados pelo humanismo romântico, quem nos soterra sob os escombros da perfeição que deveríamos ser e da ânsia por uma salvação que pressentimos, mas que está fora de nossas mãos (que dizer, a felicidade existe, em algum lugar por aí). A perspectiva de Deus é uma de realismo com esperança. O bem existe, pois vemos resquícios dele, por exemplo, na solidariedade do povo; o mal também existe, pois está aí, no desastre da natureza e no oportunismo de alguns (que elevarão os preços e desviarão o socorro). Contudo, tal realidade não abala aquele que confia no Senhor, pois sua esperança não é uma de conforto e abastança, mas de graça e verdade. Isso, finalmente, nos leva à perspectiva seguinte.

A quarta perspectiva é trazida por Moisés, homem de Deus e estadista, cujo realismo com esperança ficou marcado como prova de fé (Hebreus 11.23-29). Nascido na escravidão, no Egito, sob uma lei real que legalizava o infanticídio, foi protegido pelos pais que não temeram o “decreto do Rei”, e criado em palácio real como “filho da filha de Faraó”; não obstante, rejeitou o otimismo dos ricos e o pessimismo dos pobres, preferindo a sorte com o povo de Deus “a usufruir prazeres transitórios do pecado... porquanto considerou o opróbrio de Cristo por maiores riquezas do que os tesouros do Egito, porque contemplava o galardão”. Foi libertado por Deus, juntamente com seu povo, da opressão do Egito para uma terra que não conhecia, mas que possuía mediante promessa do Senhor. Pela mesma fé, ele celebrou a páscoa que antecipava a obra de Cristo, atravessou o Mar Vermelho, e instruiu o povo para a conquista da terra. Sabedor de que não entraria na terra prometida, assim completou sua missão, por que era “firme como quem vê aquele que é invisível”.

Em cântico de oração, o Salmo 90, Moisés descreve sua experiência com Deus como o Senhor da história (“de geração em geração”) em virtude de ser ele o Criador: “Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus”. O contraste da sua visão do presente à luz da eternidade é mostra da convicção de que a palavra de Deus era verdadeira, e mentirosa toda perspectiva humana decaída. Os dias da terra nada são em comparação com a eternidade de Deus a que fomos chamados para viver. O mundo sem Deus fica à mercê da ira de Deus que se revela contra a rebelião humana, contra a inversão da verdade pela mentira, contra a elevação da autonomia humana. O homem sem Deus é arrastado na torrente como num pesadelo; é frágil como a relva que viça pela manhã e, à tarde, é consumida. Todas as nossas iniquidades, morais, pessoais e sociais, estão diante de Deus; os nossos dias estão todos diante do único Juiz de nossa consciência e de nossos atos. “Acabam-se os nossos anos como um breve pensamento. Os dias da nossa vida sobem a setenta anos ou, em havendo vigor, a oitenta; neste caso, o melhor deles é canseira e enfado”. A única maneira de aclarar a mente e acalmar o coração será por meio de saber que o maior desastre já ocorreu – o pecado – e que a grande esperança já se realizou: o Juiz e Redentor de nossas almas já cumpriu a promessa, sendo inundado por nossos pecados e soterrado pelas nossas culpas – ressuscitando para que vivêssemos.

Quem assim crê, sabe por que o mundo está sujeito a enchentes, terremotos, revoluções de classes e conflitos pessoais. Contudo, ele é saciado pela promessa de que, mais do que uma terra prometida, o Senhor está preparando um novo homem para essa terra. A grande pergunta é: somos servos de homens e de coisas, como pintos molhados no atoleiro, ou somos servos de Deus, na chuva e para se molhar, mas pessoas cujo caráter firme persiste na fortuna ou no infortúnio – porque contemplamos o que não se vê, mas que é real?

Wadislau Martins Gomes


Obs.: Um pastor da região, o Rev. Carlos Augusto, da Igreja Presbiteriana de Magé, presidente do Presbitério de Magé, está responsável pelos esforços de coleta e distribuição de auxílio aos sobreviventes, que se encontram em dificuldade. Eles esperam doações de roupas em perfeito estado, roupas íntimas novas; roupas de cama, mesa e banho; alimentos não perecíveis, velas, material de higiene pessoal, limpeza, etc. Esse tipo de material pode ser entregue ou remetido para o seguinte endereço: Avenida 02, No. 21, Jardim Novo Mundo, Magé.

Para doações em dinheiro - Presbitério de Magé (CNPJ 01.264.150-0001/75), Banco Bradesco, Agência 1546-6, conta corrente, 7806-9.


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