sexta-feira, janeiro 14, 2011

Amoraldo, um evangélico sem nenhum escrúpulo


Mostram-me uns “youtubs” com figurantes que eu conheço. Se houvesse testemunhado, eu não os exporia. Uns têm coisas que o apóstolo Paulo disse que são vergonhosas só de serem repetidas. Outras são tão desrespeitosas que fico vermelho de vergonha – no lugar dos envolvidos e dos distribuidores da infamação. Entretanto, por que está   feito, saio a campo para advertir e proteger incautas ovelhinhas de Jesus, para que chorem com essas piadas e riam com coisa melhor. Aí vai uma historinha que ilustra o porquê de tanta chocarrice (lembra desse termo?) em um meio que deveria ser sério e de tanto abatimento em um ambiente que deveria ser de contentamento.

Converteram-se à igreja evangélica depois de um período de insucessos financeiros. O casal que os convidara era líder do grupo de louvor. Amoraldo falava de boca cheia que sequer se lembrava da mensagem. Quando o pastor fizera o apelo para que fossem à frente os que quisessem uma oração “pelos negócios”, ele se viu de mãos dadas com Malamada a caminho “do altar”. Nem das palavras da oração tinha memória. Só sabia que a vontade de receber a bênção era tamanha que cerrou os olhos até ver faíscas coloridas “para dar partida na fé”. Durante a semana, resolveu experimentar e levou uma oferta à igreja; coisa pouca, pois não tinha “como” nem muita fé. No entanto, como disse o amigo, o do louvor, Deus ainda conquistaria aquele dízimo. Fato foi que a vida mudou. Vendeu um terreno por um total, pelo menos, vez e meia maior do que valia, fez mais contatos no culto de sucesso da quarta-feira do que no último semestre inteiro, e as vendas de cosméticos da companheira quase que dobraram. “Oh glória!” Breve, o dízimo saiu. Agora, Amoraldo, que não canta nem prega, arranjou um lugar no ministério de casais.
           
A igreja é uma dessas de passado tradicional, mas bem contemporânea, agora. Tem tudo o que é preciso para crescer: muito louvor, orações poderosas terminadas em Jesusss, apresentador carismático, mensagens curtas e “relevantes”, boa apresentação de mercado e daí em diante. “O bom”, diz ele, “é que nem parece igreja”. Não é dessas que dizem às pessoas o que fazer; “é só cumprir os votos, que Deus é fiel”.

Foi por falar em cumprimento de votos que Amoraldo e Malamada se sentiram desconfortáveis. Em conversa com a equipe do ministério de casais, alguém tinha usado uma ilustração: “são como os votos do casamento; se não forem cumpridos, a gente perde a bênção”. Seria essa a razão por que, em casa, os negócios não iam lá essas coisas? “Malamada e eu optamos por não casar no papel porque achamos que o amor não pode ser forçado. O senhor concorda?” Quem, eu? Detesto quando a pergunta vem assim, de cara; prefiro quando há um namoro antes; pelo menos, uns carinhos. Mas, como veio de chofre, dei corda: “Você quer dizer, espontâneo?” Ele foi rápido: “É isso, é isso” – e deu para ver o alívio sentido. Dei mais corda: “Tudo que é verdadeiro tem de ser voluntário, não é?” Ele titubeou. “Tudo, tudo, não; tem coisa que precisa ser forçada” – falou, amarrando a ponta solta. Amoraldo não era ingênuo como parecia. “Quando é que não precisa ser espontâneo?” – joguei a bola para o seu campo. “Ah, nos negócios, por exemplo.” Ele prosseguiu, dizendo que venda é uma arte, não é? Ninguém não poderá dizer tudo que sabe a respeito a respeito de um imóvel, condições do forro, situação da vizinhança; “senão não vende”.

Em um sentido, Amoraldo estava certo: existe isso de espontaneidade. O ponto cego, no entanto, é que, hoje, ela é uma virtude que perdeu a autenticidade. Depois do pecado, Adão e Eva se esconderam de medo, cobriram-se por causa da vergonha e mutuamente se desnudaram com acusações (cf. Gênesis 3.6-13). No lugar da boa qualidade ficou uma tendência natural para uma voluntariedade enganosa, que a Bíblia descreve como inclinação da carne; os pensamentos nos parecem genuínos, mas são resultados de um falso senso de justiça (cf. Efésios 2.3) – isto é, o sentimento de que, de alguma forma, fomos injustiçados. Parece-nos genuína, mas, na verdade, essa espontaneidade é usada para justificar a imoralidade dos nossos atos. Esse discernimento é vital para a verdadeira religião cristã.

– Amoraldo, você acha que é possível, para um crente, viver em dois mundos, o da verdade e o da mentira, o da bondade e o da maldade, o das boas e o das más obras?

– Isso eu aprendi na minha igreja: a Bíblia não tem aquela história de uma mulher, acho que Raabe, que foi elogiada por ter mentido para proteger uns israelitas? Às vezes, será preciso mentir. É como o ator que finge ser outra pessoa ou como o jogador que dribla o adversário. Sem mentir ninguém levará vantagem.

– Vamos separar as coisas. O ator desempenha para uma plateia que espera que a verdade da peça seja bem interpretada, e, no caso do jogador, tanto o oponente quanto a audiência esperam que ele faça a finta. Lembre-se, especialmente, de que Raabe não foi elogiada; antes, a Bíblia diz que ela foi justificada. Isso quer dizer que ela cometeu uma injustiça, mesmo que com boa intenção, e que Deus gratuitamente a perdoou, atribuindo-lhe sua própria justiça – e essa justificação vem da justiça de Cristo, que a conquistou para nós, na cruz.

– Pode ser, mas eu não vejo como isso diz respeito a Malamada e eu termos de nos casar no civil.

 Será que tem a ver com a leviandade no trato da palavra, do culto público, da intimidade conjugal, da honra aos que nos ensinam e do valor do valor do bom aprendizado? Mostramos duas caras, e isso têm causas e consequências. Sem dúvida, a Palavra de Deus orienta a que exibamos um coração transparente, mas isso nada tem a ver com mostrar os intestinos. Não fica bem nos tubes da vida nem na igreja.

– A questão, Amoraldo, é que as coisas que se passam nas situações particulares refletem a realidade do grande quadro da vida. Você não pode ser uma pessoa no casamento, outra na igreja e outra nos negócios. Você ama a quem ou àquilo a que sua vida é comprometida. Por exemplo, você venderia um terreno de alguém, sem nenhum documento de propriedade?

Entendo que a experiência da vida desprovida da glória de Deus é uma de falta de paz (cf. Romanos 3.23, 10-18) e solidão (cf. Mateus 19.6); separamos nossa vida da do nosso cônjuge, coisa que a Palavra não permite (cf. Gênesis 2.18); e separamos a igreja, do evangelho; enfim, separamos a vida cristã, como se fosse uma fantasia, da vida que achamos ser real. Contudo, a vida verdadeira é a que procede de Deus e suas virtudes têm de alcançar todas as suas áreas. Deus nos salvou da dissolução para uma inteireza de vida naquele que é a essência de todas as coisas, Cristo. Deus marca sua relação conosco com a adoção selada pelo Espírito e com o casamento da igreja com Cristo. É um pacto em que, por causa de sua graça, ele permanece fiel a despeito de sermos infiéis, e em que, nós, pela fé, temos de ser leais e obedientes – isso é amor. Ambas as marcas se aplicam à totalidade da vida – ao relacionamento com Deus e entre os homens.

– Sabe, Amoraldo, hoje, para ser evangélico basta entusiasmo e vantagem pessoal; mas para ser cristão verdadeiro, tem de haver no peito mais do que simples ar. O amor de que o evangelho fala é um de compromisso, de fazer o bem e de elevação do caráter – primeiro em relação a Deus e, depois, em relação ao próximo da mesma maneira que a nós mesmos.

– Querido, você me ama de verdade? – Malamada sempre leva as coisas para o lado pessoal...

Wadislau Martins Gomes

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