terça-feira, janeiro 04, 2011

AS TRÊS CARETAS DO MAU DESEJO

Ira e Desamor Natura tiveram três filhas feias como o pecado: Ciúme, Inveja e Cobiça. Ciúme até que era passável; a verruga na cara, diziam as tias Ressentimento e Amargura, dava-lhe um ar de zelo amoroso. Inveja, a do meio, não apenas tinha a boca riscada como traço de desenho infantil, mas o nariz de batata se abria em narinas estufadas, ora congestionadas ora pingando como torneira com carapeta vencida. Cobiça, a mais velha, achava que era bela, mas a coisa ficava pior; tinha os olhos voltados para o lado, dissimulados, e os braços compridos pareciam tentáculos que se moviam insatisfeitos. Ciúme se casou, mas, como não podia controlar a vida do marido, também não conseguia confiar nele; o casamento acabou logo, e ela voltou para a casa dos pais . Inveja não se casou nunca; ficou a ver os maridos de mulheres mais venturosas; alegrou-se quando a irmã voltou para casa com uma mão atrás e outra na frente. Cobiça também não se casou, mas (como direi?) encheu-se de aventuras; primeiro se juntou com aquele negociante e proprietário (mas, você sabe, com o preço dos insumos...); depois, foi com o profissional liberal, “ficou” com o facultativo, o informal... até que se cansou. As três foram morar no mesmo quarto, entre o dos pais e o das tias. O relacionamento não era lá essas coisas. Ira e Desamor sentiam-se abusados porque nem as parentes de lado nem as de baixo pagavam aluguel, pouco ajudavam na casa, e comiam como quê! Ressentimento e Amargura sentiam-se donas da casa, pois estavam lá há mais tempo, e achavam que as meninas seriam umas sanguessugas dos pais. As três donzelas frustradas faziam caretas estranhas e gozadas a cada vez que uma reunião se tornava necessária (aniversário, enterro e coisa e tal).

Em suma, a família era dominada pelo mau desejo, mas mantinha um tipo de acordo não verbalizado, de manter as águas calmas. O septeto conseguia, por algum tempo, cumprir o código do silêncio. Entretanto, as águas calmas na superfície escondiam fundos de lodo que as novelas da TV, os jornais e as conversas dos vizinhos teimavam em levantar. Chegou uma hora em que os sete tiveram de sanear o lago, oxigenar a água parada. Foi aí que ouviram dizer que havia uma igreja nas proximidades, prometendo paz sem igual. Paz é bom, pensaram; e lá foram, em roupa de domingo, sorriso encomendado para fotografia e a expectativa dos visitantes. A falta de jeito ficou por conta da primeira vez; não sabiam se e quando deveriam se levantar ou sentar. Contudo, logo se deixaram conquistar pelo calor dos “irmãos”, pelo ânimo dos “cânticos espirituais” e pelo entusiasmo do “pregador”. Esse pastor João de Deus da Silva tinha um carisma que jamais haviam visto igual. Falava de Jesus Cristo como se o tivesse conhecido. O certo é que, depois de um tempo, até em casa a coisa mudou. Aprenderam a orar pela manhã, à tarde e à noite. A Bíblia, então, era um apoio: começaram a viver “pela fé, em nome de Jesus!”

O que não sabiam, porém, é que a igreja é o pior lugar para manter a paz quando não existe paz. No início, Desamor comprou rosas para Ira; Ira cobriu a mesa com toalha nova e experimentou receitas daquela loira da TV; Amargura se comportou à mesa como uma dama e Ressentimento levou o guardanapo à boca para cobrir o arroto disfarçado de pigarro; Ciúme, Inveja e Cobiça, até mesmo, lavaram as mãos antes de se assentarem para comer. Era a paz! Passaram a se chamar, carinhosamente, de Irene, Momô, Marinha, Ressecê, Ci, Ive e Bibi. Mas, como disse o Drummond de Andrade, “se me chamasse Raimundo, seria uma rima, não uma solução”.

Um ano depois, já se sentiam “em casa” em qualquer atividade da igreja. Lá em casa, as cortesias voltaram a seguir o código do silêncio, mas aprenderam a conviver por meio da isolação em grupo. Na igreja, Momô tinha lá algumas pessoas com quem não “ia com a cara”; Irene achava uma injustiça que todos tivessem seus ministérios e que Momô ainda fosse considerado neófito (“Sei lá o que é isso, mas não acho certo”); as três graças, Ci, Ive e Bibi, eram as únicas que trabalhavam em silêncio e, se não gostavam, engoliam as coisas seguidas de um bom copo de água; Mara e Ressecê descontavam na reunião de oração (“Senhor, ajuda” fulano e beltrano, “a deixar” tal e tal “pecado”). Logo, tinha gente, em privado, pedindo a Deus que ajudasse os Natura. Uma, mais despachada, franca que nem o soluço da carne, abriu o jogo: “Vocês precisam de um reavivamento” – que quer dizer que precisavam entrar no sistema de vida da igreja. O clima natural “pegou” como epidemia de resfriado. Não demorou muito para que aquelas águas também ficassem poluídas: os desejos postos em outros deuses esculpiram imagens de necessidades insaciáveis, em nome das quais (e não de Deus), as pessoas procuravam, sem descanso, obter autoridade sobre todos; as consequências foram aquelas que já conhecemos – tentavam obter autoridade por meio de “espiritualidades” marotas, matavam (“Ai, que ódio!”), adulteravam (“Que é que tem, boba; todo mundo faz!”) roubavam (“Ei! É meu direito!”), davam falso testemunho (“Eu, defendê-lo? É um pecador...”), e faziam planos para satisfazer a cobiça (“Ah! se apenas eu...”).

Um dia, o pastor João de Deus chamou de lado a um dos homens experientes na vida cristã, João Evangelista, e pediu que “desse um jeito”. E lá foi o pobre de espírito, esposa do lado e Bíblia na mão. O bom é que ele tinha a Bíblia também no coração. Dois dedos de conversa, e descobriu que os Natura não haviam tido nenhuma experiência com o amor e a justiça de Deus.

– Mas não temos ido à igreja já há mais de ano?

Pomba de coração e serpente na astúcia, o experiente levou-os aos relatos bíblicos da libertação do povo, da escravidão do Egito, e dos quarenta anos no deserto até que tomaram posse da terra prometida.

– Uma geração inteira precisou morrer para que o povo entendesse a promessa de uma nova vida.

– O quê? Que geração é essa que terá de morrer? – As sobrancelhas circunflexas enfatizaram a pergunta, e pais, irmãs e tias cruzavam olhares temerosos e temidos.

– Toda uma geração de pecado – respondeu, especialmente os pecados a que nos acostumamos. Para nascer de novo – continuou o experiente – é preciso conhecer a paz com Deus por meio da morte e da ressurreição de Jesus Cristo.

– Ué, já não somos crentes?

– Entendam isto: todos nós, por natureza, estávamos separados de Deus por causa da nossa rebelião e inimizade. Assim, segundo o plano para nos salvar e adotar em sua família, Deus enviou seu Filho, Jesus Cristo, para morrer a morte a que estávamos condenados e para ressuscitar a fim de que recebêssemos de sua vida. Deus fez tudo o que era preciso para que experimentássemos isso. De nossa parte, só temos de aceitar essa dádiva de maneira autêntica, isto é, com a fé verdadeira que é demonstrada pelo arrependimento, e gozar a segurança e o poder do Espírito Santo para viver a vida cristã.

– Mas a gente tem fé, disse um.

– E arrependimento, completou outra.

A isso, o experiente Evangelista apôs:

– Fé e arrependimento não são termos “igrejeiros”, mas, sim, uma completa rendição diante de Deus, acatando a sua Palavra como o poder a que temos de obedecer mais do que obedecemos nossos próprios desejos.

Para tornar curta uma conversa longa, a experiência que a pessoa tem de ter com Deus, qualquer pessoa, nós e os Natura, deverá tratar de algumas questões fundamentais. Primeiro, temos de saber que nossa fé é baseada no fato de que “Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.16). Segundo, temos de entender que esse amor é experimentado quando nossas questões quanto à ira de Deus são resolvidas mediante o arrependimento que reconhece que Deus “se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça” (Romanos 1.18) e que Jesus Cristo fez a paz entre nós e Deus, conferindo-nos sua própria justiça. Terceiro, essa paz implica que não podemos abrigar amargura ressentida em nosso coração, sob pena de não vivenciarmos fé e arrependimento (Hebreus 12.14-17). Quarto (como está escrito em Efésios 4.21-32), todo convertido tem de ouvir a Deus e àqueles que ele designou, e ser ensinado a examinar o próprio coração, a fim de despojar do “velho homem” e renovar o “espírito do... entendimento”, revestindo-se de Cristo. Não bastará tentar uma cara de verdade e guardar ciúme por dentro (a gente acaba achando que é franco quando, de fato, é julgadora maledicente); será preciso pertencer a Cristo e à sua igreja. Não bastará fingir piedosa docilidade enquanto o coração resfolega ira como a antiga “maria fumaça”; será preciso resolver a ira sem dar tempo à amargura e ao ressentimento nem dar lugar ao diabo. Não bastará deixar de furtar coisas e deveres mútuos, mas será preciso trabalhar para se sustentar e ainda ser generoso. Enfim: “Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas só a que for boa para promover a edificação, para que dê graça aos que a ouvem. E não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual estais selados para o Dia da redenção. Toda amargura, e ira, e cólera, e gritaria, e blasfêmias, e toda malícia seja tirada de entre vós. Antes, sede uns para com os outros benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo”.

Os Natura? Só vendo! Irene chama o marido de meu amor e ele devolve com “meu bem”, e sequer levantam o riso da família. Ressecê e Marinha estão uns amores: “Precisam de alguma coisa? Em que posso ajudar”. Ci, Ive e Bibi esbanjam uma beleza de coração que até o rosto aformoseia. E sabe o quê? Dá gosto ir à igreja!
Wadislau Martins Gomes

2 comentários:

Natércia de Freitas Lemos disse...

Muito legal essa estória. Onde está o nosso coração, está também o nosso tesouro. O problema é que quando os desejos se tornam mais importantes e intensos o coração fica "poluído" pela idolatria.

coramdeo disse...

Oi, Nat,
Idolatria é fogo, não é? Parece que idolatria é uma das categorias mais abrangentes, na Bíblia.
Wadislau