domingo, fevereiro 14, 2016

MISSIONÁRIOS DE SEGUNDA GERAÇÃO



-- É uma temeridade querer criar filhos nesse fim do mundo, sem os mínimos recursos. Não quero saber de neto bugre. Vocês estão jogando para as traças a todos os recursos que eu providenciei a duras penas, toda a educação primorosa que receberam. Com o estudo que você tem, poderia ser importante na vida.

A mãe  que sempre lutou para vencer no mundo profissional estava apavorada com a idéia dos filhos irem a um campo missionário distante. Como não conseguia convencer a filha adulta, apelou para a possibilidade de netos nascerem no meio da selva. Repetia a ladainha de tantos outros que  temem que as crianças de missionários sejam privadas de todas as coisas boas da civilização.

Vinte anos depois, sem ter feito cursinho, sem ter os benefícios da civilização, o “filho bugre” neto dessa senhora entrou numa prestigiosa universidade, e desenvolveu sua carreira acadêmica com nota máxima. Era alegria e motivo de gratidão dos pais que continuam ativos no trabalho para alcançar um povo “que não têm nenhuma importância no mundo e nem aparece no mapa do Brasil”. Estou falando de filhos de missionários. O preconceito de muitos familiares cai por terra, e a senhora avó descrente (se bem que ela, frequentadora ativa de igreja, rejeite esse rótulo) descobre que o neto que veio visitá-la tem postura simpática e inteligente.

Um dos argumentos que este mundo pós cristão usa contra o trabalho missionário é que os filhos serão privados da educação, do convivio com pessoas de seu próprio ambiente de origem, de qualquer possibilidade de crescer e se tornar “alguém” na vida. Aqui não ouso oferecer uma pesquisa científica do trabalho missiológico dos últimos anos. Mas uma olhada de relance na vida das pessoas que optaram por uma dedicação plena, servindo a Deus num “ministério” e ao próximo em campos distantes que divergem da “vida normal” de classe média ocidenta mostra que bom número dos filhos de missionários e pastores, longe de serem prejudicados pela dedicação a Cristo de seus pais, foram abençoados e conseguiram brilhar além de qualquer de seus pares educados no mundo competitivo de cultura pós moderna. Descubro ainda que muitos grandes servos de Deus no cenário mundial e em nosso próprio país tiveram a vida “errática e acidentada” de filho de missionários. Pessoas a quem consideramos mentores e marcadores da vida cristã, como Dr. Russell Shedd, Dr. Davi N.Cox, a Sra. Edith Schaeffer, eram todos filhos de missionários, criados por pais que entregaram tudo para servir a Deus em meio a um povo que não era de sua origem. É surpreendente o número de missionários de segunda geração (ou terceira, (e como o caso da família Gordon, que fundou o hospital evangélico de Rio Verde, vai para a quarta geração de servidores; os filhos e agora netos dos Cox estão engajados no ministério cristão de tempo integral) que, com dedicação e alto padrão de excelência, continua missionária bivocacional.

Para o cristão reformado e missional, não existe uma casta à parte dos que estão no trabalho missionário  diferente de qualquer crente em Jesus Cristo que desenvolve sua profissão coram deo. O livro  “O chamado” de Os Guinness, elucida bem nossa posição. Somos todos chamados para amar e servir a Deus e ao próximo, quer em vocação “secular” corriqueira quer em serviço eclesiástico ou paraeclesiástico de tempo integral. Como servidora no lar e tradutora de livros, ou minha amiga médica servidora pública que tem também clínica particular e é mãe de crianças ativas, ou minha amiga que abriu mão de um casamento há cinquenta anos, já trabalhou com três grupos indígenas traduzindo a Palavra de Deus e elaborando cartilha prática para um pequeno povo brasilíndio antes ignorado—nossa missão é onde estamos, no ambiente em que Deus nos coloca, vivendo cada dia comum, tendo em vista a eternidade. Alguns de meus amigos gastaram anos de preparo e hoje estão “no meio do mato sem cachorro”—que aos olhos do mundo corrupto e cheio de sofrimentos constantes parece um “desperdício”—mas têm em vista valores que não podem ser roubados e a percepção de valor pessoal com peso de glória. Os Norval e Lau, Cléo e Raquel, Fábio e Lucila têm brilho para desenvolver um trabalho profissional que marque o país—usam, porém, a profissão e o preparo para ajudar povos desprezados e esquecidos a conhecer e compartilhar a glória de Deus. Outros casais cristãos vivem seu ministério como advogados, servidores públicos, pastores e professores, odontólogos ou nutricionistas, também demonstrando a glória de Deus em serviço ao próximo. Quer sejam sustentados financeiramente pelo fruto do próprio trabalho quer por igrejas parceiras em sua missão, têm a consciência de que são servos, não donos do mundo—e o fazem com dedicação total. Seus filhos aprendem e imitam mãe e pai em missão.

Alguém poderá enumerar as desvantagens de os filhos crescer sem frequentar as escolas de vanguarda da cidade. Mas esses meninos têm escola de línguas in natura, geralmente falando mais que um idioma sem seus pais pagarem um centavo para garantir professores de fala nativa. Às vezes os próprios pais missionários educadores dão a seus filhos ainda bem novos, além do currículo exigido pelo MEC, aulas de antropologia prática, linguística aplicada, e teologia bíblica para seus rebentos—sem a presença de bullying, as tentações de abusos da televisão e internet, e certamente sem as distorções que nossos jovens da cidade testemunham diariamente em suas escolas. Claro, chega uma hora que o filho tem de estudar em um centro cultural na cidade—mas viveram a cosmovisão cristã de seus pais missionários antes de ser inseridos na roda viva da descultura brasileira.

Pode ser que pais missionários negligenciem ou destratem seus filhos, por estarem ocupados demais nas coisas do reino de Deus? Sim, é possível, mas é mais provável maior negligência da parte de pais que dividem a vida entre o secular e o religioso no mundo “normal” de carreira profissional, pelo acúmulo de bens e de carga horária longe de casa, que sacrifiquem seus filhos e o próprio casamento. Dedicar-se ao missional condiz bem com ver sua primeira missão depois de glorificar a Deus como sendo ministrar em amor e bondade à família—o que dá exemplo de prioridades e princípios para aqueles a quem ministram.

Os filhos de missionários podem sentir que faltou dinheiro, conforto, recursos porque seus pais escolheram uma vida de sacrifício? É possível se ressentirem—se os pais deixaram de contar as bênçãos e se lamentaram do que não tinham ou não puderam fazer ou dar aos filhos. Porém, se a atitude dos pais for de enumerar as misericórdias do Senhor diante dos filhos e do mundo, considerando o privilégio de serem embaixadores do Rei dos Reis, sem a ganância de querer mais, transbordando do contentamento em toda e qualquer situação, esses jovens não vão ressentir as “faltas”que presenciaram. Isso vale para missionários transculturais, bivocacionais, ou crentes comuns em seu cotidiano que se enxergam como servos do Senhor quer como peões quer príncipes no mundo que Deus criou. Tem muita gente reclamando de crise e escassez num mundo onde escolheram desprezar os tesouros eternos—sem o atenuante do obreiro cristão que se descreve como  “nada tendo, mas possuindo tudo”.

Nem todo filho de missionário ou pastor nem mesmo do Seu Mário Crente Comum  é cristão comprometido com a Palavra de Deus. Sabemos de filhos de missionários que, rebeldes, deram muita dor ao coração de seus pais. Deus não tem netos—só filhos dos que creram em seu nome. Mas os filhos da promessa têm a vantagem de crescer em ambiente onde a graça do pacto de Deus os aninha e perturba até o ponto da conversão. Muitos filhos rebeldes são exatamente aqueles que mais impacto terão para o reino quando se convertem. Tais fostes alguns entre vós...


Há também aqueles incrédulos—mesmo entre chamados cristãos--que argumentam contra educar filhos missionalmente porque querem mesmo derrubar qualquer parâmetro “fundamentalista cristão”—preferem o fundamentalismo politicamente correto de vale tudo (exceto o cristianismo bíblico) de fazer as próprias escolhas sem ser tolhidos por Deus, igreja ou consciência cristã. Presos pelas cadeias do pensamento do mundo que jaz no maligno, atolam e se debatem na lama enquanto denigram os que educam na palavra em meio a culturas contrárias, preferindo assimilar vícios e negar as virtudes do ensino do livro de Deuteronômio bem como de Jesus que disse: “indo por todo mundo, preguem, batizando, ensinando...” Ignoram a promessa: “Eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos”.

Elizabeth Gomes

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

PRAZER MOMENTÂNEO

De uma série de folhetos escrito por
diversos autores, dirigidos aos alunos
da Universidade Mackenzie.

Há quem pense que cristão não tem alegrias nem se dá ao luxo de prazeres. Ao contrário, um texto do Livro dos crentes, a Bíblia, diz ao jovem que se alegre na sua juventude e tenha prazer na sua mocidade, que satisfaça os desejos do seu coração e que agrade seus olhos. Tudo de bom, não é? Só que isso não significa liberação geral.

   A alegria não pode ser a máscara do choro
        nem, o prazer, a antecipação da dor.

Afinal, quem gosta de choro e de dor é viola. Assim, para manter a autenticidade da alegria e do prazer, o autor do texto, Salomão, prossegue, dizendo que toda alegria e todo prazer devem ser regrados por uma boa consciência diante de Deus, a fim de não virar desgosto de coração e dor da carne. [1]

Como disse esse sábio Salomão, o negócio de prazeres imediatos sem mediação de boa consciência nunca mede esforços nem consequências. Há alguns anos, saindo do prédio onde eu lecionava, logo ali na movuca da esquina, dei de cara com o filho de um amigo segurando uma garrafa de vodca. Ele me olhou como que esperando não sei quê, e disse: “É água. Tô só fingindo”. Saí meio rindo meio apreensivo. Afinal, já fui moço e tenho juízo suficiente para não dar uma de censor para a juventude. Confesso, no entanto, que o meu riso teve um tom crítico, especialmente com o cheiro acre de erva queimada, no ar, e o meu quase medo de esbarrar o carro numa perna estudantil. O que é que o cara estava querendo? Impressionar? Quem? Pra quê?

Se você quiser entender a dinâmica dos prazeres imediatos e a do verdadeiro contentamento, terá de manter em mente o mapa das motivações e dos desejos do coração. Esses são os temas-chave da vida – há sempre uma motivação e um desejo do coração por trás de todo comportamento. Um professor e amigo, Ed Welch, disse que o mundo dos prazeres imediatos é como o mundo dos relacionamentos mais próximos. A gente entra neles com todos os tipos de expectativas e esperanças. Gostamos de como nos sentimos na companhia de uma e outra espécie de droga, mas quando nos estendemos no relacionamento, começamos a perceber que há uma troca a ser feita. Qualquer que seja a droga (álcool, maconha, picada ou pó), há uma cobrança de cada experiência e de cada sentimento. O preço a ser pago é sempre maior do que o barganhado – mais aí já é tarde. Estamos comprometidos para a vida. Se permanecermos no compromisso, estaremos escravizados (que é o sentido de conjugal) se sairmos dele, seremos sempre um “ex-alguma coisa”.

O cristianismo da Bíblia não trata do uso de drogas por meio de moralismo, pois considera o próprio moralismo como qualquer droga, cheio de promessas e de nenhuma liberação. Pior, o moralismo escraviza por meio de exaltar a vaidade para, no final, agir exatamente como as drogas, dando um tombo na pessoa. Nas drogas, você será um “drogado”, saindo dela por sua própria vontade, você será drogados “de si mesmo”, cheio de vento e disposto a outras muitas vaidades. Poderá ser que encontre algum tipo de sucesso da empreitada de evitar ou de sair do engano do prazer instantâneo. Por isso mesmo devo deixar bem claro que uma pessoa somente poderá lidar de modo pleno com a questão dos prazeres imediatos – drogas, sexo livre, e toda espécie de mau-caratismo, seja para evitar entrar num compromisso firme ou para sair dele – por meio de uma transformação espiritual. Sem isso, será sair de uma viagem ruim para entrar em outra. Quer você esteja com uma garrafa de água, fingindo ser bebedor de vodca já pisando alto ou caçando frango, quer você tenha abandonado a chupeta, você estará fingindo ser o que não é. Fingirá alegria, fingirá ter prazer nas coisas, mas sem contentamento.

   A fim de encontrar satisfação pessoal verdadeira e a fim de evitar 
   ou sair de uma roubada você terá de conhecer suas próprias motivações, 
   conhecer seus desejos, e conhecer o contentamento verdadeiro.

Conhecendo as motivações do coração
                Pense um pouco sobre o que é que motiva o seu coração. Como disse Pascal, ele tem razões, e não é sem razão que o coração físico é figura do aspecto central da pessoa. Estende sua ação interior por todo o corpo e aparentemente reage ao ambiente batendo mais forte ou mais fraco. Aparentemente, digo, porque a pessoa não é dividida, e nenhuma de suas partes opera em isolação. É nele, contudo, que sentimos as mudanças do comportamento do corpo e da alma. Por isso é que se fala de motivos do coração. São motivos internos que também reagem ao ambiente externo. Alguns desses motivos são básicos e universais, isto é, estão na raiz dos nossos sentimentos e comportamentos, e todo mundo têm.

O cristianismo da Bíblia aponta para a pessoa humana como sendo criada por Deus com o propósito de refleti-lo e, assim, ser autêntica e contente com a própria condição. Dá para ver que hoje a coisa não é como deveria ser. O ser humano foi corrompido pelo pecado e vive com falta do conhecimento de seu Criador e de seu propósito como criatura. Nessa base, as pessoas são motivadas a procurar esse conhecimento.

O dilema humano nessa condição é tratado pela revelação de Deus como sendo de morte e de cegueira. A pessoa está morta espiritualmente e cega para as coisas de Deus. Num sentido, ela conhece a Deus porque a vida que tem no corpo é alentada por Deus que lhe dá, até mesmo, a respiração; noutro sentido, não poderá conhecê-lo se ele não se manifestar. Vem daí, então, que o coração sem Deus vive em um vazio interior, vendo o mundo exterior, nas palavras de Vinícius de Morais, como “bares repletos de homens vazios” (e olha que de copo e de vidas vazias o poeta entendia).

Motivados interiormente por um vazio existencial e exteriormente por tendências sociais formuladas por pessoas vazias, o que resta é repensar a natureza da vida que experimentamos e imitar as vidas de pessoas que igualmente se repensaram.

   Alguns têm motivações mais altas, outros, mais baixas, 
   mas ninguém poderá ir além da própria estatura moral adquirida 
   no conhecimento de si mesmo.

mal, num ? E piora! Sem um paradigma maior para refletir, refletimos o quarto escuro do nosso vazio interior e/ou o escuro do universo. É o oco do peito ou o buraco negro do lado de fora. E Tudo isso não ocorre sem peso. Tudo envolve a gente. Nossas motivações estão ligadas às pessoas. Tem gente que vive se protegendo de pessoas, tem gente que vive se distanciando de pessoas, e tem gente que vive contra as pessoas. Na verdade, esses movimentos, conjuntamente, fazem parte da dinâmica do indivíduo, mas um é caracteristicamente mais visível no comportamento.

De maneira geral, sem cair no risco de reducionismo, para conhecer suas motivações básicas você poderá se perguntar: o que é que eu quero?
(1)     Ficar na minha, vestido de esquisito, num canto, tentando puxar as próprias rédeas para ver se o pessoal nota e segue?
(2)     Ser a alma da festa, o sábio do rei ou o bobo da corte, que enche a cara ou enche os caras, mas segue, obsequioso?
(3)     Ser o chefe do grupo, na técnica ou na marra, líder da torcida e do esculacho?

As respostas, dadas de maneira consciente, honesta, proporcionarão uma idéia dos motivos do seu coração. Você poder tentar controlar seu comportamento, mesmo que seja para não passar vergonha, chamar a atenção ou dar uma de não tô nem aí (porque você está ali!), mas, fazendo isso, já teve seu comportamento controlado. Você pode tentar agradar as pessoas, mas jamais conseguirá agradar a todos, pois teria de ter mil caras para tanto gosto diferente – e ninguém gosta de gente de duas caras. Você pode, ainda, tentar mandar nas pessoas, mas terá de admitir que autoridade é força de caráter e não ferramenta de manipulação. No final das contas, controle, agrado ou ditadura estão todos ligados à manipulação.

O que é que essa tentativa de manipulação tem a ver com a busca do prazer imediato? A primeira parte da resposta tem a ver com a ferramenta social do admirável mundo novo, de ídolos substitutos ou de promoção. Autores, artistas, atletas, pais, professores, todos têm algo em que se encostar ou para alavancar a vida: comida, bebida, fumaça de baseado ou de óleo diesel, remédio sem prescrição ou bolinha. Crescendo nesse meio social, quando chega o tempo o voo solo, só podemos repetir o comportamento treinado. Isso por que somos socialmente motivados. A outra parte da resposta é a que se segue.

Conhecendo os desejos do coração
                Como dizia o bêbado do bairro, entre o engasgo e a careta, “Essa mardita é da boa”. A gente sabe que bolso de bêbado não tem dono, que depois do pó ou do pico a festa acaba para os sentidos, que o desvario sexual avacalha qualquer relacionamento – mas a gente gosta! Por quê? É claro que é porque é gostoso! E, no mínimo, por duas razões: uma é que poderá ser que a coisa seja gostosa e, a outra, que o nosso gosto seja deturpado. Não tem gente que come sei lá o quê?

                Os desejos do nosso coração são, coerentemente com as nossas motivações, interiormente nutridos e socialmente aprendidos. É impossível dizer onde começa porque é sistema de retroalimentação. Os desejos do meu coração são formados segundo minhas interpretações da realidade – na família, na vizinhança, na escola, na sociedade – e, daí em diante, elas dominam meu cenário de vida. Depois que o gosto foi criado, e só pensar que a boca já saliva.

Nós gostamos das drogas “sociais” por causa do que elas fazem por nós, ajudando-nos a lidar com nosso desejo de isolação (para longe de pessoas), com nosso desejo de pertencimento (para perto de pessoas) e com o nosso desejo de domínio (contra pessoas). Um pouco de droga pode fazer maravilhas para qualquer dessas motivações – até mesmo para caspa na sobrancelha. Algumas vezes, as pessoas mantêm uma baixa expectação da vida, e vão levando a existência, dopadas. Outras vezes, as pessoas dão de cara com a realidade e se deprimem, planejam mudar, mas o gosto da coisa é mais forte e o próprio sentimento serve de gatilho para o desejo.

   O cerne do problema é que esses ganchos de apoio acabam sendo 
   próteses do nosso ser. Apoios falsos que podem ser físicos (produtos) 
   ou simbólicos (em que até coisas boas podem escravizar alguém
    e roubá-los dos valores maiores da vida).

Nós amamos essas drogas como a um braço ou perna, e não estamos dispostos a removê-las da vida. Temos nossos momentos de ódio do mal-estar que elas podem provocar, e momentos de ambivalência, mas, no final, voltamos a elas porque queremos. Depois de um tempo, passamos a amar mais os ganchos falsos, as próteses, do que o nosso próprio corpo.

O Welch disse que isso é ambos, a lógica e a insanidade do abuso de drogas – e que essa parece ser a lógica e a insanidade da condição humana. Tal condição não se limita a abuso de drogas e álcool. É o mesmo princípio por trás da procrastinação, dívidas, excesso de comida, gastar tudo num jogo, colar na escola, e daí em diante.[2] Uma vez que estejamos escravizados aos nossos desejos, nas correntes de substâncias e de comportamentos, colocamos fé em sua satisfação como fonte de prazer e alívio. O problema com esse modelo é que o pretenso alívio é mero entorpecimento e, o prazer instantâneo, rápido e passageiro, deixando a gente com a boca com gosto de cabo de guarda-chuva ou de corrimão de escada.

Motivações e desejos do coração  
                Normalmente não se pensa do ateu como sendo idólatra – se não tem religião, como cultuar a ídolos? Sequer pensamos que haja ídolos seculares. Você talvez não tenha considerado que tudo o que colocamos como “salvador” para as nossas motivações e desejos trata-se de idolatria. Se você quer ver como um homem não cristão viu essa condição humana, leia o conto de Machado de Assis, Igreja do diabo. No conto, o diabo acusa os adoradores de Deus de fazerem o bem em troca de benefícios. Diz que, de noite, o povo abusa do mal. Deus permite, então, que o diabo troque o mal pelo bem. A partir daí, o mal é a coisa a ser feita. Acontece, porém, que, mostrando a origem boa do homem, o povo começa a sair em secreto, na calada da noite, para fazer o bem aos vizinhos e estranhos das ruas. Esse é que é o negócio – somos todos religiosos, quer ateus quer agnósticos quer religiosos de qualquer crença.

Você poderá, até mesmo, evitar as drogas ou sair delas por si mesmo, como já foi dito. Mas trocar o mal pelo bem, sem Deus, será apenas, como disse Machado de Assis, trocar a renda de uma toalha. A toalha é a mesma. As necessidades humanas que jamais poderão ser satisfeitas pela própria pessoa serão apenas trocadas por necessidades cada vez mais prementes e frustradas. É uma troca de ídolos. A única forma, portanto, de alcançar uma transformação de motivos e de desejos será por meio de conhecer a Deus como Criador e Salvador e, assim, conhecer a si mesmo como criatura.

Deus é conhecido em seu Filho, a Palavra Viva, sua única revelação pessoal, e isso, por meio da sua Palavra, a Bíblia, sua única revelação escrita. Segundo Jesus Cristo, toda a Palavra revelada se resume em “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. Não quer dizer amor por si mesmo como base do conhecimento, mas amar a Deus primeiro e, depois, a si mesmo como objeto do seu amor. Quando você conhece o amor de Deus em Jesus Cristo – que  nasceu, morreu, viveu, ressuscitou e reassumiu seu lugar ao lado de Deus – toda a motivação de sua vida muda o lugar de perspectiva.

É uma mudança de natureza, um novo nascimento espiritual que fornece nova visão das coisas.
Aí, sim, seu desejo sofre mudança radicais. Antes, você não podia evitar a escravidão das motivações e desejos do coração. Depois dessa experiência, você ainda lutará contra as motivações do antigo coração e ainda desejará as coisas gostosas da vida. Mas terá uma nova consciência por meio do Espírito de Deus e de Cristo habitando em seu coração, e poderá fazer escolhas segundo a verdade e a bondade de Deus. Não haverá mais necessidade de fingir o que você não é nem de ser o que não quer ser, mas haverá, nas palavra da Bíblia, “um novo ser criado à imagem do Filho de Deus”. A comida e o vinho que ele serve, além de gostosos na boca, alegram a alma.

O problema dos prazeres instantâneos não é simples e não poderia ser reduzido, aqui, mas não será de difícil resolução, pois Deus já fez toda a parte complexa. Esta é uma introdução. Se você, no entanto, percebeu aonde estamos e aonde queremos chegar, a Capelania do Mackenzie tem pessoas preparadas para ligar com os aspectos espirituais, teológicos, psicológicos e físicos do problema. Procure um dos capelães. Não haverá juízo precipitado, mas ajuda verdadeira.

Wadislau Martins Gomes
Pastor presbiteriano (jubilado), autor de diversos livros, tradutor e conferencista. Desenvolve estudos e ministério na área do aconselhamento pastoral desde 1973. É professor visitante do Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper.



[1] Eclesiastes 11.9-10.
[2] The Journal of Biblical Counseling • Volume 16 • Number 3 • Spring 1998 23

segunda-feira, fevereiro 01, 2016

O QUE DIZER SOBRE O LOUVOR?


De passagem por mídias virtuais, vi que alguém falava de um tradicional hino de louvor do qual gosto muito. Parei um pouco para ver e ouvir o vídeo. O pregador usava o hino Grandioso és tu (melodia sueca, letra de Carl Gustav Berg, 1885) para exemplificar o mau uso do louvor. Em sua arenga, ele ia, mais ou menos, assim: “Não é meu preferido ... não tenho nada contra ... vejo os céus (estrelas, raios e trovões) e louvo a Deus. Até então, tudo certo. Deus está aí, Então, vem o ‘E quando, enfim, eu for ao céu subindo’ – aí, já não é Deus, mas eu, sendo louvado!” O homem sequer estava errado, pois para errar teria de estar certo na proposta inicial. Ele estava longe de conhecer a Palavra e o hino, cujo verso final diz: “adorarei a quem por mim mostrou tão grande amor”.
Como meia bobagem basta, fui cantar noutra freguesia. Já ouvi e sofri opiniões sobre letras de cânticos tais como “com glórias coroai”, “coroamos a ti, Senhor”, e outros, à opinada de que “o maior coroa o menor”. Sobre hinos que utilizam figuras bíblicas também há nãos-nãos legalistas, por exemplo, “Era seu nome Barnabé”. Além desses, há ruídos e choros contra versos como “tu és fiel, Senhor, fiel a mim”, e um sem número de outros. Todas essas críticas mal feitas deixam de lado o fato de que o uso do termo coroa tem muitos significados, como é o caso de Paulo, dizendo que os filipenses seriam sua “alegria e coroa”. Os salmos estão repletos de cantos de memória dos grandes feitos de Deus na história. A Bíblia está permeada de cantos sobre feitos de homens a serviço de Deus, de cantos sobre experiências de homens com Deus, como é o caso da fidelidade de Deus “à casa de Israel”, e de bendição de pessoas, tal como o Magnificat de Maria.

Críticas são boas quando decorrem de boa hermenêutica da Palavra aplicada a uma boa hermenêutica do texto e das coisas. Juízos poderão ser feitos, por exemplo, sobre a verdade, a propriedade e a beleza do louvor — isso, quando houver conhecimento, sabedoria, prudência e discernimento para tanto — mas jamais baseados em parecer pessoal sem base e tolo.

Em Efésios 1.3-14, Paulo fornece um arcabouço teológico que nos permite estabelecer que o nosso louvor a Deus é tudo o que retrata sua glória a nós concedida, pela graça, em Jesus Cristo, como diz: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo ... para louvor da glória de sua graça” (Ef 1.3,6).

1a. Bênção: o louvor pela escolha para a adoção em Cristo (vv. 1-6)Louvar significa atribuir valor a o que ou a quem de direito. Louvamos princípios de valor, tais como honra, comportamentos, consciência pura, etc. Louvamos coisas a que apreciamos. Louvor supremo, contudo, somente pode ser dado a Deus o doador de nossa herança.
Nossas perspectivas de Deus, do ser humano, e do mundo, sofrem, pelo menos, três desvios de visão. Primeiro, por causa da queda do pecado, confundimos luz com trevas; segundo, o ser humano finito, nem mesmo antes do pecado, pode considerar o infinito de Deus; e, terceiro, por causa do pecado, temos a tendência de adorar a Deus à nossa maneira, como fez Caim. Paulo pede a Deus que sejamos diferentes disso: “para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele”. Ele chama as bênçãos de Deus de revelação do “mistério de sua vontade”.

Nesse mistério infinito Deus nos revela que somos predestinados. A confusão e o alarido do louvor de hoje são provocados por um falso entendimento do Ser de Deus e do exercício de sua vontade. Ninguém louvará a Deus se não estiver certo de que ele é o princípio e o fim de todo propósito, e que ele nos escolheu antes da fundação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis. Deus não é homem, e sua vontade não é paralela a do ser humano. Antes, nossa vontade está circunscrita a de Deus. De uma maneira, Deus não nos criou dentro do círculo do seu ser, pois ele é transcendente; de outra, ele penetrou o circulo de sua criação por meio da obra de seu Filho “de os tempos eternos”, portanto ele é imanente – o Deus de longe e de perto. Podemos, assim, dizer que Deus habita em um “círculo” infinito que compreende o nosso círculo finito. Por sua vontade fomos criados, por sua vontade fomos escolhidos, predestinados. O repúdio dessa escolha, nega a nossa crença no que Deus revela sobre si mesmo em sua Palavra.

Em outras palavras, Deus não é louvado quando a vida do que pretende louvar não reconhece sua grandeza nem busca a santificação e a irrepreensibilidade do caráter de Deus, em Cristo. Isso implica que Deus não é também louvado quando sua escolha é substituída por uma impossível salvação baseada na escolha humana. Especialmente, fomos chamados para participar do círculo dos filhos de Deus. Fomos predestinados para adoção em Cristo, “para o louvor da glória de sua graça”. A adoção implica em que tudo o que o Senhor Jesus Cristo é para o Pai é-nos conferido pelo pacto eterno. Desse modo, o verdadeiro louvor é prestado por filhos de Deus. Louvar é atribuir a Deus o valor de ser ele O QUE É. Louvar é atribuir a Deus a bondade, misericórdia e fidelidade com que fomos agraciados em todas as bênçãos “nos lugares celestiais” em Cristo.

2 a. Bênção: o louvor pela redenção para manifestação de sua glória (vv. 6-10) — O verdadeiro louvor é sacrifical, isto é, ele não é gratuito. É nascido do sacrifício de Cristo e demanda uma vida sacrifical, de deposição de tudo o que temos e somos. O louvor é fruto de lábios que confessam o nome de Jesus (Hb 13.15). Sacrifícios de louvor significam um amor total a Quem nos amou primeiro. Por isso mesmo, o Filho de Deus, Deus Homem e Homem Deus, é chamado de o Amado.

Por amor, ele nos resgatou para a santificação, tirando-nos de uma esfera de morte para uma esfera de vida. Ele nos redimiu com seu sangue purificador, perdoando os nossos pecados. Tudo isso, diz Paulo, “segundo a riqueza da sua graça” derramada sobre nós em “abundantemente ... sobre nós em toda a sabedoria e prudência”. Deus nos desvendou o mistério da sua vontade conforme segundo o seu pacto proposto em Cristo de convergir nele, no ápice dos tempos “todas as coisas, tanto as do céu como as da terra”.

É significante lembrar que estar “em Cristo” — “nas regiões celestiais em Cristo” e ser “herança” dele e para ele — requer um louvor coerente. O louvor verdadeiro converge em Cristo, em sua doutrina, e não em sua expressão. Nenhum louvor é neutro, isto é, não é obra de arte sem obrigação com linhas de pensamentos culturais, artísticos e daí em diante. Todo louvor proclama uma glória, todo louvor implica uma doutrina, quer sem Deus quer pretextando Deus — o falso louvor proclama a glória do mundo quando rouba dele as estratégias de mercado, as flutuações da moda, etc. Há um só louvor verdadeiro, e este é a expressão da beleza da glória, ou reflexo do caráter, de Deus “na face de Cristo” (cf 2Co 4.6).

O louvor da glória de Deus em Cristo consiste em amá-lo e em amar os que são seus, de tal modo que nenhuma outra paixão, êxtase, regra, e gosto tomem o seu lugar como círculo e centro da vida. Louvar significa amá-lo com extrema gratidão pela redenção, com profunda contrição diante do alto preço de sangue da remissão, e com genuína alegria.

3a. Bênção: o louvor pelo Penhor da esperança eterna (vv. 11-14) — “Deus busca adoradores”, disse Jesus à mulher samaritana. Certamente, ele não os busca porque tenha necessidade, mas porque nós nos realizamos na adoração. Adorar a Deus é comungar sua pessoalidade e derivar dela, em Cristo, a essência de quem somos. Por decorrência, quem louva a Deus em humilde adoração, alcança as alturas de Deus e atinge as profundezas do próprio ser.
Fomos feitos herança, predestinados para usufruir as abundantes bênçãos celestiais segundo a vontade do Deus trino. Somos herdeiros e herança do pacto trinitário para sermos “para o louvor de sua glória”. Isso fala de uma vida de louvor, de um perene louvor no encanto de saber que somos dele e que ele é nosso, e de uma viva esperança. Esperança de que o Senhor Jesus, que, em nosso lugar, encarnou, viveu em obediência, morreu, ressuscitou e ascendeu aos céus, de lá virá fisicamente para nos buscar. Por enquanto, ele habita entre nós e em nós, em seu Espírito. Por ele ouvimos a Palavra, provamos a fé e o arrependimento, fomos regenerados, fomos selados com penhor da nossa herança. Pelo Espírito de Cristo temos comunhão com Deus e com a igreja de Cristo. Pelo Espírito que procede do Pai e do Filho temos a esperança do regate dos herdeiros para a vida eterna. Tudo isso, “em louvor da sua glória”.

Quando alguém louva ao Senhor, deve estar consciente de que não presta culto gratuito (“preço de sangue ele pagou”) nem pretende conseguir coisas caras (“ouro e prata não almejo”). Tudo vem de Deus que já nos concedeu todas as bênçãos necessárias à vida e à piedade (2Pd 1.3). Só resta, ao crente, cantar com o coração e com os lábios: “Quão grande és tu” nas obras de sua criação feitas em Cristo, “dele, por meio dele e para ele”, na obra da redenção em Cristo, na providência para a vida que é agora provida pelo Espírito, no lar, na igreja, e no mundo, na esperança de adorá-lo em presença, corpo e alma em perfeita glória diante de sua glória imarcescível!

Na sequência desta escritura testamental do Evangelho, Paulo rompe em uma oração de prece em que existe uma ênfase no louvor individual e coletivo e congregacional:

Por isso, também eu, tendo ouvido a fé que há entre vós no Senhor Jesus e o amor para com todos os santos não cesso de dar graças por vós, fazendo menção de vós nas minhas orações, para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele, iluminados os olhos do vosso coração, para saberdes qual é a esperança do seu chamamento, qual a riqueza da glória da sua herança nos santos e qual a suprema grandeza do seu poder para com os que cremos, segundo a eficácia da força do seu poder (Efésios 1.15-19).


Wadislau Martins Gomes

sexta-feira, janeiro 29, 2016

ATÉ LÁ, MEU IRMÃO

Emílio fez-me uma visita no hospital. Ali, prostrado, magro “como poste de avenida” (obrigado, Paulo Bonfim), com dores de infecção em vértebras fraturadas e no psoas, recebi-o como quem recebe um outono com gosto de fruta madura. Em um momento, entrou a enfermeira, e perguntou: “Seu irmão?” Emílio, de pronto e num sorriso, moveu o olhar dela para mim, como era seu jeito, e respondeu: “De duas maneiras”.

Se pudesse, agora, eu lhe diria: “Emílio, meu irmão de todas as maneiras, a notícia de sua morte doeu em mim mais do que as dores na carne. Quando Davi contou, foi um murro do estômago. Acovardei-me. Não consegui falar com a Regina nem com Emílio Neto nem com Tércio nem com Catarina. Fiquei paralisado ante a dor da dor. Não pude ir ao seu enterro, não pude chorar com “seu” Emílio e dona Trindade. Não ouvi nem disse uma última palavra.”

Hoje, no calor do verão, Emílio veio aquecer meu coração. Daniel mostrou-me uma nota do Emílio Neto, um escrito sobre primaveras e outonos, norte e sul, árvores secas e folhas coloridas.
Soltou-se o nó da garganta. Vai, aqui, para a prima e para os primos, e para meus filhos, filha, e netos, para os irmãos e amigos, uma reprodução do texto do Emílio, como um presente “de duas maneiras”, de coração a coração. Sou velho, saindo da cena das estações, à espera da vida eterna.

NO OUTONO DA VIDA
2008 http://emiliogarofalo.blogspot.com.br/2008/09/no-outono-da-vida.html?spref=fb

Prefiro ver e sentir o Outono ao norte do equador. Lá como cá, as folhas caem no Outono, pois conhecem o tempo e as estações e “sabem” que sua hora chegou e que devem deixar a vida para que outras folhas ocupem seu lugar. Mas, não se entristecem por isso; ao contrário, engalanam-se, explodem numa profusão de cores que só nesse tempo se vê. Cores inimagináveis ao sul do Equador.

Quando o Outono chega no norte é Primavera aqui (E a Primavera ao sul é mais bonita que a Primavera do norte). Mas, sul ou norte, as folhas caem no Outono. O vento e a chuva, elementos do tempo e do tempo ajudam nessa queda. Mas no norte, quando o espectro de cores se completa, o vento em reverência, antes de derrubá-las de vez, faz com que bailem coloridas no ar, se misturem no céu, como um festival de bandeiras em feriado nacional (licença, Orestes Barbosa, Silvio Caldas).

E a chuva as faz brilhar, mesmo no chão, antes que se conclua sua “saída de cena” e se inicie o processo de transformação em alimento para a flora.
Quando chega o Outono de nossa vida, acompanha-o a angustiante questão sobre como “sair de cena”, uma verdadeira “não opção” já decidida ao nascer. Como fazê-lo?
Com discrição, como as folhas fazem ao sul, à espera de ressurreição na primavera? Ou revestir a alma do turbilhão de alegria que as folhas do norte escolhem sempre, mesmo sabendo que não voltarão e que novas folhas surgirão nos galhos de onde saíram?
Fico pensando que essas folhas que se colorem com o anúncio de seu fim, que festejam o seu próprio fim, acreditam em vida eterna.

Até lá, meu irmão de duas maneiras.

Wadislau Martins Gomes

quarta-feira, janeiro 27, 2016

FOI PERGUNTADO POR QUE NÃO FALÁVAMOS SOBRE OS DONS


(Adaptado do livro Sal da terra em terras dos brasis. Brasília, Ed. Monergismo, 2015.)   
 
Um jovem, na igreja, queixou-se: “Eu tenho o dom de pregador, mas ninguém me escuta!” O fato de o moço entender o dom como sendo talento dele pode motivar muita confusão. Ele se esquecia de que é Deus quem dota e quem confere poder aos que obedecem a sua vontade na prática da bênção com que foram dotados. O dom é matéria do Deus trino e as igrejas foram, são e sempre serão aperfeiçoadas segundo o divino querer.

O registro bíblico dos dons espirituais descreve comportamentos que promovem o fruto do Espírito no indivíduo e a cooperação no corpo de Cristo para realização de sua obra – e não se presta a designar poderes pessoais nem a promover vaidades individuais nem a causar “espiritualidades”. Ninguém tem um dom de governo para dominar sobre outros ou um dom de misericórdia para causar dependência nas pessoas ou um dom de pregador para que outros o saúdem e obedeçam. Antes cada qual usa seu dom para espelhar a imagem de Cristo para que se curvem ao seu senhorio, para que dependam de sua misericórdia, para que sigam a sua voz, e assim em diante.

Os diversos dons mencionados em cinco listas no Novo Testamento não são definitivos, mas descritivos; não são exaustivos, mas exemplares. Principalmente, não são desenvolvimentos de características pessoais autônomas, antes, descrevem o caráter de Cristo e sua virtude a nós comunicada pela prática da Palavra de Deus. O Messias é o Deus Homem, manifestação plena do caráter de Deus imputado aos membros da sua igreja, para conduzir-nos “à estatura do varão perfeito”.

Exegeses erradas e má aplicação hermenêutica têm impedido a igreja de usufruir os dons espirituais. Além do uso errado em função de jogos de poder e de vaidades teológicas, temos dificuldades com indagações honestas e conscientes:
                Houve cessação de alguns dons?
                Há diferença entre dons e talentos?
                Como descobrir qual seja o dom de alguém?

Os problemas que existem para responder adequadamente a essas perguntas, e a outras mais, estão aí por causa de uma falta de coesão dos conceitos bíblicos. Elas não podem ser respondidas isoladamente. Uma forma compreensiva de abordar o tema é fornecida por Vern Poythress, a qual tomo a liberdade de adaptar ao nosso tratamento. Em vez de aceitar os termos de muito do que se discute sobre os dons, Poythress faz um paralelo entre os ministérios de Cristo, de profeta, sacerdote e rei (veja minha abordagem sobre o assunto em Coração e sexualidade, Brasília, Refúgio, 1999, pp. 61-72), e as concessões do Espírito Santo aos ministros da Nova Aliança.

Todos os dons mencionados em Romanos 12, 1Coríntios 12 e Efésios 4 podem ser classificados de maneira geral como proféticos, reais ou sacerdotais. Por exemplo, dons de sabedoria e de conhecimento são proféticos, enquanto que dons de administração, milagres, poderes e curas são reais. Mas alguns dons poderão ser classificados em mais de uma maneira. Por exemplo, curas poderão ser também dons sacerdotais, uma vez que está aí o exercício de misericórdia para com a pessoa sendo curada. Finalmente, funções proféticas, reais e sacerdotais poderão ser expandidas em perspectivas sobre a totalidade da vida do povo de Deus, de maneira que não devemos nos perturbar com aparentes sobreposições. Essa classificação, não obstante, é útil para lembrar-nos de nossa relação com a obra de Cristo e de que nenhuma das listas de dons no Novo Testamento é exaustiva (Poythress, Vern. What Are Spiritual Gifts? Phillipsburg, NJ, Presbyterian and Reformed, 2010, p. 13).

Poythress apresenta três perspectivas dos dons distribuídas em dois andares de uma pirâmide.

1. No andar superior, de autoridade divina, estão dois níveis:
(a) o primeiro, messiânico, é o de Jesus Cristo;
(b) o segundo, apostólico, é o dos homens que ele escolheu para o fundamento da igreja e, alguns, para o registro inspirado do Novo Testamento.
2. No andar de baixo estão níveis sob a autoridade divina:
(a) o primeiro (terceiro no quadro geral) é o nível especial de líderes ordenados com imposição de mãos, para a pregação e ensino da Palavra de modo público e formal, e para o pastoreio do rebanho.
(b) o segundo (quarto) é o nível geral em que estão incluídos todos os crentes, sem distinção de posição eclesiástica, para a realização de todos os atos do sacerdócio universal, para a evangelização (pregação e ensino da Palavra a pessoas e grupos) e para os serviços da igreja e na comunidade.

O estudo aprofundado e expandido está em http://frame-poythress.org/modern-spiritual-gifts-as-analogous-to-apostolic-gifts-affirming-extraordinary-works-of-the-spirit-within-cessationist-theology/ .

O Senhor Jesus é o proprietário dos sete Espíritos – como descrito por Isaías: “Repousará sobre ele o Espírito do Senhor, o Espírito de sabedoria e de entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de conhecimento e de temor do Senhor” (Is 11.12) – e o doador dos dons espirituais – por meio do exercício dos dons crescemos até a sua própria maturidade. Parece-me que os dons são os laços com que Deus ata os fios da graça aos fios da fé para a confecção do manto da justiça de Cristo com que ele vestirá a igreja. Uma urdidura de dar e receber (graça e fé) em que cada dom é exercitado e partilhado até que todos alcancemos a maturidade de profetas, sacerdotes e reis com Cristo.

Considero que os dons, na Bíblia, são sejam definitivos nem exaustivos, mas descritivos. Desse modo, os dons seguem a linha descritiva: ninguém tem o “dom da beleza” senão a de Cristo, do “louvor levita atual” senão o que é concedido a todos, o “dom da humildade”, senão o que a todos é ordenado. Também o dom não é concedido para lucro ou deleite pessoal, mas para abençoar a outros.

Os dons descritos na Bíblia não têm, obrigatoriamente, um caráter de continuidade nem sofrem todos uma força de cessação. Muitos dos dons que Jesus Cristo exerceu, foram utilizados particularmente e de maneira restrita para manifestação da sua vida terrena e como sinais e referendos do seu ministério; muitos outros foram concedidos aos salvos para uso perene (oração, poder e destemor para testemunhar). Da mesma forma, ele concedeu dons aos apóstolos para realizarem certos atos também restritos à manifestação do poder do evangelho em sua fase de fundamentação, e outros que continuaram a ser utilizados depois (ordenação, disciplina etc.). Ele mesmo também deu dons perenes especiais a alguns homens vocacionados para o ministério da Palavra no cuidado e ensino do seu rebanho (iluminação do entendimento da Palavra para aplicar à própria vida e para pregar e convencer, administração, etc). E ele mesmo, no Espírito, concedeu dons perenes a todos os crentes (sacerdócio universal) para o crescimento espiritual e para o serviço e crescimento do corpo de Cristo (todos os dons implicam o uso e usufruto dos mandamentos e promessas de Deus).

Esclarecendo, talentos são capacidades individuais ou corporativas distribuídas a todos os homens pela graça universal. Dons espirituais são capacidades sobrenaturalmente distribuídas aos regenerados mediante os quais o indivíduo e a igreja recebem poder para exercer antigos e novos talentos.
Essa visão dos dons, creio, fornece uma compreensão do assunto que poderá responder à maior parte das indagações a respeito do tema, restando muita coisa a ser tratada sobre alguns dons particulares.

Um ponto extremamente importante é a definição do caráter mutual dos dons (dar e receber). Ninguém tem um dom para si mesmo, mas para compartilhar com os membros do corpo de Cristo, recebendo os dons dos demais. Dessa maneira, cada um ministrando o próprio dom e exercitando os dons dos outros, todos crescem até a estatura de Cristo e o cumprimento da Grande Comissão.

Wadislau Martins Gomes

segunda-feira, janeiro 25, 2016

O JARDIM A MINHA VOLTA


Quando vejo o jardim a minha volta, os manacás e as quaresmeiras em flor, a floresta que ano passado foi queimada, hoje renovando e quase verde, tenho de exclamar: Quão variadas são as tuas obras, Senhor! Daí, penso nas diferentes pessoas que fazem parte de minha vida; as que ajudaram em minha formação por meio de informação ou exemplo, semeando idéias ou exercendo mentoria; as que de alguma forma ajudamos a moldar o caráter ao mesmo tempo em que elas foram e são instrumentos para cunhar, esculpir e polir o nosso. Quando tudo isso me vem à mente, tenho de constatar igualmente a variedade em meio à singularidade da obra de Deus no ambiente em que ele nos inseriu. Quão variada é a tua obra, Senhor (Sl 104.24) – minha alma o sabe muito bem!

Mais um fim de semana com a visita de queridos irmãos amigos cujas vidas se uniram a nossa; sou privilegiada por observar a ação de Deus na vida de cada um, mesmo que humilhada por ver o quanto ainda falta aprender da vida, apesar de já ser “madura” há muito tempo...

Daí, lembro-me das discussões recentes de irmãos sobre posições doutrinárias e a dificuldade de alguns aceitarem a variedade no grande jardim de Deus, a supremacia do amor de Deus que permanece após tudo mais passar (1Co 13.8-10). Penso nas árvores majestosas, nas pequenas árvores das quais já podemos colher doces frutos, dos arbustos que vicejam sozinhos ou em fileira de cercas vivas, das floreiras perfumadas e plantas rasteiras que guardam a umidade do solo enquanto mantém a terra no lugar e enfeitam o chão. Deus nos colocou a todos num mesmo jardim—não mais o Éden, mas o jardim do planeta terra, para o cultivar e guardar: cada qual segundo sua espécie, segundo sua tarefa, conforme o querer do Único Jardineiro Perfeito. Penso no vicejar da vida de amigos de todas as tribos, povos e raças, de toda a multiforme variedade em que cada um foi plantado pelo Senhor:

— Advogadas que trabalham para refletir o sol da justiça nos relacionamentos, nas questões e contendas e nos acordos;

— Boleiras, bancárias e bailarinas que somam, acrescentam, equilibram e multiplicam sabores e valores;

         — Cozinheiras de acampamentos e consagradas chefs que não se esquecem de alimentar a alma com a Palavra;

         — Desenhistas e dentistas que usam os detalhes para glorificar a Deus e dar bem-estar a seu povo

         — Educadoras, escritoras, enfermeiras, engenheiras, escriturárias, e estagiárias, todas com tarefa de comunicar, construir, consolidar graça e verdade no que fazem;

         — Financistas e festeiras, filósofas e fiandeiras, tecem sonhos e fios que amarram, fios que se partem, fios que firmam – daí em diante, podemos passar por todo um alfabeto de atividades e condições da existência humana – nós mulheres cristãs estamos inseridas em um planeta onde, “plantadas na casa do Senhor, mesmo em vindo a seca, vicejamos”.

Saindo da sombra verde do jardim, lembro de outra metáfora para nossa vida: a simultaneidade da sabedoria e da simplicidade. Provérbios 1.2-7 fornece o propósito (que tomo humilde e proporcionalmente para mim) de se escrever:

Para aprender a sabedoria e o ensino; para entender as palavras de inteligência; para obter o ensino do bom proceder, a justiça, o juízo e a eqüidade; para dar aos simples prudência e aos jovens, conhecimento e bom siso. Ouça o sábio e cresça em prudência; e o instruído adquira habilidade para entender provérbios e parábolas, as palavras e enigmas dos sábios. O temor do SENHOR é o princípio do saber.

Ao enviar seus discípulos a um mundo em que lobos vorazes espreitam as ovelhas do seu rebanho, Jesus disse:

Eis que eu vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, portanto, prudentes como as serpentes e símplices como as pombas. E acautelai-vos dos homens; porque vos entregarão aos tribunais e vos açoitarão nas suas sinagogas; por minha causa sereis levados à presença de governadores e de reis, para lhes servir de testemunho, a eles e aos gentios. E, quando vos entregarem, não cuideis em como ou o que haveis de falar, porque, naquela hora, vos será concedido o que haveis de dizer, visto que não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso Pai é quem fala em vós (Mt 10.16-20).

Está faltando muito desse equilíbrio de simplicidade e sagacidade em nossa vida cotidiana—quanto mais nos grandes momentos decisivos que enfrentamos. O apóstolo Paulo lembrava isso no fim de seu tratado teológico-doutrinário na carta aos Romanos:

Rogo-vos, irmãos, que noteis bem aqueles que provocam divisões e escândalos, em desacordo com a doutrina que aprendestes; afastai-vos deles, porque esses tais não servem a Cristo, nosso Senhor, e sim a seu próprio ventre; e, com suaves palavras e lisonjas, enganam o coração dos incautos. Pois a vossa obediência é conhecida por todos; por isso, me alegro a vosso respeito; e quero que sejais sábios para o bem e símplices para o mal. E o Deus da paz, em breve, esmagará debaixo dos vossos pés a Satanás. A graça de nosso Senhor Jesus seja convosco (Rm 16.17-20).

Percebe que esse equilíbrio de simplicidade e sabedoria está novamente ligado a uma luta entre o bem e o mal, a verdade e o erro, a graça e as desavenças? Na segunda carta aos Coríntios (2Co 11.3), ao defender seu ensino, Paulo lembra o engano da Serpente no Éden versus a simplicidade e pureza que devemos a Cristo:

Mas receio que, assim como a serpente enganou a Eva com a sua astúcia, assim também seja corrompida a vossa mente e se aparte da simplicidade e pureza devidas a Cristo.

Voltamos a um jardim, a questões de mente e coração, que podem ser cultivados e guardados ou afastados da verdade! O escritor bíblico compara essa simplicidade ao pão sem fermento que se come por ocasião da Páscoa:

Não é boa a vossa jactância. Não sabeis que um pouco de fermento leveda a massa toda? Lançai fora o velho fermento, para que sejais nova massa, como sois, de fato, sem fermento. Pois também Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado. Por isso, celebremos a festa não com o velho fermento, nem com o fermento da maldade e da malícia, e sim com os asmos da sinceridade e da verdade (1 Co 5.6-8).

O tema da sinceridade está sempre ligado à santidade e à verdade (por exemplo, 2Co 1.12; 2Co 2.17; 2Co 8.8; Fp 1.10, Fp 2.15). Nosso cultivo e nossa preservação do jardim não existem sem a santidade simples que resulta da ação da Palavra de Deus em nossa vida. O salmista já expressava isso que o autor de Gênesis descreveu desde os primórdios: “A revelação das tuas palavras esclarece e dá entendimento aos simples” (Sl 119.130). É simples assim. É assim complicada a multiforme, variada vida que vivemos? O autor de Hebreus desafia a cada cristão de todas as eras, porque temos um Sumo Sacerdote fiel:

aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado de má consciência e lavado o corpo com água pura. Guardemos firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel. Consideremo-nos também uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras.

Está aí o desafio. Por mais variada e complexa que seja nossa vida, voltemos à simplicidade do Evangelho. Desafio meus amigos, minhas amigas a guardar, considerar e nos estimular!

Elizabeth Gomes

quinta-feira, janeiro 21, 2016

A RESPEITO DA NOTA PÚBLICA SOBRE O DEBATE ENTRE CALVINISTAS E ARMINIANOS


Paulo repreendeu a Pedro, face a face, quando este se fez reprovável por abraçar a heresia dos judaizantes. Com coragem, o fez sem estabelecer juízo sobre sua salvação. Com relação a Himeneu e Alexandre, blasfemos, Paulo os entregou a Satanás, certamente segundo o preceito de 1Co 5.5, de preservação da alma. Ninguém poderá proferir juízo sobre a salvação de quem professa a Cristo como Senhor e Salvador, conforme a Escritura – tal como dito por Jesus, na parábola do joio e do trigo (Mt 13.18-27). Nesse sentido, o juízo será herético.

A Nota Pública em nada abandona posições nem enseja alianças nem pede que não haja debates, mas concorda em rogar que cessem as contendas carnais. Eu afirmo minha fidelidade à Bíblia e entendo que a Reforma protestante tem o calvinismo como companheiro dessa fidelidade. Não aceito o arminianismo, mas não me atrevo a proferir juízo sobre a salvação de seus adeptos. Da mesma forma, não aceito a heresia do falso testemunho e das discussões carnais que negam a fidelidade a Cristo e à Escritura.

Repito, aqui, editado, uma publicação de 2010.

Depois de um sonho em que eu me defendia de um intruso em minha casa, fiquei com aquela peça do Chico Buarque na cabeça: “Hoje eu sonhei contigo e caí da cama..." (“Não sonho mais”). Mais tarde, como o cheiro da feijoada do João Ratão em o Casamento da Dona Baratinha, o som foi entrando pelos meus ouvidos, tomou conta da atitude, tomou conta da mente, tomou conta de tudo. Acordei com esse sentimento enroscado na idéia.. Veja só! Eu velho, a esta altura já devendo ser bom de casa e de rua, ainda sonho com sentimentos de injustiças covardes, que só me pegam quando estou dormindo. Essa é de matar, não é?

Exatamente porque é de matar, é que temos de lidar com a ira pecaminosa. É isso aí: Ira mesmo! Certo que há um tipo de ira que tem o seu lugar. A ira está para a dor assim como a misericórdia está para o amor. Trocando em miúdos, a ira é boa e louvável enquanto é um sentimento de que alguma coisa está errada (“Irai-vos e não pequeis” – o negócio é não pecar, pois senão, é o diabo; cf. Ef 4.26-27). É como a dor, esse incômodo que impede que eu vá além dos meus limites e me fira, mas que, quando rompe seu próprio limiar, dói mais do que dente do siso encavalado. Quando o diabo pega, a ira vira amargura e caruncha a cabeça, ressentida, como cisco no olho que mesmo depois de tirado ainda raspa. A solução cristã é sobrepor o desafeto com a redenção que há em Cristo Jesus. Há uns dois ou três versículos, na Bíblia, que, se você se lembrar deles na hora agá, até ajuda: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.1); “Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hb 12.14); e “amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5.44). A questão é como fazer para amar aquelas pessoas que claramente não permitem ser amadas? Como amar meu inimigo? Parece pesadelo! Mas, não é para desesperar. Se Deus despertou a mim, irado pecador, ele poderá acordar a qualquer um. E ele quer. Por isso mesmo, juntamente com suas promessas, ele fornece mandamentos; aquelas motivam o coração e estes nos capacitam a mudar o comportamento.

Pense um pouco comigo sobre dois mandamentos do Decálogo (usei o termo, agora, só para ver se você não estava cochilando – são os Dez Mandamentos, ô): o sexto mandamento, “Não matarás”, e o oitavo, “Não furtarás” (Dt 5. 17, 19). O primeiro é mais simples. Entendendo corretamente as ordens bíblicas aparentemente antagônicas, como de não matar e de matar, o bom intérprete conclui que tem mais coisa aí. Com efeito, o termo hebraico usado no texto é ratsah, que tem o sentido de “tomar nas mãos, voluntariamente, o direito de tirar a vida ao semelhante”, mais do que o sentido de homicídio acidental ou de legítima defesa (pessoal ou institucional, como em caso de guerra ou de pena capital). Ora, esse cara que de quem gratuitamente possa não gostar, ou que me ataca, é meu semelhante, criado à imagem de Deus, a quem não tenho o direito de roubar a vida. A promessa do Senhor é que a vida procede de sua graça, e que o respeito à vida do outro pressupõe o valor da minha própria vida. Não poderei matar aquele a quem Deus criou assim como não poderei matar a imagem de Deus plasmada em suas criaturas. Não poderei matar seu caráter por meio do ódio ou da maledicência (“Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso; pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê”, 1Jo 4.20; “Todo aquele que odeia a seu irmão é assassino”, 1Jo 3.15; “todo aquele que sem motivo se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento”, Mt 5.22).

O segundo, o oitavo mandamento, é um pouco mais complicado. “Não furtarás”, não diz respeito à simples apropriação indébita (ainda que esse crime seja igualmente condenado por Deus), mas está mais próximo do sentido de sequestro. A melhor ilustração disso é o caso de José, sequestrado e vendido por seus irmãos em função de lucro pessoal. O Deus que nos libertou da escravidão do ambiente decaído em que vivemos, da esfera de morte à espreita dentro de casa e nas ruas, e que nos remiu do cativeiro interior que nos devora de desejos de prazer e de poder, ele mesmo não quer que o homem criado para a liberdade se torne escravo de homens. Como é que eu, na mesma terra e sujeito aos mesmos troncos e barrancos do caminho, posso pensar em controlar o homem que Deus criou para sujeitar, cultivar e guardar as suas obras? Quantas vezes, eu sequestro o bom nome de alguém e só devolvo se o resgate for bastante para elevar meu nome! Isso, e mais o fato de que me deixo levar pela competição para ver quem é mais desgraçado.

Há algo mais importante do que toda a importância que essas coisas têm. É o fato de que as razões de Deus para as promessas que mexem com o homem interior e os mandamentos que capacitam a operar no ambiente externo têm maior significância: Deus é gracioso e deseja que o nosso relacionamento com ele seja de íntimo conhecimento da verdade em amor. Seus mandamentos, ainda que contenham forte ênfase moral, não são legalistas, mas éticos; e suas promessas não são vazias, mas plenas de cumprimento. É isso que está escrito: “Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus e praticamos os seus mandamentos” (1Jo 5.2); e

Visto como, pelo seu divino poder, nos têm sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade, pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude, pelas quais nos têm sido doadas as suas preciosas e mui grandes promessas, para que por elas vos torneis co-participantes da natureza divina, livrando-vos da corrupção das paixões que há no mundo (2Pedro 1.3-4).

Exatamente aqui é que está a casa de marimbondos. Com tais princípios motivadores por dentro e tais disposições por fora, como é que fica nossa vida em um mundo não apenas decaído por causa do pecado, mas ainda averso às virtudes cristãs, inimigo de Deus e dos homens (pois a advertência vale para gregos e troianos: “Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos”, Gl 5.15)? Como crer nas promessas e obedecer aos mandamentos de Deus, com tanto zumbido de ameaças por dentro e por fora?

Por um lado, há a apatia medrosa dos cristãos que deixam de exercer o seu papel profético e se acomodam à faina dos vespeiros à cata do mel de flores murchas que o século planta em cada esquina. Na poética bíblica, não experimentam a vida que recebemos do amor e da misericórdia de Deus:

Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; entre os quais também todos nós andamos outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos, por natureza, filhos da ira, como também os demais (Ef 2.1-3).

Por outro, há a dura realidade de que não é por que eu seja paranóico que não tenha gente me perseguindo. Também está escrito, nas palavras de Jesus: “No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33).

Como viver com um barulho desses? Olha a realidade prática de confiar ou não nas promessas de Deus e de obedecer ou não aos seus mandamentos. “Não matarás.” Assassinato é tão comum que ninguém mais liga. Não é que não ligue de ser assassinado. Afinal, o que é que você prefere: ser pobre e doente ou rico e com saúde? O caso é que picada de marimbondo no dedo dos outros tem gosto de mel. Furto de honra e assassinato de caráter corre à solta.Um mata o corpo com uma espada, outro com pó, outro ainda com idéias – contra Deus, pretextando piedade; outros mais, com a língua falada ou escrita. Onde fica a beleza pés dos que anunciam as boas novas? A vaidade do leque de pavão, em vez de servir de atrativo, apenas exibe a feiúra dos pés. A esperança vai cedendo lugar ao cinismo e, quando percebemos, já fizemos tanta cera em termos de quem somos e do que fazemos que só nos restará exibir o ferrão e entrar na festa.

“Não furtarás”. Grande parte das vezes, deixamo-nos sequestrar ou somos seqüestrados, e nos quedamos reféns de atos ou causas que nada têm a ver com a vida justa e boa. A coisa piora quando isso vira “virtude” do jogo eclesiástico. Hoje, sem projeto de sucesso pessoal ninguém vence, nem nas câmaras nem nos átrios; e a moçada segue os passos dos bem sucedidos, cantando: “Tropeça aqui, oi, cai acolá, mas depressa levanta e começa a cantar...” Somos sequestrados por figuras carismáticas sem caráter, líderes astutos, liderados matreiros, mentirosos anônimos, reveladores do pecado alheio, críticos de porta de igreja e tanto louvor mais. De arrependimento e santidade, pouco se fala. Uns caem e não se levantam, outros julgam e não querem ser julgados; a verdade é chamada de mentira e, a mentira, de verdade – e nós fingimos que ninguém falou conosco. Olha que tem filósofo andando com lanterna acesa à procura de honestidade. Eu sei, eu sei que sempre foi assim. Mas entre cristãos? Na igreja? Em que é que o mundo, que tem o direito de nos criticar (“Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros”, Jo 13.35), deverá crer: no testemunho de nossas palavras ou no de nossos atos? Certamente crerá na incongruência! Se os assassinatos de caráter e os sequestros da alma não derem uma parada, como é que prosseguiremos, convidando gente para vir a Cristo, a cabeça da igreja? O que é que convidamos o mundo para ver na igreja: nossa boca, nossas mãos, nossos pés e nossos olhos? Não se engane, o que falamos, fazemos, aonde vamos e o que consideramos – tudo procede das fontes do coração (cf. Pv 4.10-27).

Agora, neste início de ano, eu faço um voto: prometo que não sonho mais essas coisas; não irei mais para a cama depois de comer iras amargas e indigestas; vou sonhar com você sem cair da cama; sonhos bons, coloridos. E quando em meus sonhos eu for visitar os seus, irei desarmando, munido apenas do resgate que Jesus pagou ao Pai para que fôssemos um nele e com ele. Bênçãos.

Wadislau Martins Gomes