(Adaptado do livro Sal da terra em terras dos brasis. Brasília, Ed. Monergismo, 2015.)
Um jovem, na igreja, queixou-se: “Eu tenho o dom de
pregador, mas ninguém me escuta!” O fato de o moço entender o dom como sendo talento
dele pode motivar muita confusão. Ele se esquecia de que é Deus quem dota e
quem confere poder aos que obedecem a sua vontade na prática da bênção com que
foram dotados. O dom é matéria do Deus trino e as igrejas foram, são e sempre serão
aperfeiçoadas segundo o divino querer.
O registro bíblico dos dons espirituais descreve
comportamentos que promovem o fruto do Espírito no indivíduo e a cooperação no
corpo de Cristo para realização de sua obra – e não se presta a designar
poderes pessoais nem a promover vaidades individuais nem a causar
“espiritualidades”. Ninguém tem um dom de governo para dominar sobre outros ou
um dom de misericórdia para causar dependência nas pessoas ou um dom de
pregador para que outros o saúdem e obedeçam. Antes cada qual usa seu dom para
espelhar a imagem de Cristo para que se curvem ao seu senhorio, para que
dependam de sua misericórdia, para que sigam a sua voz, e assim em diante.
Os diversos dons mencionados em cinco listas no Novo
Testamento não são definitivos, mas descritivos; não são exaustivos, mas
exemplares. Principalmente, não são desenvolvimentos de características
pessoais autônomas, antes, descrevem o caráter de Cristo e sua virtude a nós
comunicada pela prática da Palavra de Deus. O Messias é o Deus Homem,
manifestação plena do caráter de Deus imputado aos membros da sua igreja, para
conduzir-nos “à estatura do varão perfeito”.
Exegeses erradas e má aplicação hermenêutica têm
impedido a igreja de usufruir os dons espirituais. Além do uso errado em função
de jogos de poder e de vaidades teológicas, temos dificuldades com indagações
honestas e conscientes:
Houve
cessação de alguns dons?
Há
diferença entre dons e talentos?
Como
descobrir qual seja o dom de alguém?
Os problemas que existem para
responder adequadamente a essas perguntas, e a outras mais, estão aí por causa
de uma falta de coesão dos conceitos bíblicos. Elas não podem ser respondidas
isoladamente. Uma forma compreensiva de abordar o tema é fornecida por Vern
Poythress, a qual tomo a liberdade de adaptar ao nosso tratamento. Em vez de
aceitar os termos de muito do que se discute sobre os dons, Poythress faz um
paralelo entre os ministérios de Cristo, de profeta,
sacerdote e rei (veja minha abordagem sobre o assunto em Coração e sexualidade, Brasília, Refúgio, 1999, pp. 61-72), e as
concessões do Espírito Santo aos ministros da Nova Aliança.
Todos os dons mencionados em Romanos 12,
1Coríntios 12 e Efésios 4 podem ser classificados de maneira geral como
proféticos, reais ou sacerdotais. Por exemplo, dons de sabedoria e de
conhecimento são proféticos, enquanto que dons de administração, milagres,
poderes e curas são reais. Mas alguns dons poderão ser classificados em mais de
uma maneira. Por exemplo, curas poderão ser também dons sacerdotais, uma vez
que está aí o exercício de misericórdia para com a pessoa sendo curada.
Finalmente, funções proféticas, reais e sacerdotais poderão ser expandidas em
perspectivas sobre a totalidade da vida do povo de Deus, de maneira que não
devemos nos perturbar com aparentes sobreposições. Essa classificação, não
obstante, é útil para lembrar-nos de nossa relação com a obra de Cristo e de
que nenhuma das listas de dons no Novo Testamento é exaustiva (Poythress, Vern.
What Are Spiritual Gifts? Phillipsburg, NJ, Presbyterian
and Reformed, 2010, p. 13).
Poythress apresenta três perspectivas dos dons
distribuídas em dois andares de uma pirâmide.
1. No andar superior, de autoridade divina,
estão dois níveis:
(a) o primeiro, messiânico, é o de Jesus
Cristo;
(b) o segundo, apostólico, é o dos homens
que ele escolheu para o fundamento da igreja e, alguns, para o registro
inspirado do Novo Testamento.
2. No andar de baixo estão níveis sob a
autoridade divina:
(a) o primeiro (terceiro no quadro geral) é
o nível especial de líderes ordenados com imposição de mãos, para a pregação e
ensino da Palavra de modo público e formal, e para o pastoreio do rebanho.
(b) o segundo (quarto) é o nível geral em
que estão incluídos todos os crentes, sem distinção de posição eclesiástica,
para a realização de todos os atos do sacerdócio universal, para a
evangelização (pregação e ensino da Palavra a pessoas e grupos) e para os
serviços da igreja e na comunidade.
O estudo aprofundado e expandido está em http://frame-poythress.org/modern-spiritual-gifts-as-analogous-to-apostolic-gifts-affirming-extraordinary-works-of-the-spirit-within-cessationist-theology/
.
O Senhor Jesus é o
proprietário dos sete Espíritos – como descrito por Isaías: “Repousará sobre
ele o Espírito do Senhor, o Espírito de sabedoria e de entendimento, o Espírito
de conselho e de fortaleza, o Espírito de conhecimento e de temor do Senhor”
(Is 11.12) – e o doador dos dons espirituais – por meio do exercício dos dons
crescemos até a sua própria maturidade. Parece-me que os dons são os laços com
que Deus ata os fios da graça aos fios da fé para a confecção do manto da
justiça de Cristo com que ele vestirá a igreja. Uma urdidura de dar e receber
(graça e fé) em que cada dom é exercitado e partilhado até que todos alcancemos
a maturidade de profetas, sacerdotes e reis com Cristo.
Considero que os
dons, na Bíblia, são sejam definitivos nem exaustivos, mas descritivos. Desse
modo, os dons seguem a linha descritiva: ninguém tem o “dom da beleza” senão a
de Cristo, do “louvor levita atual” senão o que é concedido a todos, o “dom da
humildade”, senão o que a todos é ordenado. Também o dom não é concedido para
lucro ou deleite pessoal, mas para abençoar a outros.
Os dons descritos
na Bíblia não têm, obrigatoriamente, um caráter de continuidade nem sofrem
todos uma força de cessação. Muitos dos dons que Jesus Cristo exerceu, foram utilizados
particularmente e de maneira restrita para manifestação da sua vida terrena e
como sinais e referendos do seu ministério; muitos outros foram concedidos aos
salvos para uso perene (oração, poder e destemor para testemunhar). Da mesma
forma, ele concedeu dons aos apóstolos para realizarem certos atos também
restritos à manifestação do poder do evangelho em sua fase de fundamentação, e
outros que continuaram a ser utilizados depois (ordenação, disciplina etc.).
Ele mesmo também deu dons perenes especiais a alguns homens vocacionados para o
ministério da Palavra no cuidado e ensino do seu rebanho (iluminação do
entendimento da Palavra para aplicar à própria vida e para pregar e convencer,
administração, etc). E ele mesmo, no Espírito, concedeu dons perenes a todos os
crentes (sacerdócio universal) para o crescimento espiritual e para o serviço e
crescimento do corpo de Cristo (todos os dons implicam o uso e usufruto dos
mandamentos e promessas de Deus).
Esclarecendo,
talentos são capacidades individuais ou corporativas distribuídas a todos os
homens pela graça universal. Dons espirituais são capacidades sobrenaturalmente
distribuídas aos regenerados mediante os quais o indivíduo e a igreja recebem
poder para exercer antigos e novos talentos.
Essa visão dos
dons, creio, fornece uma compreensão do assunto que poderá responder à maior
parte das indagações a respeito do tema, restando muita coisa a ser tratada
sobre alguns dons particulares.
Um ponto
extremamente importante é a definição do caráter mutual dos dons (dar e
receber). Ninguém tem um dom para si mesmo, mas para compartilhar com os
membros do corpo de Cristo, recebendo os dons dos demais. Dessa maneira, cada
um ministrando o próprio dom e exercitando os dons dos outros, todos crescem
até a estatura de Cristo e o cumprimento da Grande Comissão.
Wadislau Martins Gomes
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