segunda-feira, novembro 16, 2015

O CARPINTEIRO


São José Carpinteiro, Georges de La Tour, Louvre
 
Depois de longo período de doença, meu marido vai recuperando as forças, desejoso de voltar às atividades. Continua com a mente ágil e fértil, mas tudo parece acontecer a passo de lesma, e os pensamentos surgem mais lerdos, ponderados e pesados. O progresso é medido por um passo para frente, dois para trás, dois passos para frente, um para trás, e enfim descobrimos um pouco de progresso a cada dia. Meu marido passou meses na cama, impossibilitado de andar. Passou a dar alguns passos e começou a progredir fisicamente, mas a fraqueza e a dor estavam tão presentes que esquecia tudo mais. A vida girava em torno de três assuntos sempre presentes: infecção insistente e difícil de ser debelada, fratura de duas vértebras, fraqueza generalizada. Esses assuntos causavam dor insuportável. C. S. Lewis chamava a dor de “megafone de Deus”, mas na hora que estamos ouvindo barulho insistente desse alto falante, muitas vezes, queremos tapar os ouvidos ao som. Outro pensador disse que a doença é bênção disfarçada, mas tenho que admitir que, às vezes, eu achava difícil imaginar a bênção debaixo do disfarce acre e cansativo que pairava sobre nós vinte e quatro horas por dia.

Esta experiência lembra muito minha própria vivência cristã, em que, como o apóstolo Paulo fez em Romanos 7, confesso que não consigo tudo o que pretendo — “em mim... não habita bem nenhum, pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo”.

 Antes desta experiência, eu romantizava um período de estada hospitalar como oportunidade de descansar dos afazeres normais, ter mais tempo para ler a Bíblia e orar, aprofundar as raízes da leitura, da meditação e do pensamento. Nada disso. Insônia ou sono picadinho em terreno estranho não é descanso—nem para o paciente nem para seu companheiro (no caso, sua companheira 24 horas por dia: euzinha).

Somos gratos porque em meio às perguntas e incertezas de cada momento, uma presença não nos deixou: o sopro suave da voz de Deus por sua Palavra e seu Espírito. Ele sussurrava no meio da barulheira de atendentes levando macas de um lado para outro, ao elevador de um andar para outro lado, enfermeiros procurando veias viáveis para mais uma injeçãozinha que não vai doer naaada, pessoas trabalhadoras no hospital, desde médicos fatigados por plantões e miríades de pacientes, enfermeiras habilidosas, atendentes impacientes. Mas tenho de confessar que nem sempre eu estava disposta a ouvir sua voz. De vez em quando usava o artifício de quem precise de aparelho auditivo para ouvir com clareza e não querer escutar: tirar o aparelho e só ouvir o que me agradasse.

Passaram as fases de cadeira de rodas, auxílio para banho, bebidas no copo de canudinho. O primeiro período de “cuidados em casa” não pôde ser em nossa casa, mas no apartamento de estudante de nossos netos, aonde vinha enfermeiro/a duas vezes por dia para aplicar medicações, e recebíamos com um pouco mais de liberdade a visita de alguns irmãos em Cristo—até que a desconfiança de uma infecção mais séria nos levou de volta ao hospital. Todo o tratamento se intensificava, repetia, mudavam algumas medicações—e foram longos meses antes que pudéssemos ir para nossa casa, onde Wadislau conseguia mais mobilidade com o auxílio de bengala.

Em nossa própria casa, primeiro foram dias em que ficávamos sentados na varanda ou no banco do jardim, conversando, lendo a Bíblia, orando, observando as aves e as flores, sentindo o cheiro do capim recém cortado e o perfume de tudo. O enfermeiro de home care só vem uma vez por dia aplicar a medicação no cateter. O corinho que vinha à mente era o do arco da velha: Sempre melhorando, sempre melhorando... Mas a realidade era um passo pra frente, dois passos para trás...

Hoje a melhora é visível.  Wadislau não tem mais cara cinzenta de quem está com um pé na cama e outro na cova. A inquietação saudável faz parte do dia a dia. Ainda há necessidade de longos períodos de descanso. A cabeça não está a mil por hora, mas está funcionando – e o coração (o cerne da alma, como também o órgão que manda sangue para  o corpo inteiro) alegre aformoseia o rosto. Há uns sons antes raros: marteladas, lixadas constantes, serrote e furadeira elétrica – sons de madeira e de materiais para transformá-la em coisa mais elaborada. São sons de lixa, lima, grosa, madeira velha e tosca transformada em construção de sonhos, de criação de objetos úteis e recriação da vida que estava em pausa. Hoje a vida pulsa: o coração está a 12 por 8 e a oficina temporária em que nossa área de churrasqueira se tornou tem um homem que se alegra em pregar, serrar, cortar e amarrar, pensar e fazer.

 Ainda são poucas as ocasiões em que prega a palavra em público—nas três primeiras pregações em seu “retorno” à igreja (se bem que na verdade nunca saiu dela), pregou sentado. Mas na mais recente, pregou a palavra de Deus em pé, com força, como Salomão descreve:Procurou o Pregador achar palavras agradáveis e escrever com retidão palavras de verdade. As palavras dos sábios são como aguilhões, e como pregos bem fixados as sentenças coligidas, dadas pelo único Pastor” (Eclesiastes 12.10-11).

De vez em quando, vindo trazer-lhe café ou um suco, vejo meu marido em sua tarefa de marceneiro pegar, com uma comprida pinça um objeto que caiu no chão ou buscar outro que não está à mão, eu penso que meu papel de auxiliadora mudou: sou um pouco ajudante de um carpinteiro como foi o Mestre dele e meu.

Lembrei que as referências a Jesus como carpinteiro, de Mateus e Marcos, têm pequenas diferenças de perspectiva. Em Mateus, os judeus perguntavam de Jesus: Não é este o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos, Tiago, José, Simão e Judas?” (Mt 13.55). Já Marcos relata que Jesus acabara de pregar na sinagoga, e os judeus “ouvindo-o, se maravilhavam, dizendo: Donde vêm a este estas coisas? Que sabedoria é esta que lhe foi dada? E como se fazem tais maravilhas por suas mãos? Não é este o carpinteiro ...?” Com certeza Jesus jovem aprendeu de seu pai adotivo, José, o ofício de carpintaria. Todo estudante e praticante da Palavra, na cultura judaica, tinha de ter também um ofício prático com que ganhar a vida, e a carpintaria passou de José para Jesus. Mais do que uma estrutura de casa, uma porta bem firmada, uma mesa para uma família ativa compartilhar o pão, ou mesmo um bom cabo de machado—o carpinteiro usava suas ferramentas para burilar e aperfeiçoar objetos úteis que eram sólidos sonhos das pessoas.

Quando estudávamos no Seminário Palavra da Vida, os homens recebiam aulas práticas de marcenaria com o missionário Haroldo Reimer, que era também professor da matéria de “Vida de Cristo”. Wadislau aprendeu naquela oficina de marceneiro muita coisa de vida cristã – e confeccionou os primeiros móveis de nossa casa de estudantes no instituto bíblico. Com o passar dos anos, Lau sempre usou o que aprendeu inicialmente com Haroldo. Produziu mesas, poltronas, biombo, cadeira de preguiça, uma casinha de boneca de Susi para nossa filha, armário e muito mais. Haroldo Reimer, atualmente aos noventa anos, ainda toma madeira tosca e cria grandes e pequenos objetos de uso e de arte. Acho belo o testemunho do carpinteiro/marceneiro/fotógrafo/evangelista e pregador do evangelho ancião, que transmitiu a outros missionários e pastores/mestres que hoje passam adiante o bastão para ainda outros discípulos. Foi na aula de carpintaria que Wadislau, jovem, cortou o dedo na plaina elétrica, mas recuperou o uso e ainda aos setenta anos tem mãos ágeis, toscas e ternas, que formam coisas belas. Atualmente o “belo” é uma bancada de marcenaria que custaria mais de novecentos reais se comprada em loja especializada.  Está praticamente pronta.

A história do Carpinteiro iniciou numa manjedoura e culminou numa cruz. Queira Deus nossa história inicie na adoração do menino na manjedoura e mantenha em vista os sofrimentos e a glória da cruz, tempo sem fim!

Elizabeth Gomes

2 comentários:

Anônimo disse...

Lindo depoimento... Parabéns pela história!

Lilian Nely disse...

Beth, você é exímia escritora e descreveu de maneira muito linda e compreensiva a vida que o Lau teve e tem, ultimamente. Rogo ao nosso Eterno Deus muita saúde para ele, muitooosss anos de vida e vida espiritual abundante. Uma noite dessas, acordei e lembrei de vocês. Agradeci a Deus a família que vocês têm e como o Lau se converteu e na maravilha de HOMEM que ele se tornou. Sou muitíssimo grata ao nosso Deus por vocês TODOS e pelo que o Lau É. Amo vocês de todo meu coração. Oro pela família de vocês todos os dias. Deus os abençoe muito e sempre. Com gratidão a Deus e amor por vocês, Lilian Nely