segunda-feira, novembro 03, 2014

EXCELÊNCIA, DEFICIÊNCIA E SUFICIÊNCIA


 
De Gênesis ao Apocalipse a Palavra de Deus fala sobre a excelência: de Deus, de suas obras e seus feitos, de sua misericórdia sem fim. Descreve também a excelência de caráter de alguns de seus servos. Isso percorre a história da Igreja cristã desde os primórdios patriarcais, nas grandes lutas de pensamento e da ação cristã dos pais da igreja, dos Reformadores, dos renovadores, dos missionários—e vai ser assim até o fim dos tempos. No momento, estou traduzindo a biografia de John Owen; fico maravilhada pela excelência de sua vida acadêmica, ministerial e pessoal. Vi semelhante excelência nas vidas de Agostinho de Hipona, Martinho Lutero, João Calvino e Jonathan Edwards: unido a um intelecto privilegiado, havia disciplina e discernimento em todos os aspectos da vida. As pessoas dotadas de excelência não se orgulhavam de suas habilidades, mas humildes, as atribuíam ao Senhor a quem serviam. O apóstolo Paulo, por exemplo, afirmou: “Não que tenha obtido a perfeição, mas prossigo para conquistar aquilo pelo qual fui conquistado por Cristo Jesus (...) prossigo para o alvo: o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” (Fp 3.12-14).
A excelência de Deus no ser humano que o serve não é sinônimo de perfeição—aliás, os grandes e excelentes conheciam sua imperfeição e deficiência, e atribuíam a Deus aquilo que os tornava singulares. Por exemplo:

• José, de quem o narrador conta que “O Senhor era com ele” (Gn 39.2-5; 21-23)—no meio de grandes adversidades, em que ele foi traído, preso, acusado falsamente.

• Moisés (Dt. 34. 10-12; At 7.20-42; Hb 11.23-29) foi criado como príncipe no Egito

• Bezalel e Aiolabe (Ex 30.2-6)

• Débora (Jz 4.4-5)

• Jó, “homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal” (1.1) reconhecia ser indigno, mas no meio de todas as suas adversidades, recebeu a mensagem de Deus: “Cinge agora os lombos como homem... Orna-te, pois, de excelência e grandeza, veste-te de majestade e de glória (Jó 40.7-10)

• Daniel (Dn 1.4,17; “sem nenhum defeito, de boa aparência, instruídos em toda a sabedoria, doutos em ciência, versados no conhecimento e que fossem competentes para assistirem no palácio do rei e lhes ensinasse a cultura e a língua dos caldeus... Ora, a estes quatro jovens Deus deu o conhecimento e a inteligência em toda cultura e sabedoria; mas a Daniel deu inteligência de todas as visões e sonhos” (Dn 6.3 ); “havia nele um espírito excelente”; e assim ele viveu no cativeiro desde o reinado babilônico de Nabucodonosor, passando por Belsazar, o medo Dario até o persa Ciro.

O apóstolo Paulo teve uma educação privilegiada. Judeu que estudou aos pés do maior rabino de sua época, vivia na diáspora como cidadão romano e movia-se com tranquilidade de Tarsis e Damasco até o deserto Arábia, Jerusalém, Antioquia, Creta, toda a região hoje conhecida com Turquia, toda a Grécia e finalmente, Roma, com intuito de prosseguir até a Espanha. Poliglota, conhecia o melhor da cultura de cada grupo étnico com que conviveu, e era hábil para apresentar o evangelho a reis como também a escravos, a mulheres como as empreendedoras piedosas Priscila e Lídia, a capitães e governantes, a jovens seminaristas convertidos do paganismo e do judaísmo, até a escrava de quem livrara do demônio de adivinhação-- a sábios e a tolos que receberam a sabedoria do evangelho. Disse ele que desejava que os filipenses aumentassem em amor no “pleno conhecimento e toda a percepção, para aprovardes as coisas excelentes e serdes sinceros e inculpáveis para o Dia de Cristo (Fp 1.9-11). Aos coríntios explicou que a excelência do poder é “de Deus e não de nós”, porque “[Deus] resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo—mas este tesouro habita “em vasos de barro” (2Coríntios 4.6,7).

O ideário de perfeição se mostra na predileção de Israel por líderes sem nenhum defeito físico. A escolha do primeiro rei, Saul, “moço e tão belo, que entre os filhos de Israel não havia outro mais belo do que ele; desde os ombros para cima, sobressaía a todo o povo” (1Sm 9.2) e na divisão depois de Davi com Absalão (“Não havia, porém, em todo o Israel homem tão celebrado por sua beleza como Absalão; da planta do pé ao alto da cabeça, não havia nele defeito algum (...) e ele furtava o coração dos homens de Israel (2Sm 14.25; 15.6). Salomão elogia a amada: “Tu és toda formosa, querida minha, e em ti não há defeito (Ct 4.7) e até hoje jovens, crentes tanto quanto incrédulos, tendem a fazer escolhas com base na beleza física—descobrindo, às vezes tarde demais, que “enganosa é a graça e vã a formosura” (Pv 31.30).

 Isso nos leva a considerar o quanto nossas deficiências estão ligadas a excelência que Deus requer. Os sacrifícios ao Senhor tinham de ser de animais sem defeito, e no tabernáculo e templo de Israel era necessário que só se apresentassem vítimas perfeitas. Mas quando Jesus veio ao mundo, disse que o Espírito do Senhor o “ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor” (Lc 4.18-19; cf. Is 61.1-3). Com isso ele voltou sua atenção aos não-incluídos, os portadores de deficiências, trazendo visão aos cegos, andar aos coxos, libertação aos demonizados e aos de espírito oprimido, dando perdão, purificação e liberdade a todos quantos, chamados por ele, a ele viessem. As boas novas de que ninguém seria excluído com base em raça, habilidade ou deficiência passaram a ser proclamadas e vividas! Hoje a igreja é composta de gente de todas as tribos, povos e raças, “vós que não éreis povo”, nós que não tínhamos esperança, que éramos pecadores e inimigos de Deus. No corpo de Cristo, segundo diz Efésios 4 e 1Coríntios 12, os membros trabalham todos em conjunto e mútua dependência.  Fomo amados e tornados “sem defeito” por Cristo: “Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito (Ef 5.25-27).

Até hoje, muitos são insensíveis aos portadores de deficiências, e quando não enxergam o milagre da cura, perguntam como fizeram quanto ao cego no caminho de Jericó a dois mil anos: “Quem pecou para que ele fosse cego: ele ou seus pais?” (Jo 9.2). No livro Ética nas pequenas coisas (São Paulo: Vida, pp 226-227), lemos:

Dentro das igrejas, persistem os mesmos problemas que fora delas. Poucas igrejas levam em conta a necessidade de rampas ou elevadores para os que têm dificuldade para andar, espaço para o cego “ver” e o surdo “ouvir” em sua própria “língua”. Apessar de todas as dificuldades que enfrenta, o portador de deficiência, como filho e servo de Cristo e irmão dos irmãos, encontra suficiência em Cristo. Poderá ser grandemente abençoado por seus irmãos quando estes abrirem os olhos para ver o que podem fazer para facilitar sua vida. Nem sempre ele precisará (ou desejará) ajuda, mas, sempre que solicitar, deveremos estender a mão, certificando-nos de que o ambiente da igreja lhe seja propício. Ele não é um coitado, maldito, tampouco um desgraçado—poderá ser mais abençoado e abençoar de forma singular seus irmãos.

Vivemos sempre a tensão entre nossas deficiências, a excelência de Deus e a suficiência que ele nos outorga. Talvez referindo a um tempo antes de existir um povo escolhido, ou seja, pré Abraâmico, um dos amigos de Jó, Zofar, descreveu a situação do ímpio que prospera: “Na plenitude da sua abastança (na sua super-suficiência), ver-se-á angustiado; toda a força da miséria virá sobre ele”—ou seja, tendo mais que suficiente de tudo, terá sobre ele toda a força da miséria! No sermão da Montanha, Jesus disse que basta ao dia o mal (Mt 6.34) – o mal é suficiente (arketos) a cada dia -- mas ao apóstolo que sofria com o “espinho na carne, mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de que não me exalte” que pediu ao Senhor que o afastasse dele, O Senhor Jesus respondeu: “A minha graça te basta (arkeo, é suficiente, satisfaz), porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza”(2Co 12.9)

Em relação à luta, ao perfume do conhecimento de Deus, Paulo declara: “Graças, porém, a Deus, que, em Cristo, sempre nos conduz em triunfo e, por meio de nós, manifesta em todo lugar a fragrância do seu conhecimento. Porque nós somos para com Deus o bom perfume de Cristo, tanto nos que são salvos como nos que se perdem. Para com estes, cheiro de morte para morte; para com aqueles, aroma de vida para vida [e pergunta:] Quem, porém, é suficiente para estas coisas? (2Co 2.16 14-15). Para expandir mais ainda as metáforas, Paulo afirma: “Vós sois a nossa carta, escrita em nosso coração, conhecida e lida por todos os homens, estando já manifestos como carta de Cristo, produzida pelo nosso ministério, escrita não com tinta, mas pelo Espírito do Deus vivente, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, isto é, nos corações. E é por intermédio de Cristo que temos tal confiança em Deus; não que, por nós mesmos, sejamos capazes de pensar alguma coisa, como se partisse de nós; pelo contrário, a nossa suficiência vem de Deus, o qual nos habilitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata, mas o espírito vivifica. (2Co 3.2-6) e ao referir-se à generosidade de uma igreja pobre de gentios convertidos, agora abençoando os pobres judeus cristãos de Jerusalém, disse: “Deus pode fazer-vos abundar em toda graça, a fim de que, tendo sempre, em tudo, ampla suficiência, superabundeis em toda boa obra” 2Co 9.8.

Muitas vezes tenho sentido na pele a luta entre o desejo por excelência, a realidade de minhas limitações e deficiências, e a provisão de Deus de sua suficiência para cada dia. Não tenho ilusões de perfeição—todo dia me deparo com o quanto sou carente pecadora. Mas estou aprendendo que, ao entregar tudo ao Senhor, ele me prepara para viver tudo em nome do Senhor: “E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai” (Cl 3.17).

Elizabeth Gomes

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