sexta-feira, agosto 22, 2014

MISSÃO DE MÃE


 


.... com boas obras (como é próprio às mulheres que professam ser piedosas) (...) preservada através de sua missão de mãe, se ela permanecer em fé, e amor, e santificação, com bom senso (1Tm 2.9-15).

Uma amiga trouxe o filhinho recém-nascido para que o conhecêssemos, e um filho meu, criança, desapareceu por um pouco e voltou com seu cachorrinho recém-nascido ao colo. Provavelmente soubesse da diferença colossal entre o filho e o filhotes, mas para ele, a “irmandade” de ter como seu uma nova vida – fofinha, linda, incrivelmente perfeita em sua total dependência – era algo que ele entendia nos limites de sua experiência. Tempo depois, ele viu nascer os filhotes de sua hamster e correu para nós, pulando de alegria: “Viva! Sou pai!”
Entre os itens mais compartilhados nas redes sociais estão notícias de gravidez ou nascimento de filhos e netos. Costumo “curtir” até mesmo quando não conheço bem o casal ou a pessoa que deu a notícia, porque amo tudo que diz respeito a geração e parição. Percebo que meus escritos são muitas vezes prenhes de referências a nascimentos e assuntos ligadas a geração, reprodução, criação e educação de filhos. Os mais altos momentos da vida, os que fizeram com que eu me sentisse simultaneamente vazia e realizada, foram do nascimento de meus três filhos. Pais, mães e avós falam de boca cheia sobre os feitos e desfeitos dos filhos e netos. Os afetos são incrivelmente fortes e insuportavelmente sofridos quando as pessoas se referem a filhos.
Não são somente os compartilhamentos alegres que marcam a vida das pessoas. Lembro-me bem de um casal amigo que carregou o filho no ventre por nove meses. A criança nasceu com problema de coração, e por melhor que fossem as tentativas da medicina de salvá-la, morreu. Outros tiveram filhos natimortos. Ainda semana passada, quatro amigas compartilharam a tristeza de gravidez frustrada em aborto espontâneo – sentimento que eu mesma experimentei. Tenho conhecimento de outras mulheres que cuidam com carinho das crianças dos outros (uma de que penso particularmente é pediatra muito amorosa e habilidosa com os pacientes a ponto de, às vezes, levar seus pacientes-mirins para sua própria casa)—e não têm filhos do ventre nem se atrevem a adotar filhos do coração. Parece que o sonho de maternidade é, para elas, ilusório em seu alcance.
Maternidade e missão andam juntas. No momento, estou revivendo os repuxões do coração ao observar mais uma saída de mais um filho para uma vida missionária—o maior sonho de uma mãe cristã. Criamos os filhos para Deus—eles não são nossos, mas tesouros a nós cedidos por poucos anos para que sejam formados, burilados, e às vezes reformados, para uma missão muito maior do que nós possamos ter ou imaginar. A frase poética do Vinicius de Morais: “Filhos... Filhos? / Melhor não tê-los! / Mas se não os temos / Como sabê-lo?”, aponta a complexidade da experiência paternal. Como mãe cristã, encho-me de alegria ao pensar nos filhos,  e esvazio-me de qualquer orgulho vão: eles são prova viva da fidelidade de Deus e da vaidade de meu próprio pensamento. Cada um é singular e único—todos eles são amados como se fossem só eles, conquanto façam parte de uma multidão sem conta de gente irmanada pelo mesmo Salvador.  Criamos os filhos para Deus que os envia ao mundo. Não são nossos também no sentido que deverão andar com as próprias pernas e voar com as próprias asas, refletindo eles mesmos a glória de Deus e testemunhando essa diferença no mundo em que vivem—não no nosso mundinho limitado, mas na expansão em que eles atuam e em que, amadurecidos, produzem transformações no ambiente em que se encontram. Eles nasceram para propósitos eternos, mesmo sendo falíveis mortais (uma mãe amarga a falibilidade e quer se esquecer da mortalidade dos filhos, mas não pode negar essa verdade). Criamos os filhos para outros. Percebo cada vez mais nos filhos que eles nunca foram meus – são de seus cônjuges, de seus próprios filhos, suas congregações, seu próprio círculo de amizades, seus trabalhos de vocação e convocação, do próximo, e não nossos. Criamos os filhos para ser quem devem ser em Cristo. Nunca são o que queríamos que fossem – mesmo quando ultrapassaram todo sonho que eu tivesse, não são, e não podem ser considerados, aquilo que eu queria moldar e formar à minha imagem. Não são ídolos para serem adorados ou para cumprir a nossa vontade, e, muitas vezes, os seus caminhos, embora tendo o bom e firme fundamento e baseados na mesma fé, serão peregrinações diferentes da minha. Tenho de respeitar essas multiformes diferenças e honrá-las pelo que são.
O trecho bíblico que despertou essa reflexão me intriga e perturba, porque Paulo escreve a seu próprio filho na fé, Timóteo, (1.2) referindo-se à primeira mãe da vida humana, Eva, como “segunda” em formação, enquanto “primeira” a ser enganada--e ser essa a razão pela qual as mulheres não devam exercer domínio sobre os homens (2.11-12). Hoje muitos teólogos, especialmente as feministas pós-modernas, descartam como prova do machismo antiquado e retrógrado de Paulo que deve ser descartado por qualquer ser pensante de bom senso (suas Bíblias estão esfarapadas pelas múltiplas escolhas humanas de “isso não se aplica mais” ou “isso é irrelevante”) Mas Paulo (nem outro autor bíblico qualquer) não é misógino quando se lembra de outros trechos dele que se referem, por exemplo, ao papel de ensino de mãe e avó piedosas (2Tm 1.5; 2.15), à valorização do papel de ensino de Priscila junto com Aquila (At 2.18; 18.18; Rm 16.3) e referência a inúmeras mulheres piedosas em todas as suas cartas. Aliás, ele destaca o bom senso junto à modéstia e boas obras das mulheres piedosas, para concluir que “será preservada através de sua missão de mãe, se ela permanecer em fé e amor e santificação com bom senso”. Ainda vou estudar o assunto mais a fundo, mas de relance, a ambiguidade da maternidade é algo constante, e me perturba. Esse é o homem cuja sensibilidade empresta da mulher a expressão mais profunda, sofrida e realizadora: “meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto...” o faz “até ser Cristo formado em vós”. E eu empresto esse senso de maternidade paulina a minha visão missionária: até Cristo ser formado em vós.
Desde os doze anos de idade, quis ser missionária e valorizei a missão de Deus em Cristo em mim para depois de formada, transbordar em missão ao mundo em minha Jerusalém, Judéia, Samaria e até os confins da terra (Mt 28.19-20). Namorei missões em campos distantes – com a leitura de biografias de Hudson Taylor, Isobel Kuhn, Amy Carmichael, Betty Scott Stam, Catherine Booth, Corrie Ten Boom, Elisabeth Eliot—e próximos, de missionários que conhecia e que desconhecia totalmente – encantei-me com missões entre o povo de Deus (fomos missionários por três anos entre os judeus, em Belo Horizonte e São Paulo) e de todas as tribos, povos e nações do Brasil e do mundo (implantamos igrejas nos Estados Unidos). Hoje sou esposa de pastor e mãe de filhos adultos que não dependem mais do ensino da casa pater-materna – eles próprios ensinam a outros, começando pelos próprios filhos e se estendendo por todo o mundo em que vivem. Temos nós tesouro em vasos de barro (2Co 4.7) e esse vaso aqui está mais que rachado – já se quebrou muito antes que o Senhor o remodelasse e refizesse, e ainda hoje acaba mostrando trincas e rachaduras que têm de ser tratadas. Não tem jeito – deste lado do Paraíso, continuarei sendo vaso inacabado, até Cristo ser formado em mim (Gl 4.19) e eu ser promovida para a Presença do Trono. Mas ele está presente – no passado, hoje e no futuro – e tem me presenteado com graça e misericórdia em todos os momentos da vida. É como mãe imperfeita que vou vivendo a maternidade às vezes fracassada às vezes profundamente realizada, como tantas mulheres cristãs que assim podem e devem exercer uma “missão de mãe” – mães de muitos filhos, mães de muitas querências frustradas, de ventre ou de berço vazios, mães que adotaram filhos para a eternidade. Essa missão não trata de mim nem mesmo de meus mais preciosos amados: marido, filhos e netos. Cumprir a missão de mãe é entender a missão de Deus. Empresto aqui outra expressão paulina: “... Conhecer a riqueza deste mistério: Cristo em vós, a esperança da glória; o qual nós anunciamos, advertindo a todo homem e ensinando a todo homem em toda a sabedoria, a fim de que apresentemos todo homem perfeito em Cristo; para isso é que eu também me afadigo, esforçando-me o mais possível, segundo a sua eficácia que opera eficientemente em mim” (Cl 1.27-29).
 
Elizabeth Gomes

2 comentários:

Marilu Burjack Farias disse...

Mensagem maravilhosa,maravilhosa,maravilhosa.Voce escreve com muita autoridade.Bjs.

Marilu Burjack Farias disse...

Mensagem maravilhosa,maravilhosa,maravilhosa.Voce escreve com muita autoridade.Bjs.