segunda-feira, setembro 08, 2014

BOA COMIDA




Estávamos de volta ao Brasil depois de quase sete anos nos Estados Unidos, e eu me alegrava com receber em casa os jovens da Igreja Presbiteriana Nacional, para o estudo bíblico. Chegando ao fim do estudo, notei certo desconforto—uns dois ou três chegaram a ir até a cozinha para “dar uma olhadinha”—mas não atinei com a razão. Só depois, em outra casa que recebia a turma para estudar a Bíblia, foi que entendi a inquietação que ocorrera lá em casa. A anfitriã tinha uma mesa farta de salgadinhos e refrigerantes para oferecer. Eu não oferecera nem um suquinho. Tinha cometido a gafe de não incluir comida na reunião. Muitos jovens vinham direto da escola ou do trabalho, e eu não fui sensível à expectativa de saciar a fome simultaneamente à ingestão da Palavra de Deus! Espero que eles tenham me perdoado (muitos deles são hoje profissionais bem sucedidos e pais de família que postam fotografias dos lindos filhos que crescem na Palavra) — eu ainda fico remoendo por que eu não preparara um bom lanche para aquela noite.

Na verdade, comida é assunto importante para todo mundo. Guerras são travadas e paz é proclamada com divisores alimentares. De a antiguidade, a comida tem influência sobre indivíduos e povos. Na Bíblia, começando com a atração de Eva pelo único fruto proibido em todo o jardim com a desculpa de que era boa para comer, deleite aos olhos e desejável para aumentar sua sabedoria – até o banquete a que estão convidados todos os salvos nas Bodas do Cordeiro descritas no Apocalipse – comida faz parte da vida de gentios, judeus e cristãos. Apesar de alguns gnósticos modernos afirmarem que se alimentam apenas de luz, nós seres humanos não podemos viver sem comida, e sua escassez ou fartura formam e deformam os indivíduos e as nações. Desde as tolas guerras de comida travadas por adolescentes nas mesas de acampamento até as insanas batalhas por fome de terras e bens travadas diante de acordos mal-fechados e tratados de paz desfeitos, a comida sempre faz parte da briga. Uma mãe preocupada leva o menino gorducho (subentende-se obeso) ao pediatra para indagar sobre a necessidade de uma re-educação alimentar; consagrados pais crentes ficam chocados ao saber que a filha de dezesseis anos quase morreu por anorexia nervosa; um pastor bem sucedido ouve a sentença: se não mudar seus alimentos, a diabetes e aterosclerose vão lhe matar!

Prever e apresentar uma solução prática à grande fome prestes a avassalar toda a terra tirou José do cárcere para a posição de governador do Egito, e essa mesma fome levou as setenta pessoas que formavam o povo de Canaã à fartura de Gósen, até que quatrocentos anos depois, voltassem a se libertar do cativeiro e rumassem novamente à Terra Prometida que mana leite e mel (Gênesis 40-50). Nos intricados quarenta anos que vaguearam pelo deserto (viagem que poderiam ter feito em duas semanas) toda uma geração morreu por causa da murmuração quanto à comida (ah! quem dera comer das cebolas, alhos e melões do Egito!) e contra a liderança de seu libertador  (Êxodo 12.37; Deuteronômio 34). Quando faltou comida, Deus proveu diariamente pão do céu (O que é isso?—Ma ná?—perguntaram) e churrasco de codornizes, e fez jorrar água viva da rocha seca.

Referindo-se ao maná, o poeta diz: “Comeu cada qual o pão dos anjos; enviou-lhes ele comida a fartar” (Sl 78.24-25).
 
Juntamente às leis de adorar somente a Deus e amar o próximo, detalhadamente escritas e implementadas, Deus deu leis a respeito de alimentos, o que é kosher e o que é treyfe, e grande parte da vida do povo de Deus se resumia no que comer ou sequer tocar. Até hoje, muitos judeus crêem que a vida se resume em guardar essas detalhadas leis dietéticas.

Poderíamos atravessar toda a Bíblia por meio das referências à comida. No cativeiro, Daniel e seus amigos príncipes hebreus aprenderam tudo da cultura pagã em que estavam forçosamente inseridos, e não se importaram de receber nomes babilônicos ou exercer cargos administrativos ou políticos sob domínio de imperadores pagãos. Mas pediram para manter uma alimentação judaica saudável e não ser forçados a comer as iguarias da terra dominante.

Jacó trapaçeou seu pai roubando a bênção do direito de primogenitura do irmão gêmeo Esaú, preparando um saboroso guisado de cabrito e lentilhas (Gênesis 27) em lugar da caça que Isaque pedira ao mais velho. O salmista fala do Senhor  e Grande Pastor de Israel como de quem “nada me faltará”, e depois de falar de pastos verdes e águas calmas menciona que “preparas uma mesa diante de mim na presença de meus inimigos”! Ele é quem dá alimento a toda carne, porque a sua misericórdia dura para sempre (Sl 136.25; 145.15-16). Não apenas alimenta a gente, como também as aves e os animais (ex. corvos—Jó 38.41—“Quem prepara aos corvos o seu alimento, quando os seus pintainhos gritam a Deus e andam vagueando, por não terem que comer?...”—Jesus no Sermão do Monte se referiu a isso, Mt 6.23-33, dizendo “Vosso pai sabe que precisais de todas essas coisas”).

Jesus deixou de comer para oferecer água viva à mulher samaritana, e quando interrogado pelos discípulos, disse: “minha comida consiste em fazer a vontade de meu Pai”, João 4.31-34. Multiplicou o lanche magro de um garoto para saciar a fome de mais de 5000 pessoas, sobrando ainda doze cestos cheios (Mt 14.14-22). Disse, ao que vai cumprir a missão do reino, para repartir o que tem (Lc 3.11) e ainda afirmou ser ele mesmo o pão da vida (Jo 6.27, 48-55) verdadeira comida. O seder celebrado por Jesus antes de sua prisão, tortura, morte e ressurreição tratava de comida e expandiu a idéia além de matzo e vinho e cordeiro compartilhado (MT 26.17-23, Mc 14.12-25, Lc 22.7-20, 1Co 11.17-34). Depois de sofrer risco de morte e naufrágio no mar Adriático, Paulo imitou o Senhor tomando um pão, deu graças a Deus na presença de todos e, depois de o partir, começou a comer (At 27.35-38).

Os apóstolos falavam a seus discípulos sobre comida sacrificada a ídolos (1Co 8.4,9,13), pessoas que julgavam as outras por hábitos alimentares diferentes das delas (Cl 2.16-17, 23; Rm 14.15-1); diferentes alimentos para estágios diferentes da vida (leite para infantes, 1Pe 2.2-3, Hb 5.12-14, grãos, carne, frutos e verduras para os que podem digeri-los) com a ressalva de que 1) comida não é tudo na vida: “o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” e 2) Deus é quem “dá semente ao que semeia e pão para alimento e também suprirá e aumentará a vossa sementeira e multiplicará os frutos”.

Há alguns anos tenho um projeto que ainda não consegui realizar: escrever um livro de receitas de comidas criadas e provadas da cozinha de Refúgio. Não quero fazer apenas um compêndio de boas dicas, mas entremear as receitas com histórias que nutram o coração das pessoas enquanto preparam comida que sacie a fome. Tenho observado gente do mundo todo que dá receitas criativas sobre culinária, desde as mais simples até as mais gourmets (curto Jamie Oliver, Bela Gil e dezenas de outros), mas meu projeto terá que ser refletivo de um estilo de vida em que “minha comida consiste em fazer a vontade de Deus”.

Ano passado, li um livro escrito por uma jornalista americana casada com jornalista de origem árabe, que passaram a lua de mel reportando a guerra em Bagdá. Ela entremeia considerações sobre ataques e bombas entre Bagdá e Beirute com a preparação de comida no Oriente Médio (Annia Ciezadio, Dias de Mel, São Paulo, Paz e Terra, 2011). Deu água na boca, lembrar comidas preparadas por dona Hyripsemé Daghlian ou Da. Lídia Atique e imaginar usar boas receitas para semear paz e promover crescimento espiritual a gente faminta! Alguns meses depois, deparei com um livro escrito por um pastor episcopal em que o “Jantar do Cordeiro” é tema para reflexões culinárias sobre a Bíblia e a boa comida (Robert Farrar Capon: The Supper of the Lamb, New York, Modern Library Food, 2002).

Este pequeno blog talvez abra seu apetite para pensar em comida — como obter, preparar e servir, o que faz bem, torna consistente ou deve ser descartado, como reduzir, multiplicar e compartilhar com família, amigos e até mesmo na presença de inimigos. Este ano ainda vou preparar o livro. Enquanto não sair do forno de idéias e palavras, convido você a comer conosco o convite que Isaías pôs em pergaminho e Deus colocou no curacao:

Ah! Todos vós, os que tendes sede, vinde às águas; e vós, os que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei; sim, vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite.  2 Por que gastais o dinheiro naquilo que não é pão, e o vosso suor, naquilo que não satisfaz? Ouvi-me atentamente, comei o que é bom e vos deleitareis com finos manjares.  3 Inclinai os ouvidos e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá; porque convosco farei uma aliança perpétua, que consiste nas fiéis misericórdias prometidas a Davi (Isaías 55.1-3).


Elizabeth Gomes

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