domingo, setembro 30, 2012

PELE PARA FAZER CUÍCA


 
Clélio (nome fictício) veio a O Refúgio trazido de uma cidade vizinha. Não educado, 31 anos, mostrava a natureza do problema na pele afogueada, no cheiro acre e nas juntas inchadas. “Como é que soube a nosso respeito?” – perguntei, e a irmã atalhou: “Ele está bêbado que nem peru em véspera de natal”. O fato era que ele já vinha bebendo por vinte e dois anos e, os últimos dez, entrando e saindo de sanatórios. “Então, será possível ajudar? Podem fazê-lo para de beber?” – ela continuou. A sequidão da alma estava ali, implorando uma talagada de ajuda! Os familiares que cuidam de alcoólicos sofrem ressacas de desespero e mostram síndromes de abstinência de esperança como se fossem eles os escravos da garrafa! Bebem de um cálice de ira que jamais se esvazia e que nunca satisfaz.

Clélio dormiu o resto do dia e a noite toda. No dia seguinte, estava agitado e às voltas como animal enjaulado. Queria conversar, mas, tão logo nos assentamos em um banco de pau, sob as árvores à frente da casa, ele ora era tomado de choro ora de esquecimento. “Como eu poderia penetrar esse peito e alcançar esse coração curtido de álcool e de desgosto?” – pensei. Sobretudo, era difícil manter a atenção na pessoa e na situação, quando as palavras desencontram os gestos. Parecia um jogo de esconde-esconde: agora você me vê, agora não.

Na segunda noite, as coisas explodiram. Foi um pesadelo daqueles de que a gente acorda de susto e de peito arfando. Clélio, aos gritos, rodava no quarto e lançava objetos contra as paredes grossas do casarão antigo. Ao chegar à porta rústica e de gonzos e ferrolho de ferro, vi pelas frestas que ele tinha o cabo do machado erguido à frente e ao alto da cabeça, mãos na extremidade e junto do olho do ferro, pronto para deslizar e rachar a madeira. “Clélio – procurei manter a voz segura e calma – é o pastor. Lembra de mim?” Não estava seguro de que me identificaria, e nem estava calmo. “Sei quem é...” – ele gritou de volta. – “É o homem que vai me ajudar!” “Abre a porta. Vamos conversar.” “Com eles não tem conversa.” “Eles quem?” “Estão querendo tirar a pele da minha mãe para fazer cuíca!” Gastamos o restante da noite, conversando, do lado de fora da casa, no escuro. Clélio ia e vinha, da prostração à alucinação; apontava para as sombras das árvores, e repetia: “Lá vêm! Olhe! Estão chegando... já pegaram minha mãe! Não!”

A cuíca, na mão de um bom tocador, ronca, geme, ri e chora, e quase fala, marcando a cadência do samba. Na terra da minha infância, quando as festas do natal chegavam ao fim, crianças e donas de casa partiam para recolher os gatos, se não, “vira coro de cuíca”. Eu podia sentir o terror de Clélio, impotente para salvar a mãe de virar marcação de enredo no meio da rua. Ele estava totalmente embebido da situação. Percebia, via, pensava, concluía, sentia e se movia no drama pesadelo – e ele estava acordado! Estava?

O álcool altera o estado psicológico de uma pessoa de maneiras estranhas. Uma pequena quantidade reduz a inibição dos impulsos e, por algum tempo, poderá “elevar o espírito”, mas, na verdade, o álcool é um depressivo. Por isso é que a “alegria do copo” deixa a pessoa com aquele ar “bobo alegre” e, depois, rouba-lhe a alegria e deixa na alma um vazio que, ela acha, só será preenchido com mais um copo.

O que é que acontecia com o Clélio? Talvez, tivesse começado a beber para se sentir melhor, superar uma amargura, ira, ou apenas para lidar com uma inabilidade social. Qualquer que tenha sido a razão, ele se sentiu melhor depois de um gole – provavelmente, o mesmo efeito do ansiolítico ministrado no sanatório, da primeira vez que ele “deu uma de louco”. De início, ficava eufórico, até que a bebedeira progrediu para os estados de enevoamento, torpor e, mais tarde, de perda de consciência. “Já passei por todos os estágios” – ele disse – “alegre que nem macaco, bravo que nem cachorro, triste que nem sapo e largado que nem porco.”

De fato, parecia que Clélio mesmo já tinha sido esfolado e os sons que emitia eram os do ronco da cuíca. Não é nada fácil conversar com quem já perdeu as esperanças, ou melhor, com quem põe toda a esperança na próxima rodada. Um bom tocador tira música da cuíca, mas não tem conversa: cuíca “fala” e faz a gente sentir, ainda que o artista se cale quanto aos próprios sentimentos. Você já experimentou falar com uma cuíca? Foi assim que me senti, tentando conversar com Clélio. No entanto, eu estaria bêbado de ceticismo, se perdesse a esperança de varar a pele curtida da sua condição, para atingir a haste da miserabilidade da sua alma chorosa. Certamente, Clélio tinha um problema de apresentação com o álcool, mas, debaixo da pele, dentro do peito macilento, o ronco do coração era o problema verdadeiro: bêbados estão, mas não de vinho; andam cambaleando, mas não de bebida forte (Isaías 29.9).

 Clélio era dependente do álcool, mas seria esse o seu problema? Certamente, era um deles. Entretanto, não era o problema básico. Havia mais sob a pele macilenta que somente poderia ser acessado mediante adequado conhecimento dos diversos elementos envolvidos. Para isso, a Palavra de Deus fornece uma grade de escrutínio. Ele atravessou os anos, crendo que havia achado a fonte de satisfação para as suas necessidades. Estava triste? Bebia para se alegrar. Estava alegre? Bebia para comemorar. Culpado? Bebia para esquecer. Bebia até dormir, para acordar e, de novo, beber até que confundisse a noite com o dia. A tolerância desenvolvida dava-lhe a impressão de que o organismo funcionava bem com o álcool no sangue. Depois de descobrir que a bebida relaxava o corpo, aumentava a autoconfiança e minorava a dor, Clélio aumentou o consumo. “Às vezes, me dá um branco na cabeça” – ele disse – “e sequer me lembro do que fiz na última noite”. A família havia tentado de tudo. Internações sob modelo médico, tratamentos psicológicos de contenção, aversão, reuniões e apoio, até então, não haviam dado certo. Havia algo sendo esquecido: o verdadeiro problema. O problema humano. Pessoas desejam, respeitam, abominam e temem o álcool, mas não o compreendem exatamente. O que precisa ser bem entendido é que, antes de ser a causa de um problema, as drogas são sintomas do problema. Muitas pessoas pretendem ignorar o fato de que alcoolismo é, em última instância, um problema do coração, não somente um comportamento externo; e santidade é resultado de arrependimento e fé, não simplesmente de abstinência.

Ninguém ainda havia levado em conta, e nem mesmo poderia sem o conhecimento da graça, que aquele homem – rosáceo e rescendendo a restilo de cana, magro como pau de cerca e balofo como esponja encharcada – fosse uma criatura de Deus, feita para refletir o brilho do seu caráter (a todos os que são chamados pelo meu nome, e os que criei para minha glória, e que formei, e fiz; Isaías 43.7).  Nem mesmo Clélio, no espelho, podia ver dentro da pele o homem que deveria ser. Experimentava a existência em um circulo de morte, mundo afora e no interior (pois todos pecaram e carecem da glória de Deus; Romanos 3.23). Não podia ver porque tinha os olhos toldados para uma vida além do imenso bar em que uns bebem e outros servem a bebida. Como é que pessoas embriagadas de pensamentos e atos inglórios poderiam ajudar aos que creram nelas e beberam de suas fontes? (Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas; Jeremias 2.13). Nem Clélio nem parentes nem amigos nem seus ajudadores jamais consideraram que o cálice de pinga teria de ser retirado do coração, e que isso só poderia ser feito pelo único que sorveu o cálice da nossa condenação para nos dar a beber do cálice da sua comunhão. (Porventura, o cálice da bênção que abençoamos não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo; 1Coríntios 10.16)?

Havia tempos de completo abandono à bebida, com poucas pausas de alguns dias e com sofridas “ressacas”. Por mais de duas décadas, ele viu a mãe e a irmã irem dos rogos ao choro, de promessas a iras, até que a vida familiar foi destruída e reorganizada em torno do seu problema. A preguiçosa dependência contribuiu para a dissolução do seu caráter. Mentia, roubava, fez uma porção de inimigos – até que, um dia, nada mais restou de valor em sua vida.

Clélio não conseguia manter uma conversa coerente. Alucinações lhe assomavam mesmo quando “sóbrio”. Não era uma questão de quanto bebia. Uns goles eram suficientes para lhe trazer ilusões, como ver tartarugas dançando no balcão, ou vacas aladas do tamanho de gatos agarradas aos lustres, no teto. O que lhe ia na mente? Como acessar e prover para as suas necessidades? Estaria apto a entender minhas palavras? Em orações, pedia a Deus que me orientasse e provesse um caminho para penetrar a nebulosidade do seu coração. Estava certo de que somente o espírito de um homem sabe as coisas do próprio homem, e o Espírito de Deus que nele age (cf. 1Coríntios 2.11-12).  Da mesma forma, confiava na promessa de que há um caminho santo pelo qual não passam os imundos, mas que, havendo purificação, quem quer que por ele caminhe não errará, nem mesmo o louco (Isaías 35.8).

Clélio trazia consigo toda sorte de problemas físicos. O menor deles eram os pés com perfurações devidas à falta de sanguificação. Havia desenvolvido cirrose, enfisema pulmonar, dilatação do coração, além do fato de seus problemas orgânicos terem-lhe causado disfunções cerebrais. Graças a Deus, Clélio não parecia ter sido afetado em todas as áreas do corpo – mas só Deus sabia quanto teria sido afetado no corpo e na alma. Pela mesma graça, Clélio não estava além do alcance da comunicação. À medida que o tempo passava, ele se mostrava mais capaz para entender as coisas e reagir a elas em termos mais tangíveis. Ele diria, por exemplo: “Eu sou um homem bom... Não sei porque eu bebo... Eu... eu... Olhe essa mangas aos pés das árvores... elas... hã... Tenho saudade de casa...” Obviamente, ele estava alcançando o mundo exterior – indo além de sua própria pele. Mas não parava aí. Suas melhores condições para apreensão de tempo e circunstâncias se mostravam durante os períodos de adoração e louvor. Ele pedia que cantássemos um dado hino, e, depois, dizia: “Podem orar por mim?”

Um dia, em sua primeira semana em O Refúgio, depois de sofrer as alucinações com a cuíca, Clélio não me reconheceu. Ele entrava em casa no mesmo instante que eu saia pela porta: “Quem é você?” – havia pânico em sua voz. Fui a única pessoa que ele admitiu em seu quarto durante as alucinações provocadas pela abstinência do álcool. Como não me reconhecia? “Você está bem?” – a pergunta era retórica – “Sou o pastor Lau, você se lembra?” “Quem é você?” – ele estava realmente transtornado com a situação. Horas mais tarde, Clélio era outra pessoa. Veio a mim, chamou-me pelo nome, sem jamais mencionar o lapso de memória.

Nos catorze dias que Clélio passou conosco, testemunhamos todas as faces de que ela havia falado: macaco, cão, sapo e porco. Acaso não vemos essas mesmas faces em todo pecado – e uma dúzia de outras faces? A menos que alguém seja convencido pelo Espírito todos nós, quer bêbados de pecado quer renovados dele, jamais poderemos entender a insídia do pecado. Contudo, uma vez que reconheçamos na Palavra de Deus que a raiz do problema não está naquilo que entra pela boca, mas aquilo que flui do coração (Provérbios 4.23) – então, abriremos as cortinas do grande mistério revelado. Como Paulo disse, não deveríamos nos embriagar com vinho, mas sermos tomados pelo Espírito, mudando nossa maneira de pensar e falar (Efésios 4).

Era disso que Clélio precisa saber, e saber além da compreensão humana, em termos de compreensão espiritual: que o álcool não era um libertador, mas um senhor de escravos. Observe por exemplo, como Paulo se interpôs na “bebedeira” de Onésimo e de Filemom. Havia um escravo, Onésimo, preso de todo tipo de pensamento e ação dirigido a uma liberdade pessoal. Tanto se devotou ao deus-liberdade que se tornou bêbado dos próprios desejos. O coração obcecado obrigava o corpo à miséria do que seriam suas riquezas. Logo, possivelmente, apropriou-se de bens que não eram seus e fugiu do seu mestre. Filemom, um cristão, senhor de escravos, estaria bêbado de frustração. Desejoso de senhorio, tinha o coração tomado de pensamentos a respeito de Filemom. Algo mais ou menos assim: “Aquele a quem eu dei de comer...”, ou “ele me roubou...” ou ainda, “esse ingrato... eu era bom para ele”. Somente Deus sabia de sua bebedeira de justiça (sempre autojustiça!) resultantes em suas mãos, sentida na pele. Como foi que Paulo lidou com os dois? Foi como dizer: Não se embriaguem com desejos do coração, os quais transparecem na pele através do comportamento de cada um. Antes, ponham para fora toda espécie de “espírito” (como eflúvios alcoólicos) tanto da “liberdade” como do “poder”, e ponham para dentro o dom do Espírito de Deus, o qual é selo dos Filhos de Deus e irmãos entre si, em Cristo.

Ah! Se apenas Clélio pudesse ver seu desejo do coração, de libertação do jugo da pobreza, da insignificância, da inabilidade para se relacionar com pessoas, e sua sede para “dar o troco” à monstruosidade que lhe fora perpetrada e que o formara em quem ele pensava ser... Se apenas ele visse que os próprios desejos do coração eram grilhões da mesma escravidão, e sua condenação... Mas, como dizer-lhe? Certamente, como Paulo fez: abrir-lhe os horizontes para contemplar o bem maior, mais alto, profundo e extenso, do amor de Deus (cf. Efésios 3.14-21)!

Teria de mostrar-lhe o quadro do arrependimento e fé a fim de dar-lhes as formas, as cores e a impressão de como Cristo poderia redimi-lo efetivamente. Assim, ele teria de entender que a redenção de Cristo é diferente das redenções propostas pelo mundo. Que não é como o círculo vicioso do alcoolismo, em que cada tentativa de libertação afunda mais na escravidão de um senhor pior e em que cada tentativa de autojustificação resulta em maior injustiça. Ele teria de ouvir e crer na redenção que promove o homem a um alto nível de relacionamento com Deus e com o próximo. Mas como?

A irmã de Clélio veio pela manhã, e simplesmente disse: “Prefiro ver meu irmão bêbado do que como um crente”.
 
Wadislau Martins Gomes

Um comentário:

Clodoaldo disse...

O álcool associado ao prazer continua fazendo muitas vítimas, oremos para que nesta hora os corações dos familiares creiam na obra transformadora do evangelho de Cristo.


Clodoaldo, Bauru/SP