Uma aplicação das doutrinas de justificação e
santificação à ideia de autoimagem
Impressão ou expressão
“Ainda não me achei”, “não me entendo”, “sou
complicado” e coisas semelhantes — são do tipo do comentário feito pela fatigada
personagem de Agur, em Provérbios 30.1-3: sou
demasiadamente estúpido para ser homem; não tenho inteligência de homem, não
aprendi a sabedoria, nem tenho o conhecimento do Santo. Soa familiar (mesmo
disfarçado)? Por que é que a gente é tão difícil? Por que é que, muitas vezes, sentimos
que somos forçados ou nos forçamos a representar papéis que não são os nossos,
que aparentemente nada têm a ver com quem nós somos? Na verdade, tem e não tem.
Há papéis funcionais que confirmam o que somos (filhos, pais, irmãos, amigos
etc.). E há papéis erráticos que são como caricaturas a realçar
idiossincrasias.
Uma das maneiras caricatas com
que nos apresentamos é a da atuação “por expressão” (ou altruísmo) e “por
necessidade” (ou carência, egoísmo). Esses dois movimentos dos atos mentais e
operacionais se devem a sermos motivados ora pela impressão que temos de nós mesmos ora pela expressão do que pensamos ser. Nos sentidos aqui presumidos,
impressão é a ação de objetos exteriores sobre os nossos sentidos, com abalo,
agitação e comoção do espírito. Expressão é exteriorização de pensamento e
idéias por meio de atos ou palavras, figuração representativa, modelo, e
personificação formativa do caráter. A proposta bíblica é que, quando somos
impressionados por coisas do alto, pelo EU SOU, exprimimos nosso “eu”
verdadeiro por meio dos papéis de filhos (de Deus), irmãos (em Cristo), e
servos (de Deus e uns dos outros). Ao contrário, quando somos impressionados
por pessoas e coisas, operamos reativamente, tentando causar uma impressão por
meio de um “eu” artificial autônomo.
Está achando difícil? Certamente
não será mais difícil do que nós mesmos nos achamos. Vamos lá, eu ilustro: imagine
pessoas em uma situação comum no trânsito da cidade. Um transeunte experimenta
sentimentos e pensamentos diversos enquanto caminha na provável segurança de
uma faixa de pedestres. Ele considera uma possível imaturidade e impaciência da
pessoa ao volante (que ele percebe como um intruso em seu passeio). Esse
andante projeta uma imagem sob “impressão”. O motorista, por sua vez, também
nutre pensamentos e sentimentos misturados, à espera que o semáforo fique
vermelho para o pedestre (um invasor de sua rua) e verde para a sua própria
liberdade. Esse piloto experimenta uma “expressão” de poder. Nem tudo, porém, é
ou verde ou vermelho: o que atua por expressão reage a impressões diversas do
mesmo modo que o que atua por impressão reage a variadas expressões do ambiente
físico e relacional (por exemplo, pessoas ao lado, semáforo, guarda de
trânsito, religião, mídia etc.). Pense no que ocorre quando o motorista percebe
que os transeuntes são nada mais nada menos do que os Beattles.
Autoimagem em termos bíblicos
No estudo 1, “Uma aplicação de conceitos
bíblicos à ideia de autoimagem”, citamos dois textos coligidos por Salomão: Como na água o rosto
corresponde ao rosto, assim, o coração do homem, ao homem, e: como imagina em sua
alma, assim ele é (Pv 27.19; 23.7). Comentamos que a Escritura, em muitos
lugares, revela que percepções de autoimagem baseiam-se sempre em um de dois
pontos de partida: ou de uma visão do alto, verdadeira e sábia, ou de uma visão
ensimesmada, artificial e estulta. Ocorre que a verdade é infinita e sua
totalidade não cabe no cenário do homem finito, e, mais, a estultícia é incapaz
de apreender e de reproduzir a totalidade da verdade. Assim, nós resolvemos o
impasse por meio de considerar as coisas de modo perspectivo. Nesse horizonte
humano, há dois pontos de fuga necessários. Um é o ponto de fuga no infinito, de
onde Deus revela a si mesmo e, em sua sabedoria, o conhecimento que a pessoa
poderá ter de si mesma por meio do reflexo da imagem divina. O outro é o ponto
de fuga imediato, míope, em que a pessoa rejeita o conhecimento de Deus e
reflete a si mesma, projetando a própria imaginação de sua relação com o mundo
e com o próximo.
Impressão da lei
e expressão da graça
Dá para perceber como é que estamos sempre mudando de
face? Num momento justificamos nossas crenças e nossas ações e, noutro,
separamo-nos de qualquer obrigação. Num momento sentimo-nos julgados, noutro, somos
julgadores e, noutro, agimos como se estivéssemos além que qualquer lei ou
juízo. Ora gritamos como doidos numa montanha russa ora mantemos uma impassível
cara de pôquer. Tudo para causar um impacto pessoal, passar uma imagem falsa,
levar a melhor, disfarçar uma vergonha... É da nossa natureza decaída, tapar o
rosto para esconder carência de um valor de face. Não foi assim com Moisés, que punha véu sobre a face, para que ... não
atentassem na terminação do que se desvanecia (2Co 3.13)?
Essa situação vem do Éden perdido,
em função da culpa e do medo decorrentes. Esses dois sentimentos levam-nos a
julgar-nos e aos outros de maneira incorreta, e a temer a exposição de nosso
“eu”. Tão logo nossos primeiros pais pecaram, contudo, o Senhor prometeu-lhes a
redenção (cf. Gn 3.15), isto é, a salvação por meio do Descendente da mulher —
o Filho de Deus feito homem em cuja imagem fomos criados e somos transformados.
A transformação envolvida nessa salvação é descrita no Evangelho por dois
termos que preenchem a nossa carência de significado e de valor, a saber,
justificação e santificação. A justificação e a santificação removem a culpa e
o medo. A justificação redime o pecador da condenação da lei, segundo a qual ele
era alheio a Deus por natureza, desconhecedor de sua própria origem e destino,
e sem esperança num mundo de desafetos relacionais. Nesse sentido, a
justificação liberta o crente das algemas da escravidão “para a liberdade da
glória dos filhos de Deus” (Rm 8.21). A santificação, na mesma base da
justificação, redime o salvo do poder escravizador do pecado e capacita-o a
cumprir o espírito da lei. Assim, somos conduzidos ao conhecimento de Deus, ao
conhecimento de nós mesmos, e ao conhecimento do outro com diferente senso de
justiça e destemor por meio da aliança promulgada pelo próprio Deus, em Cristo
e pelo seu Espírito.
O problema, portanto, é que nenhum esforço humano para
transformar o “eu” poderá conjugar o ser em outra pessoa, singular ou plural. Isso
quer dizer que ninguém muda a si mesmo, tal como ninguém pode levantar a si
mesmo pelos cordões dos próprios sapatos, nem outros poderão mudar alguém, seja qual for a força do cordame ou as excelências das tralhas sociais ou
psicológicas. Siga o raciocínio:
(1) Nossa vida e o conhecimento de nossa identidade
residem no Verbo de Deus em cuja semelhança fomos criados a fim de refletir a
glória de sua própria identidade e para usufruir o processo (cf. Jo 1.1-14); é
disso que fala o texto de Ef 1.1-4, resumindo o processo na expressão para louvor da glória de sua graça (cf.
vv. 6, 12, 14).
(2) A Bíblia diz também que todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados
gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus (Rm
3.23-24), isto é, todos nós decaímos do estado original, por causa do pecado, e
não temos mais condições de refletir a imagem de Deus. Todas as pessoas
deveriam saber as coisas do homem
mediante o seu próprio espírito, mas
o homem natural, decaído, não aceita as
coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las,
porque elas se discernem espiritualmente (cf.1 Co 2.11-14).
(3) As pessoas não regeneradas não podem, portanto, conhecer
a Deus nem a si mesmas, como cita o apóstolo: não há quem entenda, não há quem busque a Deus ... Não há temor de Deus diante de seus olhos.
Tais pessoas não temem a Deus para obedecê-lo, tornando-se, portanto réus de
sua lei. Uma lei que condena os fora da lei e aos que vivem na lei ... para que se cale toda boca, e todo o mundo
seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por
obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado
(cf. Rm 3.11-20). Até mesmo, os que pretendem viver sem a lei de Deus mostram a norma da lei gravada no seu coração
quando a consciência e os pensamentos testemunham contra eles mutuamente acusando-se ou defendendo-se
(Rm 2.14-15).
Se as coisas são mesmo assim,
como poderemos abandonar nossa impressão
caricata para passar, então, à expressão
da pessoa que Deus criou para que fôssemos? Paulo responde à questão, em
Gálatas 3.22-29, dizendo que a
Escritura encerrou tudo sob o pecado, para que, mediante a fé em Jesus Cristo,
fosse a promessa concedida aos que crêem. Todos, crentes e incrédulos,
nascemos sob a tutela da lei e nela
encerrados, uns, buscando viver pela lei de Deus e, outros, pela própria
pela lei. Àqueles aos quais é revelada a fé da salvação pela graça consideram a
lei de Deus não como salvação por si mesma, mas como preceptora para nos conduzir a Cristo, a fim de que
fôssemos justificados por fé. Todos nós que fomos batizados em Cristo e
inseridos em seu corpo, a igreja, somos revestidos de Cristo. Como Paulo disse
em outro lugar, somos regenerados, feito novas criaturas para a santificação
(ou processo de desenvolvimento em fé e prática da Palavra de Deus). Daí em
diante, vamos nos desvencilhando dos papéis esdrúxulos a que naturalmente nos
obrigamos e somos obrigados — Dessarte,
não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher —
para assumir a herança que nos liberta para uma vida de genuinidade e de
autenticidade porque todos vós sois um em
Cristo Jesus.
O processo de santificação é
operado em nós pelo
Espírito de Cristo com base na justificação. Em Efésios
1.1-14, Paulo diz que somos feitos herdeiros das riquezas de Deus para sermos
sua própria herança. Em Romanos 8.17-30, o apóstolo diz que somos herdeiros
de Deus e co-herdeiros com Cristo, andando com a ele em condição
terrena para sermos também com ele glorificados. Como é que isso ocorre? A
própria criação, nosso ambiente físico e social, aguarda a revelação dos filhos de Deus! Tal como nós, ela está sujeita à vaidade ... por causa daquele
que a sujeitou, na esperança de ser redimida da corrupção para a liberdade dos filhos de Deus. Nós mesmos, que temos as primícias do
Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a
redenção do nosso corpo. Até lá, no entanto, somos educados na paciência e
na perseverança nos sofrimentos e na glória de Cristo. E não estamos sós nessa
caminhada, mas temos a assistência do Espírito Santo a operar em nós propósito
de sermos conformes a imagem do Filho de Deus. O Espírito de Cristo nos
fortalece e habilita a sermos autênticos filhos e genuínos irmãos tanto na
concessão do poder interior, por meio da oração, quanto no controle de todas as
coisas em benefício da revelação da imagem de Cristo em nós.
Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre
muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou,
a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou (Rm
8.24-30).
Wadislau Martins Gomes
Um comentário:
Simplesmente EXCELENTE! Para mim, foi uma grande benção, como você mesmo me disse:é lho agradar a Deus e não aos homens. Que Deus me ajude e derrame Sua abundante GRAÇA para que eu possa ser uma pessoa autêntica, sem embrolhos, verdadeira no que eu ache de mim mesma, com sabedoria, entendimento e criteriosa. Você escreve bem demais , como fala bem demais. Eu tenho orgulho de você, meu irmão. Deus o abençoe muito e sempre, em tudo. Abraços com saudades.
Postar um comentário