
-- É uma
temeridade querer criar filhos nesse fim do mundo, sem os mínimos recursos. Não
quero saber de neto bugre. Vocês estão jogando para as traças a todos os
recursos que eu providenciei a duras penas, toda a educação primorosa que
receberam. Com o estudo que você tem, poderia ser importante na vida.
A mãe que sempre lutou para vencer no mundo
profissional estava apavorada com a idéia dos filhos irem a um campo
missionário distante. Como não conseguia convencer a filha adulta, apelou para
a possibilidade de netos nascerem no meio da selva. Repetia a ladainha de
tantos outros que temem que as crianças
de missionários sejam privadas de todas as coisas boas da civilização.
Vinte anos
depois, sem ter feito cursinho, sem ter os benefícios da civilização, o “filho
bugre” neto dessa senhora entrou numa prestigiosa universidade, e desenvolveu
sua carreira acadêmica com nota máxima. Era alegria e motivo de gratidão dos
pais que continuam ativos no trabalho para alcançar um povo “que não têm
nenhuma importância no mundo e nem aparece no mapa do Brasil”. Estou falando de
filhos de missionários. O preconceito de muitos familiares cai por terra, e a
senhora avó descrente (se bem que ela, frequentadora ativa de igreja, rejeite
esse rótulo) descobre que o neto que veio visitá-la tem postura simpática e
inteligente.
Um dos
argumentos que este mundo pós cristão usa contra o trabalho missionário é que
os filhos serão privados da educação, do convivio com pessoas de seu próprio
ambiente de origem, de qualquer possibilidade de crescer e se tornar “alguém” na
vida. Aqui não ouso oferecer uma pesquisa científica do trabalho missiológico
dos últimos anos. Mas uma olhada de relance na vida das pessoas que optaram por
uma dedicação plena, servindo a Deus num “ministério” e ao próximo em campos
distantes que divergem da “vida normal” de classe média ocidenta mostra que bom
número dos filhos de missionários e pastores, longe de serem prejudicados pela
dedicação a Cristo de seus pais, foram abençoados e conseguiram brilhar além de
qualquer de seus pares educados no mundo competitivo de cultura pós moderna.
Descubro ainda que muitos grandes servos de Deus no cenário mundial e em nosso
próprio país tiveram a vida “errática e acidentada” de filho de missionários.
Pessoas a quem consideramos mentores e marcadores da vida cristã, como Dr.
Russell Shedd, Dr. Davi N.Cox, a Sra. Edith Schaeffer, eram todos filhos de
missionários, criados por pais que entregaram tudo para servir a Deus em meio a
um povo que não era de sua origem. É surpreendente o número de missionários de
segunda geração (ou terceira, (e como o caso da família Gordon, que fundou o
hospital evangélico de Rio Verde, vai para a quarta geração de servidores; os
filhos e agora netos dos Cox estão engajados no ministério cristão de tempo
integral) que, com dedicação e alto padrão de excelência, continua missionária
bivocacional.
Para o
cristão reformado e missional, não existe uma casta à parte dos que estão no trabalho missionário diferente de qualquer crente em Jesus Cristo
que desenvolve sua profissão coram deo. O
livro “O chamado” de Os Guinness,
elucida bem nossa posição. Somos todos chamados para amar e servir a Deus e ao
próximo, quer em vocação “secular” corriqueira quer em serviço eclesiástico ou
paraeclesiástico de tempo integral. Como servidora no lar e tradutora de
livros, ou minha amiga médica servidora pública que tem também clínica
particular e é mãe de crianças ativas, ou minha amiga que abriu mão de um
casamento há cinquenta anos, já trabalhou com três grupos indígenas traduzindo
a Palavra de Deus e elaborando cartilha prática para um pequeno povo
brasilíndio antes ignorado—nossa missão é onde estamos, no ambiente em que Deus
nos coloca, vivendo cada dia comum, tendo em vista a eternidade. Alguns de meus
amigos gastaram anos de preparo e hoje estão “no meio do mato sem cachorro”—que
aos olhos do mundo corrupto e cheio de sofrimentos constantes parece um
“desperdício”—mas têm em vista valores que não podem ser roubados e a percepção
de valor pessoal com peso de glória. Os Norval e Lau, Cléo e Raquel, Fábio e
Lucila têm brilho para desenvolver um trabalho profissional que marque o
país—usam, porém, a profissão e o preparo para ajudar povos desprezados e
esquecidos a conhecer e compartilhar a glória de Deus. Outros casais cristãos
vivem seu ministério como advogados, servidores públicos, pastores e
professores, odontólogos ou nutricionistas, também demonstrando a glória de
Deus em serviço ao próximo. Quer sejam sustentados financeiramente pelo fruto
do próprio trabalho quer por igrejas parceiras em sua missão, têm a consciência
de que são servos, não donos do mundo—e o fazem com dedicação total. Seus
filhos aprendem e imitam mãe e pai em missão.
Alguém
poderá enumerar as desvantagens de os filhos crescer sem frequentar as escolas
de vanguarda da cidade. Mas esses meninos têm escola de línguas in natura,
geralmente falando mais que um idioma sem seus pais pagarem um centavo para
garantir professores de fala nativa. Às vezes os próprios pais missionários
educadores dão a seus filhos ainda bem novos, além do currículo exigido pelo
MEC, aulas de antropologia prática, linguística aplicada, e teologia bíblica
para seus rebentos—sem a presença de bullying, as tentações de abusos da
televisão e internet, e certamente sem as distorções que nossos jovens da
cidade testemunham diariamente em suas escolas. Claro, chega uma hora que o
filho tem de estudar em um centro cultural na cidade—mas viveram a cosmovisão
cristã de seus pais missionários antes de ser inseridos na roda viva da
descultura brasileira.
Pode ser
que pais missionários negligenciem ou destratem seus filhos, por estarem
ocupados demais nas coisas do reino de Deus? Sim, é possível, mas é mais
provável maior negligência da parte de pais que dividem a vida entre o secular
e o religioso no mundo “normal” de carreira profissional, pelo acúmulo de bens
e de carga horária longe de casa, que sacrifiquem seus filhos e o próprio
casamento. Dedicar-se ao missional condiz bem com ver sua primeira missão
depois de glorificar a Deus como sendo ministrar em amor e bondade à família—o
que dá exemplo de prioridades e princípios para aqueles a quem ministram.
Os filhos
de missionários podem sentir que faltou dinheiro, conforto, recursos porque
seus pais escolheram uma vida de sacrifício? É possível se ressentirem—se os
pais deixaram de contar as bênçãos e se lamentaram do que não tinham ou não
puderam fazer ou dar aos filhos. Porém, se a atitude dos pais for de enumerar
as misericórdias do Senhor diante dos filhos e do mundo, considerando o
privilégio de serem embaixadores do Rei dos Reis, sem a ganância de querer
mais, transbordando do contentamento em toda e qualquer situação, esses jovens
não vão ressentir as “faltas”que presenciaram. Isso vale para missionários
transculturais, bivocacionais, ou crentes comuns em seu cotidiano que se
enxergam como servos do Senhor quer como peões quer príncipes no mundo que Deus
criou. Tem muita gente reclamando de crise e escassez num mundo onde escolheram
desprezar os tesouros eternos—sem o atenuante do obreiro cristão que se
descreve como “nada tendo, mas possuindo
tudo”.
Nem todo
filho de missionário ou pastor nem mesmo do Seu Mário Crente Comum é cristão comprometido com a Palavra de Deus.
Sabemos de filhos de missionários que, rebeldes, deram muita dor ao coração de
seus pais. Deus não tem netos—só filhos dos que creram em seu nome. Mas os
filhos da promessa têm a vantagem de crescer em ambiente onde a graça do pacto
de Deus os aninha e perturba até o ponto da conversão. Muitos filhos rebeldes
são exatamente aqueles que mais impacto terão para o reino quando se convertem. Tais fostes alguns entre vós...
Há também
aqueles incrédulos—mesmo entre chamados cristãos--que argumentam contra educar
filhos missionalmente porque querem mesmo derrubar qualquer parâmetro
“fundamentalista cristão”—preferem o fundamentalismo politicamente correto de
vale tudo (exceto o cristianismo bíblico) de fazer as próprias escolhas sem ser
tolhidos por Deus, igreja ou consciência cristã. Presos pelas cadeias do
pensamento do mundo que jaz no maligno, atolam e se debatem na lama enquanto
denigram os que educam na palavra em meio a culturas contrárias, preferindo
assimilar vícios e negar as virtudes do ensino do livro de Deuteronômio bem
como de Jesus que disse: “indo por todo mundo, preguem, batizando, ensinando...”
Ignoram a promessa: “Eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos”.
Elizabeth Gomes