Quando
começamos a mais recente saga de internação de meu marido no hospital, eu não
imaginava quanto bem faria passar quinze a trinta minutos por refeição com
estranhos, comendo do cardápio hospitalar gratuito para os acompanhantes de
pessoas internadas com mais de sessenta anos de idade. Fiquei agradavelmente
surpresa com a comida sadia e variada, aliviada por não ter de recorrer a
gastar uma nota preta três vezes ao dia em restaurante ou lanchonete da vizinhança.
Bastava a preocupação com gastos exorbitantes com remédios e a diferença no
preço das diárias não cobertas pelo seguro.
O refeitório
do hospital é utilizado pelos seus funcionários e pela plêiade de pessoas cuja
única característica partilhada era ser acompanhante de algum doente. No meu
caso, sou única acompanhante de meu marido, noite e dia, vinte e quatro horas
por dia. Prometi estar ao lado dele na saúde e na doença, e este é um momento
na doença. Ele já esteve comigo em situação semelhante diversas vezes, e é meu
melhor amigo há meio século. Ainda bem que diante da eternidade de Deus, este é
apenas um breve momento.
O filho e a
nora vem sempre e ajudam, compartilhando sonhos e notícias do mundo lá fora,
trazendo e levando roupas limpas ou sujas, orando conosco e por nós. Temos
recebido visitas memoráveis de amigos preciosos e conhecidos importantes, mas a
gregária Beth sente falta de respirar ar frescode fora, sentir a comoção de
gente, de contrabalançar caseirice pé no chão com sede de estímulos para a
mente enquanto o coração se arrebenta, se quebra e se refaz todo dia a cada
hora. Aqui observamos um universo de mundos, ao ver o próximo, e aprendemos a
amá-lo, ou, no meu caso, amar as mulheres que se aproximam, pelas histórias de
vida contadas e ocultadas nas pequenas conversas.
-- Está
acompanhando mãe? Pai? Marido? Filho? Irmã? Vizinha?
-- É
cuidadora de uma velha senhora que não tem ninguém na família que a aguente?...
Ana, a
única disposta a ajudá-lo, (uso nomes fictícios por razões óbvias) cuida do
ex-marido que a abandonou anos atrás.
Berenice
cuida com dedicação do pai idoso enquanto lida com a descoberta e dor de ter
sido traída pelo marido companheiro de trinta e cinco anos de vida juntos.
Carmem,
além de sessentona, vê a mãe senil de noventa anos chorar que nem criança pelo
dodói que ninguém quer fazer sarar, devido a fêmur e duas costelas quebradas.
Desidério,
aparentando ter uns oitenta anos e mal de Parkinson avançado, cuida da mulher
com câncer em fase final. Suspeito que quando ela entregar os pontos, ele irá
segui-la como uma brisa suave para o mundo futuro.
Élida, uma
mulher armênia de grande porte e imensos olhos tristes, cuida da ex-cunhada.
Fátima é
cuidadora profissional que lamenta não ter voltado para o Piauí quando lhe avisaram
que sua mãe estava nas últimas; por conseguinte tornou-se especialista em
tratar bem as senhoras paulistas e estrangeiras que, revoltadas e solitárias,
esperam a morte chegar.
Claro que
todo acompanhante tem a ambígua esperança de ver seu querido (ou até mesmo seu
desprezado) paciente ter melhora, ainda que essa possibilidade seja também
fonte de inquietação. Amor, obrigação, culpa, caridade, sina, possibilidade de
algum lucro no meio das perdas todas—mil e uma histórias diferentes e sem fim
em um mesmo refeitório, servindo-se de sopa, arroz, feijão, carne ou peixe,
massa, legumes e salada, sobremesa e suco. Alguns se isolam na multidão;
algumas pessoas comem com as lágrimas salgando sua refeição, enquanto outros
não largam o celular, mastigando devagar e demorando para voltar à enfermaria
ou ao quarto bem-equipado onde tudo pára enquanto a vida de uns se renova e de
outros se esvai.
Parece-me
que este hospital não tem o júbilo da maternidade. Um enfermeiro me informou
que as maternidades dão pouco lucro a seus proprietários pela curta permanência
e rápida alta das pacientes. Este hospital é especialista em partidas—em dar
altas por cura, melhoras e soluções—se bem que o alto índice de geriatria não
esconda as ocasiões em que enfermeiro conduzem uma maca com paciente totalmente
coberto, que levam ao subsolo, enquanto quem estava no quarto acompanhando
ajunta, aos prantos, a pequena trouxa de pertences do seu querido.
Quando vim
com Lau ao hospital, além da tristeza por ver como meu homem forte estava mal,
meu apoio de vida, carente de tudo e necessitado de tudo que eu pudesse fazer,
eu tinha também uma frustração egoísta
por não ter liberdade para fazer o que eu sempre fazia em casa—nem acesso a
livros, nem possibilidade de traduzir e escrever. A hora era de ministrar para
aquele que sempre cuidou de mim. No quarto, Wadislau me ensinava a orar sem
cessar, interceder e procurar na Palavra
de Deus respostas às nossas muitas indagações do porquê das coisas. Descobri também
um ministério junto a essas pessoas no refeitório: falar do amor de Cristo,
orar com elas e por elas. Ao lembrar ainda hoje dos longos dias no hospital,
trago à memória pessoas carentes da graça de Jesus, e intercedo por elas,
algumas das quais nem o nome me recordo.
Estamos em
nossa casa, onde cada dia fazemos curtas caminhadas pelo jardim, e Wadislau se
reveste de forças, “sempre melhorando” (com isso, lembro do corinho de
adolescência). Vamos nos renovando na singularidade do dia a dia, vendo de
primeira mão a grande fidelidade de Deus. Agradecemos por cada aspecto da
epopéia que passamos. E estamos esperançosos, gratos pela alegria de viver o
céu agora, com a perspectiva de um futuro certo.
Elizabeth
Gomes
Um comentário:
Ótimo!
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