quinta-feira, janeiro 23, 2014

DE LEIS E LEGALISMO

 

Talvez um dia necessite dos serviços de um; tenho amigos e amigas advogados, e admiro os que abraçam essa ingrata profissão com cristianismo e autenticidade, mas aqui não falo de jurisprudência, nem mesmo de prudência de juízo. Estou me referindo àquelas coloridas guirlandas de flores tradicionalmente oferecidas pelos habitantes do Havaí aos que chegam de longe: leis. Anos atrás, quando o quinquagésimo Estado dos Estados Unidos foi acrescentado, as leis estavam em alta, assim como foram acrescentados ao nosso vocabulário doces e perfumadas palavras hula e luau. Lembravam as guirlandas que, pouco mais tarde, enfeitariam as cabeças das flower children. E eu, sintonizada ao vocabulário bíblico desde a infância, lembrava de Provérbios:Não te desamparem a benignidade e a fidelidade; ata-as ao pescoço; escreve-as na tábua do teu coração e acharás graça e boa compreensão diante de Deus e dos homens” (Pv 3.3-4). O presentear das leis e do ensino não seriam apenas oferecidos de maneira graciosa, como também deveria ser lavrado de forma permanente (nas tábuas do coração) para que se encontrasse graça e boa compreensão diante de Deus e dos homens (aquilo que Lucas descreveu como característica do menino Jesus (Lc 2.40).

Aqui, faço trocadilho com a lei de Deus e leis dos homens, e as leis, os colares de flores com que se premiam aqueles que possuem benignidade e fidelidade como modus vivendi. Reflito sobre o que comunicamos ao próximo—aos familiares, aos colegas de labutas e de lazer, de ministério ou magistério ou cemitério, aos irmãos na fé e aos ermanos de fé com quem nos irritamos ou discordamos. A esses, quer os chamemos de primos quer demos toda gama de nomes zombeteiros, simpáticos, antipáticos ou apáticos—acabamos comunicando que nos consideramos melhores do que eles, ou mais inteligentes, ou mais espirituais, ou menos xiitas, ou mais humanizados, ou menos preconceituosos—qualquer coisa mais ou menos). Confesso que no desejo de comunicar com exatidão, eu também tenho a tendência de aplicar rótulos a tudo e todos em vez de oferecer leis de graça e beleza.

Fui criada de maneira legalista, apesar de conviver com pessoas que eram pródigas do amor de Cristo e tiravam a própria camisa para dar a quem carecia de vestes e comida de nossa mesa a quem tinha fome. Meus pais dariam a vida para ver pessoas salvas e seguras em Cristo. Nenhum esforço era poupado. Muitas vezes, vi em casa a atitude do apóstolo Paulo de “me gastarei e ainda me deixarei gastar” em prol das almas, não só dos antigos pastores, missionários, evangelistas e professores, como também imitado por crianças, jovens, mulheres e homens maduros, bem como idosos. Mas, como muitas vezes eu mesmo já fiz e ainda faço, ai de quem me perturba o sono por bobagem, ou incomoda minhas horas de folga ou meu espaço particular! Especialmente quando eles estão errados! Essa questão de rótulos, por exemplo. Tenho por certo que Romanos 12.3 deveria nortear a vida dos filhos de Deus: “... não pense de si mesmo além do que convém, antes, pense com moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um”.
                Tive uma educação cristã presbiteriana tradicional até os doze anos de idade, quando passei com minha família para uma igreja batista renovada cheia do espírito de incontáveis “usos e costumes” e severas críticas à “geladeira morta” da qual havíamos saído. Aos treze anos, eu desejava mais de Cristo, maior espiritualidade, maior poder, e, em Porto Alegre, lembro-me de ter perguntado a um pastor conferencista como eu poderia ter o dom de línguas, já que eu lera tudo e dera todos os passos necessários. Ele disse para eu simplesmente abrir a boca e balbuciar “de início, sons e palavras sem sentido, mas repeti-las em oração até que o Espírito ponha em sua boca as suas palavras e você receba o dom”!
Na mesma época, comecei a frequentar o acampamento Palavra da Vida e buscar um crescimento espiritual baseado na Palavra de Deus. Em 1965 fui da primeira turma do Instituto Bíblico Palavra da Vida, onde ainda jovem, aprendi a examinar e manejar bem as Escrituras, aquecer o coração com evangelismo e missões, e adquiri uma visão fortemente dispensacionalista da história da igreja. Indo aos Estados Unidos por um ano e meio, frequentei Southeastern Bible College que tinha basicamente a mesma posição doutrinária que Palavra da Vida—mas em Birmingham, Alabama de 1965-66, fiquei chocada pela maneira como o preconceito racial e a total falta de amor cristão para com os que “não são dos nossos” convivia e dominava o “cinturão bíblico”. Voltei ao Brasil e à escola que deu rumo bíblico à minha fé, ao amor da minha vida que sempre me pastoreou com visão e entrega, e casando, continuei estudando e me preparando (e gestando o primeiro filho) enquanto levantávamos sustento e antevíamos um ministério de ensino e evangelismo.
Os primeiros anos de missionária eram regados igualmente pelo desejo de mãezinha e dona de casa, cantando e contando histórias de vida apesar de minha própria vida ainda ser tão jovem. Estabilidade e mudanças se alternavam; fomos a São Paulo, passamos a integrar o quadro de missionários da própria escola da qual nos formamos. Eu assumia os papéis que me eram impostos: esposa de pastor, mãe de crianças pequenas e muito ativas, sempre disposta a dar aulas, cantar, falar, servir – trabalhava sem cessar e estava sempre cansada. Enfim, na trajetória doutrinária, aprendi com meu marido e professor a ver com olhos reformados e assumi uma cosmovisão que parece vir de encontro aos anseios de piedade bíblica.
Mas não comecei este artigo querendo relatar uma biografia pessoal. Comecei comentando a dádiva de leis-guirlandas, para então compará-las com o legalismo que atravanca tanto a vida dos cristãos que conheço. Nós conhecemos a Verdade e esta nos libertou, mas nada disso vem de nosso mérito—é tudo pela graça, de graça e para o louvor da glória de Jesus. Podemos ter origens até mesmo farisaicas (como Saulo de Tarso, acusador do primeiro mártir da era cristã, cf. At 7). Mas não precisamos ter atitudes de quem é dono da verdade—temos de conduzir-nos como servos, como Cristo, que aturou perguntas tolas e lavou os pés poeirentos dos discípulos, despindo-se como um escravo. Aquele que se despiu da glória de sua divindade para assumir carne e osso da humanidade, sem deixar de ser Deus Conosco, tornou-se Cristo em Vós.
Tenho amigos gloriosos e impactantes no cenário cristão atual, alguns famosos, embora nem todos sejam conhecidos e admirados publicamente. Aquela irmã humilde que ora incessantemente pelos filhos e pelo Reino carrega o mesmo peso de glória que o querido Billy Graham que pregou a tantos milhares e hoje espera apenas ser promovido com “muito bem, servo bom e fiel”. O jovem crente que venceu o maligno e vive em humildade testemunhando em seu local de trabalho e entre amigos, a ocupada mulher cristã de carreira que cuida sozinha de seus filhos e de seus pais idosos e ainda sonha com um companheiro, o casal de pastor-mestre e esposa ajudadora que enfrentam a infertilidade pessoal enquanto diariamente ganhem pessoas para Cristo, o já-avô-mas-ainda-não-aposentado que vive o “já mas ainda não” da vida cristã em todos os seus níveis—todos, e cada um de nós, temos uma leve e momentânea tribulação a enfrentar. Como é que queremos fazer comparações, designar rótulos, dar notas de mérito ou desmerecimento uns aos outros? Ora, as coisas que se vêem são temporais—vamos para o que importa: o que é eterno. Existe apenas uma coisa que deve nos constranger, nos perturbar, nos diferenciar, enquanto ao mesmo tempo nos iguala: o amor de Cristo (2 Co 5.14).
Tenho uma amiga de face que oferece flores a cada dia, e hoje, ofereço a cada amigo, leis de flores coloridas e perfumadas. Não aprovo a incredulidade, ilegalidade e antinomianismo de alguns irmãos que querem solapar os fundamentos da fé. Mas desejo que o constrangedor amor de Cristo substitua nossos julgamentos tolos e nossos legalismos para que edifiquemos e cresçamos o Corpo bem-ajustado e consolidado!
Elizabeth Gomes

Nenhum comentário: