quinta-feira, janeiro 23, 2014

AMOR DÓI, MAS DÁ UM BEIJINHO QUE PASSA




Amigos são benefícios do Senhor – além de tudo o que se pode contar. Somam forças, multiplicam afetos, dividem alegrias e sofrimentos e, de sobra, dá gosto de ver o resultado. Amigos como esses têm valor (Provérbios 27.10); são como óleo e perfume para o coração e seus conselhos são doces (Pv 27.9) e, até mesmo, o seu olhar nos faz bem (Pv 15.30). Quando preciso, desafiam-nos como o ferro afia o ferro – e isso dói, mas, até aí, é ferida de amor (Pv 27.5-6). Eles estão aí a todo tempo (Pv 17.17), na riqueza ou na pobreza, na saúde ou na doença (cf. Pv 19.4). 

Na aritmética bíblica, no entanto, o “homem que tem muitos amigos sai perdendo”, valendo mais os poucos amigos (e eles existem!) quando são mais chegados “do que um irmão” (Pv 18.24). 

O modelo perfeito desse tipo de amigo é o Senhor Jesus Cristo, que disse:

Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos. Vós sois meus amigos, se fazeis o que eu vos mando. Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer (João 15.13-15). 


Neste mundo, tem amigo de todo tipo. De amigos de casa, têm de sala e de cozinha. Tem amigo da casa ao lado, amigo de “bom dia” e de “como vai?”, com ou sem intenção de resposta. E tem Amigo da Onça. Lembra dessa criação de Péricles, inspirada na piada?

“Dois caçadores conversam:
- O que você faria se uma onça aparecesse?
- Ora, dava um tiro nela.
- Mas se não tivesse nenhuma arma?
- Então eu usava meu facão.
- E se estivesse sem facão?
- Subiria na árvore mais próxima!
- E se não tivesse nenhuma árvore?
- Sairia correndo.
- E se você estivesse paralisado?
Então o outro retruca:
- Mas você é meu amigo ou amigo da onça?”


Amigos, muitas vezes, doem. Uns doem dor como de parto e dão à luz a misericórdia (cf. Hebreus 2.17-18). Outros há que doem como piruá na cava do dente. De fato, alguns se sentem íntimos somente quando criticam, e conseguem pegar no nervo do dente. Há outros que nem é bom lembrar. Quando estamos em pé, apoiam-se nos nossos ombros, mas, se tropeçamos, alegram-se e se reúnem contra nós (Sl 35.14-15). Assim, para não incorrer no pecado da ira ou da amargura, talvez, melhor, será trazer o sentimento mencionado na Bíblia: “Até o meu amigo íntimo, em quem eu confiava, que comia do meu pão, levantou contra mim o calcanhar” (Salmos 41.9) e “Com efeito, não é inimigo que me afronta; se o fosse, eu o suportaria; nem é o que me odeia quem se exalta contra mim, pois dele eu me esconderia; mas és tu, homem meu igual, meu companheiro e meu íntimo amigo” (Sl 55.12-13).


Em relação aos primeiros, não resta dúvida: havemos de ter o mesmo ânimo, ser compadecidos, ser amigos fraternos, com toda misericórdia e humildade; retribuir sempre o mal com o bem, e ter sempre uma palavra de bendição, para estes e destes para os outros (1 Pedro 3.8-11). O que fazer, porém, com os amigos da onça? 

Ora, se o Senhor mandou amar os inimigos, por que não amar também aos que são mais amigos do bicho? Ele, o perfeito Amigo, sabendo que seus inimigos o afligiriam com acusações maldosas, que os seus amigos o abandonariam, que um seu amigo o negaria, ainda assim e sobre tudo, “sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (João 13.1).


Esse tipo de amor é extremamente libertador. Um dia, procurado por alguns homens com respeito a dificuldades na relação com um pastor, respondi que o certo seria amá-lo e honrá-lo, a que ouvi: “Mas eu não gosto dele”. “Amar não é gostar (se bem que o amor acaba produzindo esse gosto)”, respondi; “amar é fazer o bem.” 

Uma jovem que havia sido abusada pelo pai, declarou: “Nem quero pensar sobre ele”. A cada manhã e a cada passo, porém, ela nutria na boca e na alma o gosto ruim de fel e ferro, perpetuando uma escravidão amarga. “Sabe”, falei, “Deus quer que você ame e honre a seu pai. Dado que ele é um abusador, Deus não requer que você tenha prazer em sua presença nem fique perto dele. Mas amar e honrar, isto é, fazer-lhe o bem e não maldizê-lo, é algo de que você precisa, a fim de experimentar a libertação que há na obra de Cristo". 


O amor à semelhança do Perfeito Amor, Jesus, pela graça mediante a fé, apega-se à verdade e confessa toda injustiça e, porque tudo crê, tudo perdoa (cf. 1 Coríntios 13.6, 7). Sei que para nós, que ainda vivemos em nossa carne decaída, esse tipo de amor parece nos quebrar os dentes e estraçalhar o coração. Parece reviver a dor que mais desejamos evitar. Não é assim, porém, antes, o exercício desse amor restaura a alma.

A despeito de toda a ânsia quase incontida de sermos amados – alvo impossível de ser sempre atingido e mantido – no fundo no fundo o de que precisamos é amar. Deus nos criou em seu amor, para amá-lo sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, e, se não tivermos seu amor para dar, jamais seremos satisfeitos.

O coração deseja amar o amigo, o pai, o colega. Quando, porém, não somos correspondidos nesses afetos, vingamo-nos, negando-lhe o nosso amor. “Você não gosta de mim? Eu não gosto de você primeiro!” O amor de Cristo, porém, ama primeiro, a despeito e antes de tudo. Certamente, muitas vezes, pecaremos tanto por não amar quanto por sofrermos ao não ser amados. Nessas horas e situações é que a lição do apóstolo Paulo, pelo Espírito Santo, vem em nosso socorro: “Eu de boa vontade me gastarei e ainda me deixarei gastar em prol da vossa alma. Se mais vos amo, serei menos amado?” Ou, como diz outra versão, “ainda que, amando-vos cada vez mais, seja menos amado” (2 Coríntios 12:15). 

Essa é a aplicação da grande verdade do amor do Pai: “Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Romanos 5.8). Afinal, não é essa a nossa vocação: “Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Como está escrito: Por amor de ti, somos entregues à morte o dia todo, fomos considerados como ovelhas para o matadouro” (Romanos 8.35-36).  


Wadislau Martins Gomes

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