terça-feira, outubro 16, 2012

UMA DO "SEU" GARCINDO


Lá na pequena Bocaina, os quase setenta anos do seu Garcindo fazem gosto. Bole na horta, inspeciona a cozinha da dona Déia, paga um tempo no quarto munido de óculos e Bíblia, larga o corpo na cadeira de preguiça do alpendre e vê passarem os amigos e a semana. Aqui e ali, um dedo de prosa com o seu Amâncio, vizinho da esquerda que havia se convertido, com o da direita que ainda reluta um pouco, ou com um e outro conhecido. Mudança, muito pouca. Mas a espera do sábado com promessa de domingo enche-lhe a alma e os dias. Sábado tem filhos e netos chegando, reunião de famílias amigas “para falar de Cristo” e, domingo, a igreja.

Seu Garcindo conheceu a fé ainda moço na fazenda onde ouviu um pregador falar de “Jesus Cristo, do povo de Deus, e de mim”. Vida simples, devoção profunda, muito gosto de orar com e por dona Déia, de orarem juntos pelas famílias já saídas de casa, e pelo pastor e “irmãos da igreja”. Um evangelho simples, entendido e obedecido em oração.

Outro dia, vieram uns moços de igreja da Capital para passar o fim de semana. Encheram as casas dos crentes com histórias e risos parecendo assuada de passarinhos. Tinha de tudo, pardal, andorinha, sanhaço, beija-flor, corruira... e também falavam de tudo, de folha de alface e quirera até painço e farinha de minhoca. Em igrejês, havia um tal de louvor diferente, umas coisas de célula, oração de poder, estratégia de crescimento de igreja – “tudo muito longe do meu bico”. Umas aves mais sofisticadas falavam de neoisso, neoaquilo, quem era mais penado, mais colorido, mais bicudo...

Seu Garcindo ficou a semana inteira com a visita enroscada na cabeça “que nem colerinha no visgo”. Eram os trilados que a passarada usava para cantar na mesma língua, “bem afinados, mas muito novidadeiros”, as críticas dos urubus aos gorjeios dos curiós, os eu acho e eu preciso que era mais para ter o que ciscar do que para comer.

Enquanto regava o canteiro, arrancava uns matinhos e juntava mais terra ao pé da planta, seu Garcindo dava tratos à bola, digeria uns pensamentos e dava lá suas tiradas com os próprios botões. Na sexta-feira, depois das orações, ele disse à dona Déia:

— Sabe, mulher, não sei se vou conseguir ser crente do jeito que os crentes da Capital falaram; já devo estar velho pra isso. Pensei, meditei, e cheguei a umas coisinhas.

— Que coisinhas?

— Ah! concluí que vou ficar com o que tenho, arrancar o que não presta, e crescer naquilo que ainda não tenho.

— Como assim?

— Bom, é melhor chorar com o que deve ser chorado do que rir a toa e fazer graça para parecer alegre; é melhor ter fome do reino de Deus do que ciscar na terra da insatisfação.

— Explica, meu velho.

— Por exemplo: quero ter humildade para saber o meu lugar no reino de Deus, mansidão para não querer controlar as coisas, misericórdia para entender os problemas dos outros, limpeza de coração para ver o que Deus está fazendo, e paz do nosso Senhor para viver com todos.

— Mas será que não vão dizer que você não é bom crente?

 Wadislau Martins Gomes

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom! Parabens!!

Anônimo disse...

Excelente a resposta e convicção de "seu Garcindo", "crescer naquilo que ainda não tenho".
Em poucas palavras, essa simplicidade com profundeza no coração e percepção do reino de Deus que desejo ter.
Clodoaldo