quinta-feira, julho 26, 2012

ABUNDANTE GENEROSIDADE



 
Quando morávamos em Filadélfia e Wadislau fazia pós-graduação, trabalhei em uma biblioteca pública para ajudar com o sustento de nossa casa. Ganhava pouco, mas tive oportunidade de aprender muito com duas paixões: gente e livros (o que leva de volta aos dois grandes impactos de nossa vida: pessoas e ideias). Conheci pessoas estimulantes, inteligentes, que sempre faziam pensar mais. E pude ler livros que marcaram minha vida. A biblioteca pública de duzentos mil volumes tinha cerca de seis ou sete funcionários, e contava com a ajuda de vinte a trinta voluntários para fazer o trabalho de catalogar, guardar e atender aos muitos clientes. Certo dia, um voluntário da biblioteca perguntou à chefe se não havia algum livro ou revista em língua portuguesa, a que ela respondeu: “A biblioteca só tem livros em inglês, mas procure com essa assistente, que ela veio do Brasil” – e apontou para mim.

Aí começou uma grande amizade com Hugo e Carole Rosenau. Mr. Rosenau era judeu alemão que foi preso e mandado para Auschwitz com toda a família, incluindo a namorada, Carole. Apesar de ter visto dizimada sua parentela, e todos terem sido separados e alquebrados pelos anos de campo de concentração, sobreviveram, e, quando a guerra terminou, seus pais e a namorada foram para os Estados Unidos. Hugo teve asilo no Brasil. Foi parar em Salvador, Bahia, por onze anos, antes de conseguir migrar para os Estados Unidos, onde reencontrou os pais idosos e, noutro lugar, a não mais tão jovem namorada. Casaram e estabeleceram família em liberdade.

Dizia Mr. Rosenau que nunca se esqueceu da generosidade dos brasileiros que o acolheram, e queria algum contato com coisas do Brasil. Elegeu a mim com minha família brasileira para uma amizade singular. Eles nos convidaram para jantar em sua casa, para celebrar Chanukah e ir à sinagoga em várias ocasiões. Sempre nos presenteavam com pequenos gestos e grandes oportunidades culturais – especialmente com entradas para assistir a apresentações de orquestras sinfônicas, teatro e shows de diversos tipos. Pelo menos duas vezes por mês, tínhamos essas saídas, às vezes junto deles, outras vezes, só para mim e meu marido. Nós também os recebemos em nossa casa com refeições e gravações de músicas brasileiras. Todos os dias, Mr. Rosenau ia visitar seu idoso pai (já com 95 anos) na casa de repouso que ficava a um quarteirão de nossa casa, e no trajeto, jogava em nossa varanda o jornal do dia (o New York Times e o Philadelphia Inquirer), que acabara de ler (ele amava a literatura e o teatro) “para que nós tivéssemos também a leitura das notícias frescas”. Carole me chamava para ir à floricultura quando planejava acrescentar alguma muda ao seu jardim.

Hugo foi chamado a Nova York para uma homenagem aos sobreviventes do holocausto, onde sua entrevista foi filmada e sua história divulgada pelo mundo. O casal judeu reformado (a ala mais liberal do judaísmo) na casa dos setenta anos, e o casal brasileiro cristão reformado (o segmento mais ortodoxo do protestantismo) no começo da casa dos quarenta anos, firmou amizade inesquecível.

Depois que voltamos para o Brasil, tentei manter contato com eles, mas o cartão de Rosh Hashanáh que enviei ao seu endereço voltou com carimbo de deceased – falecido. Nunca mais soube deles nem consegui os endereços de seus filhos, que moravam na Europa e em Washington, para expressar nossos sentimentos pela perda.

Nos nossos três primeiros anos de ministério em Belo Horizonte, quando recém-formados, fomos missionários entre os judeus. Contudo, o maior e melhor tempo que tivemos de amizade com judeus foi em Elkins Park, Pennsylvania, com os velhos Hugo e Carole. Eles ouviram o evangelho, mas nunca manifestaram interesse mais profundo em Yeshua Hameshiah. Nós orávamos por eles e falávamos sem forçar o evangelho goela abaixo. Só Deus sabe se houve conversão no final – nós não víamos nenhum indício disso no tempo em que andamos juntos. Mas sempre nos lembraremos dos Rosenau com carinho, como os amigos generosos que foram conosco. Queria que nós, como cristãos comprometidos com a abundante bondade e misericórdia de Deus (Ef 1.8), tivéssemos sinais da generosidade que aqueles descrentes marcados pelo holocausto demonstraram a um pastor presbiteriano estudante em terra estranha e a sua mulher assistente de bibliotecária do Montgomery County, nos anos oitentas.

Elizabeth Gomes

3 comentários:

Rev. Ricardo Rios Melo disse...

Lindo texto e linda história! Deus a abençoe!

tania cassiano disse...

Edificante! Essas pessoas têm muito qoue nos ensinar, em termos de superação, amizade, generosidade e perdão, nós em troca devemos ter os mesmos sentimentos e principalmente a pregação do Evangelho, que a Sra. fez de modo a não forçar uma aceitação e aceitando-os, amando-os, respeitando-os nas suas convicções. A Sra. e eles foram privilgiados por tão boa amizade.
As.

SAMYR ATIQUE disse...

BETH,EMOCIONANTE.TOCA A ALMA PARA SERMOS CRISTÃOS COM REFERENCIA DA MARCA JESUS CRISTO.MUITO OBRIGADO PELA SUA VIDA E DO LAU QUE SEMPRE NOS INSPIRARAM.COM AMOR SAMYR.