terça-feira, março 27, 2012

ARTEFATOS ESMIUÇADOS


Kitty (minha irmã) e eu juntamos e dividimos os pertences de nossa mãe depois que ela faleceu. Mamãe havia deixado ordens detalhadas sobre roupas, móveis, e os objetos de decoração de casa. Eu não teria como trazer minha parcela dos móveis ao Brasil – gastei acima do que podia só para trazer alguma louça, prataria e enfeites que haviam estado na família por muitas gerações. Não ficou resolvida a questão da casa em si, porque mamãe havia comprado junto com minha irmã e o seu marido e, com a crise financeira dos Estados Unidos, dizem que a casa desvalorizou bastante e agora não seria hora de vendê-la.

Uma coisa que encontrei nos dias depois do passamento de mamãe – e deixei para buscar depois – foi uma enorme caixa de papelão com as cartas que escrevi para ela durante os mais de quarenta e cinco anos em que estávamos longe – eu no Brasil e ela nos Estados Unidos. Essas cartas contavam uma história da graça e misericórdia de Deus em meio a vidas imperfeitas e relacionamentos carregados de perguntas. A caixa desapareceu. Até agora, minha irmã não a encontrou – o que para mim seria um tesouro documentando a vida da serva de Deus que foi nossa mãe.

Numa reflexão tardia, lembrei-me de outro tesouro mais palpável: os plumários indígenas e os bonecos karajás que meu pai havia coletado e levado aos Estados Unidos anos atrás. Eu não estava tão interessada em arcos e flechas e tacapes, mas lembrei dos lindos cocares coloridos que papai tinha exposto na parede de seu escritório quase cinquenta anos antes. Vi e admirei plumários semelhantes aos que guardava em minha memória, no consultório de um médico em São Paulo, e imaginei se as “nossas” penas todas teriam se desfeito. Perguntei-me se haveria jeito de encontrar novas penas para refazer aquelas coroas de beleza.

Foi então que me lembrei dos bonecos. Papai tinha uns cinquenta bonecos coloridos de cerâmica karajá, mostrando os brasilíndios em variadas atividades cotidianas – sentados perto da fogueira, ralando mandioca, pintando o corpo da filhinha, pilando uma fruta, pescando, catando piolho. Então, deixei minha mente vagar como quando em criança via as obras de arte. Certamente valeriam algum dinheiro se as vendêssemos a um museu (pensei até no Smithsonian!) e dividíssemos, minha irmã e eu, os proventos, meio a meio. Antes de nos desfazer do tesouro, tiraríamos fotografias de todos os bonecos – talvez algum até servisse como capa do romance que escrevo baseado em missões indígenas. (Meu livro não se refere aos carajás – mas a arte em barro deles é inigualável e imaginei que chamaria atenção ao meu trabalho escrito da imageria indígena.) Minha irmã sabia da existência desses objetos, mas não sabia onde estavam. Sugeri que ela procurasse no sótão e no porão até encontrar – nós duas iríamos lucrar com isso. Semana passada ela me telefonou e contou:

– Achei a mala do papai e da mamãe com os bonecos Karajás. Você acredita que mamãe – que sempre foi tão cuidadosa com os pertences – enfiou todos os bonecos na mala sem que fossem embrulhados um a um – sem nenhuma proteção?! Estão todos quebrados em mil pedaços! Não sei como será possível restaurar nem uma bonequinha sequer. Virou tudo caco de barro. Com certeza, mesmo que consigamos remendar alguns, não terão mais nenhum valor. Vou levar à escola de belas artes para eles verem o que conseguem inventar com os cacos. Eu chorei de raiva – ela arrematou.

Eu não chorei, mas vi mais um pequeno sonho despedaçado. Então, ao refletir sobre o fim desses artefatos, pensei no fim de nossa vida. Não fim final, mas fim objetivo, finalidade. Os bonecos haviam atravessado o oceano e anos de mudanças para muitas casas diferentes e em situações diferentes. Meus pais – e suas duas filhas – como o apóstolo Paulo, souberam o que era viver a experiência, tanto de fartura como de fome (Fp 4.11-13). E apesar dos pesares, e apesar de artefatos impossíveis de serem restaurados – tudo posso naquele que me fortalece!

Elizabeth Gomes

Um comentário:

Maria Isabel Corcete Dutra disse...

Como têm valor as nossas memórias. Estão entre meu tipo de literatura favorito.

Revivo minha própria vida quando as leio aprendo com a vida rica de outros...e enriqueço a minha vida.

A Beth sempre faz referências, traz memória de pessoas, fatos e ideias. Gosto muito. A vida fica mais rica.