quinta-feira, novembro 10, 2011

MEMÓRIA DE ELEFANTE


De saída do Brasil por algum tempo, Beth e eu fomos nos despedir do irmão cuja idade chamava esse cuidado. Depois de quase meia hora de aguardo veio ele, levantando o braço num tic característico. “Que bom vê-los... estava orando por meu filho” – os olhos do Dr. Fanstone estavam úmidos de rogo – “e o tempo passou... a única coisa que aumenta com a idade é meu forgetfulness...”

Comigo ocorre coisa igual, de maneira diferente. Sou esquisito. A falta de memória vai crescendo para muita coisa boa, mas consigo me lembrar até mesmo do endereço do Manezinho que me bateu quando eu era menino. Memória de elefante.

Hoje, meio esquecido dos males que posso e devo ter causado, estava lambendo feridas de leão sem dente. É que mágoas novas fazem arder cicatrizes antigas, irritando a pele da alma com possibilidade de brotoeja que se mal cuidada pode até virar pelagra. Lembrei da palavra má que não foi contida, da verdade dita sem amor, da mentira que foi estouro de manada, da ingratidão que cuspiu no prato em que comeu. Ia por aí, quando me dei conta de que qual cachorro abusado, eu estava latindo para as sombras da noite que já havia passado.

            Confessei a Deus e continuei a lembrar. Um dia, antecipando a chegada do pastor Ary, implorei a Deus que pusesse um pouco de óleo na panela lá de casa. À época, pior do que passar fome era não ter o que servir ao amigo. Na rua, entre trabalho e oração, ouvi: “Pastor!” Era um diácono da igreja batista, secretário de estado, que continuou: “Bom encontrá-lo. Achei em casa um cheque do ano passado que deveria ter passado... aqui está em espécie”. Bem da espécie do que eu precisava.

            Outra vez, a casa cheia na fazenda de O Refúgio, recebi um hóspede com honra de empresário de proa. Como sempre, vai oração. O que tínhamos era farinha, e ovos e verdura de quintal. Já quase na hora de cumprir a obrigação de comer, ouvi os gritos do Chiquinho, mirrado como sagui molhado: “O pai tá chamano; o boi infiô os chifre na furquia e ta morreno e pricisa abatê”. Rápido que nem vôo de andorinha, atendemos o chamado. Davi preparado para carnear o bicho, Deborah e Daniel de olhos acesos, Beth meio assustada, eu disposto a brandir a marreta, e o visitante experiente de muitas caçadas, com faca curva na mão. Deu carne para todo mundo; ao colono, as carnes duras, “melhor pra charque”, e, a nós, as carnes “moles”.

            Depois, como para macaco que muito pula, veio o chumbo. O acidente em que atropelei um burro (o outro burro morreu) – eu, desmaiado e dado como morto, falei: “Porque ele vive, eu também viverei” (obrigado, Gioia Jr.); os olhos do Davi, o AVC da Beth, a faísca elétrica do Daniel e o afogamento do neto, Jonathas. De tudo, o que ficou mais foi a certeza de que já não oro a oração do covarde que prefere deixar as coisas como estão a fim de não dar mais trabalho: “não me dês nem a pobreza nem a riqueza; dá-me o pão que me for necessário; para não suceder que, estando eu farto, te negue... Ou que, empobrecido, venha a furtar e profane o nome de Deus (Provérbios 30:8-9). Antes, aprendi a oração do servo:

porque aprendi a viver contente em toda e qualquer situação. Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo e em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome; assim de abundância como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece (Filipenses 4:11-13).

Ó meu Deus, continua a trazer à minha memória os teus ensinamentos em todas as situações e que eu não me esqueça de nenhum dos teus benefícios, sejam as feridas sejam as glórias de Cristo!

Wadislau Martins Gomes

Um comentário:

Jônatas Abdias de Macedo disse...

Muito bom! Mágoas novas fazem doer cicatrizes antigas... De one o sr. tira estas pérolas? Deus o abençoe.