segunda-feira, janeiro 28, 2019

50 ANOS DE ORDENAÇÃO E IMPRESSÕES DE BRUMADINHO



Uma olhada nos últimos cinquenta 50 anos deixam-me realmente contente — “porque aprendi a viver contente em toda e qualquer situação” (Fp 4.11). São 50 anos de ordenação ao ministério da Palavra, pelo Presbitério de Campinas (29 de janeiro de 1969). Nesse “meu” tempo de reflexão vejo o filme da vida ora em moção acelerada ora em câmera lenta. Em algumas partes do longa-metragem, fico meio macambúzio, saudoso de gente e de situações, em outras partes, fecho os olhos para não ver repetidas algumas coisas e situações. Em todo o tempo, porém, sou grato a Deus. Grato pelo tempo que passou, o tempo que fechou e o tempo certo para todas as coisas! Sou grato a Deus por todo o tempo e modo de seus propósitos, principalmente, o sempre tempo de alegrar-se no Senhor (Ec 3.1-8; Fp 4.4).

A festa do meu coração, não obstante, de repente, de presente, está vazia de convidados. Tenho de ver de novo e de novo o horror das Minas das Gerais, da Vale do Rio Doce, do poder empresarial mafioso que me lembra o Moderno Prometeus, de Shelley (o Monstro de Frankenstein) ou o Jekyll e Hyde, de Stevenson. Só de ver as besteiras pra encher linguiça dos malabaristas da band (que de globo, Deus me livre), crus artistas de cruzamento de avenida, e a cara de mamão macho do bandido da Vale, dizendo que se entristece, empalidece, desmaia e morre mais do que os que já matou — só de ver, eu me pergunto: tem alegria em enterro de pobre sem herança, sem nome em placa de rua pra preservar a memória? Tem graça nessa falta de fé nos poderes da Pátria “mais garrida”? Tem esperança, quando os poderes públicos e o público subserviente não são capazes de “conquistar com braço forte” o penhor de uma igualdade só cantada, mas em que, na prática, quem dança são os pequenos contribuintes que, em retorno, recebem o benefício equivalente a um genocídio (dos mais fracos)? Tem confiança que perdure ou sobreviva às intempéries que assomam o “formoso céu, risonho e límpido” no qual deveria resplandecer a imagem do Cruzeiro? Não é só a imagem do redentor sobre a capital do crime que revela, impudica, a idolatria do País. É um judiciário hipócrita, um legislativo amorfo, e um executivo covarde (perdoe-me, excelentíssimo Presidente Bolsonaro, a quem considero exceção—Deus queira!). Como manter a alegria, quando o “gigante pela própria natureza” é feio porque sem grandeza moral, e só é “forte, impávido colosso” porque seus desastres são premeditados para engordar contas espúrias. Em face de tudo isso, onde eu ponho os versos: “Mas, se ergues da justiça a clava forte / Verás que um filho teu não foge à luta / Nem teme, quem te adora, a própria morte”?

A este ponto da vida, escrevo com Elizabeth um livro a quatro dedos (catilodigitas que somos). O título, talvez provisório, é: Mudanças e permanências — aplicações da mensagem da Epístola aos Filipenses. Em um dos capítulos escrevemos:
Que ardente expectativa: “em nada serei envergonhado” e Cristo “será engrandecido ... quer pela vida quer pela morte”! 
Pode haver contraste maior do que a que existe entre a vida e a morte? No entanto, somos admoestados que, em qualquer situação em que nos encontremos, qualquer provação pela qual passemos, nós que somos redimidos, deveríamos nos manter inabalados, na esperança de que não seremos envergonhados por nossa fé, e de que Cristo será exaltado. Na carta aos Romanos (1.16), Paulo enfatiza que não se envergonha do evangelho, e, como disse Francis Schaeffer, nem o evangelho nos envergonha, “porque é poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê”. Aqui, aos Filipenses, o apóstolo afirma que “em nada serei envergonhado” e Cristo será exaltado, quer viva quer morra, quer seus críticos consigam difamá-lo (“por discórdia, insinceramente, julgado suscitar tribulação às minhas cadeias”, 1.17), quer seus amigos vivam a defendê-lo e a cooperar com ele no evangelho. “As coisas que me aconteceram” contribuíram para o progresso do evangelho... e estimulados por minhas algemas, a maioria dos irmãos ousam falar com mais desassombro a palavra de Deus. De timidez, a mudança é para ousadia; viver é Cristo, morrer é lucro! A motivação para permanecer na carne (vivo aqui na terra) é o progresso e a alegria na fé dos irmãos de Filipos. Para Paulo, morrer e estar com Cristo é incomparavelmente melhor — mas “por vossa causa ficarei e permanecerei”.
É claro que, se pudermos fugir de ameaças, dores e tristezas, é bem que o façamos. Paulo disse que deveríamos permanecer inabaláveis, não que permanecêssemos impassíveis. O cristianismo não é sinônimo de masoquismo e o cristão não pode gostar de sofrer — açoites e apedrejamentos doem, permanecer encarcerado numa cela úmida e fétida, ou ser jogado ao mar num naufrágio, tem consequências físicas. Há horas em que não vale a pena de sofrer. José e Maria, cumprindo ordem divina, fugiram para proteger o pequeno Jesus (cf. Mateus 2.13, 15). O próprio Senhor Jesus se esquivou de momentos aflitivos e de homens violentes, quando as situações eram inglórias (cf. Lc 4.29-30). 
Os santos suam, sangram e seus ossos se quebram. Ficam com problemas de visão e de locomoção, com “espinho na carne” ou na alma, e Deus não usa uma varinha mágica para apagar o sofrimento de suas vidas. Nenhum sofrimento é sem causa, podendo ser purificador ou edificador. José, depois de sofrer a inveja e a fúria de seus irmãos, e de saber a servidão e a malícia dos homens, conheceu também a elevação do poder. Já governador do Egito, diz a Palavra, “Levantando José os olhos, viu a Benjamim, seu irmão, filho de sua mãe, e disse: É este o vosso irmão mais novo, de quem me falastes? E acrescentou: Deus te conceda graça, meu filho.” A soma de todos os sofrimentos subiu-lhe aos olhos: “José se apressou e procurou onde chorar, porque se movera no seu íntimo, para com seu irmão; entrou na câmara e chorou ali”. Contudo, permaneceu inabalável e, “Depois, lavou o rosto e saiu; conteve-se e disse: Servi a refeição” (Gn 43.29-31). 
Jesus, que era homem de dores e sabia o que era padecer, prometeu a seus discípulos a paz para suportar as aflições que teriam no mundo. Assim, não comece a gemer tão cedo: Deus promete alegria no meio das aflições, gozo completo nele, e contentamento em toda e qualquer situação. Paulo aprendeu a estar contente em toda e qualquer situação. Isso não lhe era natural — o Saulo de Tarso inconformado com os seguidores do Caminho a ponto de ser testemunha de acusação de Estêvão, tendo autorização para levar presos os que criam no Senhor ressurreto, passou a ser promulgador do evangelho, porta-voz das boas novas e sofredor de toda sorte de revés, físico, moral e espiritual. Essa é uma mudança aprendida. É cheia de glória—reflexo do amor e do poder de Deus. Ela ocorre quando aprendemos que Cristo é o centro, a nossa motivação, o nosso viver e o nosso morrer! Há enorme contentamento em saber viver ou morrer. Há um gozo de permanência quer fiquemos quer partamos para outro lugar ou outra vida. O que para o incrédulo é o pior, para Paulo é infinitamente melhor — pois os lugares celestiais em Cristo são de habitação segura, lar de comunhão com Deus e com os irmãos, e templo de alegre adoração. 
Daniel, nosso filho caçula (45 anos) é missionário no Japão, juntamente com a família. A empreitada não tem sido fácil, pois, além da distância e do enfrentamento de uma cultura tão avessa ao cristianismo, há a dificuldade financeira. Falávamos dessas coisas, ao telefone, e ele me contou de um amigo, conhecido escritor, que há anos não tem desperdiçado seu câncer e que, agora, resolveu interromper qualquer tratamento senão o contra a dor. Suas palavras encheram o nosso coração de conforto e, ao Daniel, de alento: “o cumprimento da missão do Senhor só é possível quando vivemos aqui e agora contemplando e realizando a esperança da eternidade”. É disso que o Senhor também disse: “Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás é apto para o reino de Deus”(Lucas 9.62). 
A consideração do mal no presente imediato é causa de desespero para a maioria de nós. Seja o mal sentido na carne, doença, miséria, seja o mal sentido na alma, injustiça, medo, seja a dor de viver, morrer — sem Deus, tudo isso é mal sem cura, dor sem remédio. Aos coríntios, Paulo disse: “Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens” 1Co15:19).
Nesses 50 anos de trabalho na Igreja Presbiteriana do Brasil e na Presbyterian Church in America — em missões, plantação e pastoreio de igrejas, na educação teológica em seminários e escolas de pós-graduação, servidor de Deus na liderança de presbitérios, no trabalho nacional da mocidade, na obra nacional de evangelização, e na secretaria nacional de apoio pastoral — a despeito de pecados e fraquezas, testemunhei, em todo o tempo, e “Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6).

Aí habita a minha alegria. Aí a graça e a fé, a esperança e a confiança. Aí a gratidão! Aí a alegria, mesmo no meio de desastres criminosos, de aparente impunidades, e dores no corpo e na alma:
Render-te-ão graças, ó Senhor, todos os reis da terra, quando ouvirem as palavras da tua boca, e cantarão os caminhos do Senhor, pois grande é a glória do Senhor.  O Senhor é excelso, contudo, atenta para os humildes; os soberbos, ele os conhece de longe. Se ando em meio à tribulação, tu me refazes a vida; estendes a mão contra a ira dos meus inimigos; a tua destra me salva. O que a mim me concerne o Senhor levará a bom termo; a tua misericórdia, ó Senhor, dura para sempre; não desampares as obras das tuas mãos (Sl 138:4-8).
Wadislau Martins Gomes

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