sexta-feira, junho 15, 2018

COMUNICAÇÃO TRUNCADA


Outro dia, procurávamos um bom filme para assistir. Depois de uma semana em hospital, faria parte da recuperação um descanso que desse repouso físico e mental e, simultaneamente, estimulasse o pensamento e a alma. Não era hora de leitura pesada, mas de imagens belas que nos ajudassem a cerzir os fios rompidos e remendar os furos da tessitura da vida. Surfamos as redes e cada vez que aparecia uma história atraente, clicamos em cima para, em poucos instantes, não aguentar mais a repetição incessante de dois senões da comunicação sadia: as personagens bombardeavam suas falas tomando o nome de Deus em vão e xingando com palavras de baixo calão. Antigamente, os bons filmes procuravam dosar ao mínimo o uso de profanidades e caso usassem, avisavam cautela às famílias – hoje parece que o nome de Deus é conspurcado continuamente nas falas mais banais, e tudo na vida é reduzido a atividades sexuais agressivas ou excremento para a latrina. Perdão pelo meu francês, mas o começo e o fim de todo diálogo espalha impiamente f... you e m... por ventiladores gigantescos e fortes que mancham tudo em volta (Aí vai mais uma tradução truncada e intraduzível). Tudo é muito natural, e homens e mulheres, jovens e crianças. acabam não somente ouvindo, mas pensando e repetindo os mesmos termos.

É verdadeiro que tomar o nome de Deus em vão vai muito além de falar seu nome fora do contexto de louvor e adoração que lhe é devido – mas começa a quebra do Terceiro Mandamento em cada expressão impiedosa que atribui ao Eu Sou acusações que são lavra suja do impostor, deturpador, usurpador e chefe deste mundo tenebroso. Paulo fala em contexto profundo de doutrina sadia aplicada a todos os aspectos da vida prática que “As más conversações corrompem os bons costumes” (1Co 15.33) e conclama-nos a tornar à sobriedade como é justo, e não pecar, porque alguns ainda não têm conhecimento de Deus. Isto se aplica hoje no mundo ocidental do Século XXI como era aplicável aos que viviam no primeiro século da era cristã, em Corinto (veja também Ef 5.4; Pv 10.19-21).

Apesar de ter sido criado em palácio real com toda a exuberante cultura egípcia, quando Deus chamou a liderar e libertar seu povo escravizado, Moisés culpou sua falta de eloquência como “incapacidade”:  “Sou pesado de boca e de língua” (Ex 4.10). Deus perguntou-lhe: “Quem fez a boca do homem? Ou quem faz o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou eu, o Senhor? Vai, pois, agora, e eu serei com tua boca e te ensinarei o que hás de falar...” Moisés disse ainda: “Envia a quem hás de enviar, menos a mim”. Mas Deus oferece uma alternativa: 

Não é Arão... teu irmão? Eu sei que ele fala fluentemente; eis que ele sai ao teu encontro, e vendo-te, se alegrará... tu lhe falarás e lhe porás na boca as palavras; eu serei com a tua boca e com a dele e vos ensinarei o que deveis fazer. Ele falará por ti ao povo; ele te será por boca, e tu lhe serás por Deus... E o povo creu, e tendo ouvido que o Senhor havia visitado os filhos de Israel e lhes vira a aflição, inclinaram-se e o adoraram.
Anos mais tarde, em 627 AC, o profeta Jeremias, de família sacerdotal, bem preparada, a quem o Senhor disse: “Antes que eu te formasse no ventre materno te conheci, e antes que saísses da madre te consagrei e te constituí profeta às nações” (Jr 1.5) a que ele protestou, dizendo: “Não sei falar porque não passo de uma criança”. Deus afirmou que ele iria a todos a quem Ele enviasse e falaria tudo quanto ele mandasse dizer. Prometeu: “Eu sou contigo”, tocou sua boca e disse que o constituiria sobre as nações e reinos “para arrancares e derribares, para destruíres e arruinares e também para edificares e para plantares” – e passou a dar-lhe visões do que estava acontecendo e iria acontecer.

Talvez a irmã mais velha de Moisés, Miriam, fosse ainda criança de uns dez anos quando, destemida, falou com a filha do Faraó (Ex 2.4-9) e instrumento humano para a sua salvação. Joquebede, verdadeira mãe e ama de leite de Moisés, certamente contou as histórias sobre o Deus que fala e o povo a quem ele chamou, alimentando o filho com o arcabouço da historia de Gênesis até o final de Deuteronômio. Quando Moisés libertou o povo de Deus do Egito, fez um esplendoroso cântico de vitória ao que lançou no mar cavalo e cavaleiro (Ex 15.1-19) e Miriam liderou todas as mulheres com a antífona: “Cantai ao Senhor porque gloriosamente triunfou...” (vv 20, 21). No entanto, com a mesma boca, Miriam falou mal do líder de Israel e incitou o irmão Arão a igualmente maldizer a Moisés por preconceito racial, altivez e inveja (Números 12.1-15).

Quando, aos cento e vinte anos de idade, Moisés se despedia de seu povo, falou para escolher entre a morte e o mal, a vida e o bem (Deuteronômio 29-31) – porque o Senhor Deus, ele mesmo, o de Abraão, Isaque e Jacó – os escolheu. Josué recebeu a incumbência de levar o povo para conquistar a Terra Prometida: “Não cesses de falar deste Livro... Não to mandei eu? Sê forte e corajoso; não temas nem te espantes, porque o Senhor teu Deus é contigo por onde quer que andares” (Js 1.8-9). Na narrativa histórica surpreendentemente realista de Josué, a história do passado se entremeia com a esperança do futuro vindouro, dizendo para homens e mulheres, velhos e crianças, pessoas do povo do pacto e pessoas que se achegariam ao pacto – que temessem ao Senhor, servindo-o com integridade e fidelidade, que escolhessem a quem servirão. O general Josué aqui inseriu sua declaração: “Eu e a minha casa serviremos ao Senhor” (Js 24.15). A aliança legal era declarada publicamente, escrita e lavrada em pedra, por estatuto e direito, e em monumento de pedras toscas. Hoje em Cristo Jesus somos feitos edifício e sacerdócio de pedras vivas, construído sobre a Pedra Fundamental (1Pe 2.4-10). 

Débora, ao levantar-se por mãe em Israel, estimulou o capitão Baraque com seus dez mil homens. Como juíza e profetiza, começou seu cântico bem-dizendo ao Senhor, permeando a ode dos feitos de guerra com descrições da destemida Jael (que matou o opressor Sisera) e dos atos de justiça de Deus – dando ao povo paz sobre a terra por quarenta anos. A sua conclusão: “Os que te amam brilham como o sol quando se levanta em seu esplendor” (Jz 5.31).

Davi fingiu estar louco para se refugiar com Abimeleque, fugindo da fúria de Saul, e começa o Salmo 34 dizendo “Bendirei o Senhor em todo tempo, o seu louvor está sempre nos meus lábios” – e liga o amor à vida e desejo de ver o bem a refrear a língua do mal e os lábios de falarem dolosamente. Sempre a prática da vida piedosa começa com a boca para então afastar do mal, praticar o bem, procurar a paz, e empenhar-se por ela. O Senhor ouve o clamor dos justos – dos que têm o coração quebrantado (Sl 34.10-18). 

Tiago, irmão de Jesus Cristo, diz que Deus “nos gerou pela palavra da verdade” e por esta razão, devemos ser “pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar... acolhendo a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar a vossa alma. Tornai-vos, portanto, praticantes da palavra e não somente ouvintes...” (Tg 1.19-22). Mais adiante, Tiago fala que se alguém não tropeça no falar, é perfeito e capaz de refrear todo o corpo (Tg 3.2) e descreve o pequeno órgão que é mundo de iniquidade, contamina todo o corpo, põe em chamas a carreira da existência humana... mal incontido, carregado de veneno mortífero. “Com ela bendizemos a Senhor e maldizemos os homens feitos à semelhança de Deus. De uma só boca procedem bênção e maldição” (Tg 3.9).

Quando eu era jovem, fazia-se diferença entre os vocábulos estória, história, e histórias. Estórias eram os contos fictícios, como os de Anderson e Grimm, de Homero e de Shakespeare, que fazem parte da cultura de um povo. História era a narrativa fatual da história do passado em nosso planeta e nosso país; consistia de datas e dados, fatos e feitos de heróis e vilãos. Problema é que a história é mais ou menos verdadeira conforme quem a narra, geralmente do ponto de vista dos vencedores. Exemplo: em história do Brasil contado por descendentes de portugueses, o tempo em que os holandeses dominaram Pernambuco foi uma “invasão holandesa” em que o pastor indígena preparado em seminário reformado europeu, Calabar, era inculto índio traidor da pátria. E as histórias podem ser verdadeiras ou não, dependendo da perspectiva do contador. Por exemplo, no filme sobre Forrest Gump, quarenta anos de história são contados conforme ele tivesse participado (ou não?) dela. 

A história na perspectiva bíblica é sempre narrativa da verdade de acontecimentos reais desde Gênesis até o Apocalipse. Diferente da história são as parábolas, que contam em estórias exemplos de conceitos ou fatos a serem ilustrados. Temos diversos outros tipos de relatos na Bíblia, mas quero enfatizar que a Palavra e a Vida sempre estão jungidas e fazem parte uma da outra, sem esfacelamento entre o que aconteceu no passado, o que é, o que deve ser ou há de ser, e o que acontecerá futuramente. O que importa é a verdade, da qual Jesus Cristo é expressão viva e real, Verbo Encarnado, e caminho, verdade e vida se a qual ninguém vem ao Pai (Jo 14.6). Esta história é entremeada de doutrina e prática – em sabedoria de poesia ou profecia, em histórias de reis e bufões, em epístolas e relatos dos evangelhos e de Atos dos Apóstolos inspirados pelo Espírito Santo do Deus Triuno. 

Como escritores cristãos, não somos criadores no sentido do único Criador do Universo. Foram-nos dadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade (2Pe 1.3-8), para que sejamos coparticipantes da natureza divina! Nada há encoberto que não venha a ser revelado (Lc 12.2); embora nada tenhamos, possuímos tudo (2Co 6.10) – e tudo vem das mãos de Deus. Por mais belas e edificantes que sejam nossas palavras, não temos inspiração no sentido bíblico da Palavra inspirada por Deus. As palavras do profeta estão sujeitas à boca do profeta (1Co 14.32); nossas palavras são verdadeiras e edificantes somente quando totalmente sujeitas ao autor da Vida, Verbo de Deus – condizentes com o que ensina sua Palavra. Assim, mais que escritores, somos aprendizes e escribas. Comunicamos vida ou morte, sabedoria ou estultícia, segundo o que aprendemos da Palavra de Deus – mas não somos “boca de Deus” no senso que Moisés e Arão ou Jeremias ou João Batista falavam. Como pecadores que somos, muitas vezes, nossa comunicação é truncada, falha, duvidosa ou até mesmo mentirosa. Queremos falar a verdade em amor (Ef  4.25) mas as palavras guerreiam, são torpes, mercadejadas, mentirosas, faladas de modo indigno do Evangelho.

Entre os hinos de letras profundas e melodias tocantes de Charles Wesley, um dos que mais expressam meu desejo diante do Senhor é “Mil línguas eu quisera ter para entoar louvor, à tua graça e teu poder, meu Rei e meu Senhor” (Hinário para o Culto Cristão, # 72). O desejo de comunicar com variedade, riqueza e conhecimento ao Autor toda boa Palavra, o Verbo Vivo, o Espírito que sopra graça e vida, faz de uma simples tradutora que domina bem apenas duas línguas, um desejo de falar de mil maneiras, com mil vozes, a verdade que me impacta e dá vida. Descubro, no dia a dia, contudo, que não consigo sequer louvar ao Senhor da Palavra nem comunicar a meu semelhante o que realmente queria falar – e olhe que já vão quase setenta anos em que o desejo de expressar, com canto, conto, e relatos fatuais histórias, narrativas e história bíblica – sempre à procura de novas “línguas”. 

Às vezes, descubro que a palavra que digo a alguém que “estou orando por você” em vez de dar um simples “parabéns” é recebida como uma crítica e desaprovação da pessoa a quem deixei de dar congratulações. Tenho a tendência de falar demais, de “matar por exagero” um bom sentimento, de deixar de falar quando preciso, e falar erradamente quando abro a boca! Certa vez, criei uma situação que feriu a diversas pessoas porque eu quis falar a verdade sobre um assunto sem ser convidada a fazê-lo. Interferências indesejadas jamais serão comunicação da verdade em amor. A razão de falar a verdade está no fato de que “somos membros um do outro”. Minha palavra deve ser sempre “agradável, temperada com sal, para eu saber como devo responder a cada um” (Cl 4.6).

Lembro de uma canção de Sandy Patti, Love in any language, straight from the heart, pulling us together, never apart – o amor em qualquer língua, direto do coração, nos puxando para mais juntos e jamais nos separando – fosse “falado fluentemente aqui” – descrevendo a comunicação no Corpo de Cristo. Era o que eu desejava. Às vezes gaguejava, trocava palavras e criava frases truncadas – mas queria que o amor de Cristo fosse fluente e límpido em minha fala e meu proceder. Tinha de falar! Como estudante (consequentemente, aprendiz da Palavra) eu jamais teria púlpito de pregadora – teria de escrever – aprender e aperfeiçoar a arte de falar a verdade em amor (Ef 4.25). Para tanto, tenho de me portar com sabedoria para com os que são de fora, aproveitar bem as oportunidades (Cl 4.5), deixando habitar ricamente em mim a Palavra de Deus, instruindo e aconselhando em toda sabedoria, louvando a Deus com salmos e hinos e cânticos espirituais, com gratidão no coração. Tudo que escrevo ou deixo de escrever, o que faço ou me abstenho de fazer, seja feito em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai (Cl 3.16-17).

Uma das sequelas do AVC de 2007 foi que perdi a voz para cantar. Mas não perdi a canção – a comunicação com vida coerente com o que falo, escrevo, ou como me calo. Quer traduza algo escrito por outros, quer escreva linhas originais inéditas – que essa minha boca sussurre ou proclame sempre por alegria na Fonte de toda Bênção!

Elizabeth Gomes

2 comentários:

slima disse...

Glórias a Deus, pois a boca fala do que o coração está cheio e o teclado registra como o seu coração está preenchido por Deus. Quer dizer que de uma reflexão sobre um filme para descansar a mente vem todo esse ensinamento? Que Deus continue te abençoando e cuidando de cada pedacinho de sua mente, coração e teclados. Assim seremos nós também abençoados. Beijos

slima disse...

Glórias a Deus, pois a boca fala do que o coração está cheio e o teclado registra como o seu coração está preenchido por Deus. Quer dizer que de uma reflexão sobre um filme para descansar a mente vem todo esse ensinamento? Que Deus continue te abençoando e cuidando de cada pedacinho de sua mente, coração e teclados. Assim seremos nós também abençoados. Beijos