sábado, dezembro 31, 2016

SUPERSTIÇÕES, SENTIMENTOS, E NOVOS SIGNIFICADOS



Muitas vezes os melhores chefs são os homens, mesmo aqui em casa, mas, geralmente, quando vamos decidir o que preparar para um jantar especial, cabe a nós mulheres a compra, o preparo e a apresentação. Divido com minha nora o prato principal. Valente, apesar de uma mão costurada e imobilizada Adriana assou um chester e uma verdura gratinada. Felizmente, meus netos se encarregaram de preparar um pavê delicioso e mais algumas guloseimas.

Lembrei de uma conversa sobre o cardápio para a ceia alguns anos atrás: era bom ter romã entre as frutas, e não pode faltar lentilha—as moedinhas garantem prosperidade para o ano.
(Os judeus fazem rodelas de cenouras cozidas em suco de laranja e açúcar mascavo: suas moedas são maiores e doces!) Sou contra usar o formato do alimento para prognosticar um futuro próspero, ou as cores vestidas (o clássico branco para muita paz, vermelho para uma nova paixão, amarelo para atrair mais ouro). Ficaria contente se nosso pezinho de romã já estivesse produzindo grandes frutos que, partidos, parecem centenas de rubis para enfeitar uma boa salada de frutas. Mas resolvi fazer lentilha, porque tinha meio pacote em casa e isso faz excelente acompanhamento ao cordeiro ensopado e cuscuz marroquino com aperitivos de falafel que preparei.

É costume fazer uma boa faxina antes de casa e gente ficarmos arrumados para a festa, e não deixar itens pendentes de um ano para outro. Desde pequena, minha família participava do culto de vigília nas igrejas por onde passamos, e tenho lembranças doces dos propósitos e decisões que esses cultos proporcionavam. Lembro de muita gente que só pisava na igreja na páscoa, no Natal, e no “Ano Bom”. Isso garantia que Deus abençoasse para o ano, diziam. Hoje nossa igreja se reúne em hotel e não temos o horário de ceia e vigília, e muitos aproveitam o feriado para zarpar para longe. Vamos ter o culto normal do Dia do Senhor às dez da manhã, ainda que outros desistam de ir para não ter de “madrugar” no domingo. Lembro-me, com embaraço, de cultos de vigília em que recebíamos folhas de papel em que escrevíamos umaa lista de pecados que queríamos que Deus perdoasse, queimando-os para simbolizar o recebimento do perdão. Outra vez em culto semelhante, listávamos as pessoas que nos magoaram e queimávamos, perdoando uns aos outros. Lembrava muito os cultos da fogueira nos acampamentos, em que, jovens, colocávamos gravetos no fogo simbolizando a entrega de nossas vidas em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus.

Com o passar das gerações, muitas pessoas, crentes e descrentes, foram acrescentando costumes, alguns bons (como é bom louvar a Deus em todo tempo, e passar a “virada” em oração), outros inócuos (o tipo de roupa ou comida, por o pé direito para frente para dar o primeiro passo, desejar felicidade e bem estar ao próximo, listas, fogueiras etc.), outros até brincando com as coisas do maligno (se banhando sete vezes ou dando sete saltos sobre as ondas do mar—ué, essa é do candomblé—não foi o que o profeta Elias mandou Naamã, o capitão do exército da Síria fazer?).

Estamos na gangorra de guardar dias, meses e anos de modo negativo, como Paulo mencionou em sua carta aos Gálatas (4.19), ao mesmo tempo em que Deus nos manda aprender a contar nossos dias para encontrar coração sábio (Sl 90.12)—e o próprio Deus é quem “Coroa o ano da tua bondade; as tuas pegadas destilam fartura” (Sl 65.11). Descobrimos que a contagem do tempo, dos dias, meses e anos pode ser um exercício em piedade e contentamento, ou de amargura e incredulidade. Depende de como vemos nosso tempo coram deo. Ao iniciar o seu ministério terreno, Jesus declarou que apregoava o ano aceitável do Senhor, pois “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos...” (Lc 4.19)
Do mesmo modo como aprendemos a administrar o espaço onde Deus nos coloca, temos de aprender a administrar o tempo que ele nos dá. Lembranças do passado podem ser pensadas e resgatadas, sonhos para o futuro são parte de nossa esperança criativa, mas o tempo que se chama hoje é o tempo que temos agora para viver conforme a vida tem de ser vivida. Hoje é tempo de louvar a Deus. Hoje é tempo de engrandecê-lo, quer pela vida quer pela morte.

Que em 2017 tudo seja para a glória daquele em quem confiamos e confiaremos a cada ano, década, século, por toda a eternidade.

Elizabeth Gomes

terça-feira, dezembro 20, 2016

NOSSAS BODAS E AS BODAS DO CORDEIRO




Quando nos casamos, em dezembro de 1966, éramos da primeira turma de estudantes do agora Seminário Palavra da Vida. Na noite anterior à cerimônia, uma amiga que viera de Goiânia para assistir nosso enlace perguntou-me se eu não tinha dúvidas quanto ao casamento. Disse-lhe que não, porque se tivesse alguma dúvida, teria desistido, já que tínhamos tudo contra nós: éramos muito jovens, não tínhamos dinheiro, ainda estudávamos e não tínhamos empregoç os professores do IBPV aconselhavam que esperássemos nos formar antes de casar—só tínhamos um ao outro com a fé posta em Jesus Cristo. Soube depois que, quando minha amiga voltou para sua cidade, rompeu o noivado. Nós, porém, prosseguimos, certos de que Deus nos uniria para toda a vida e que cresceríamos juntos, estudaríamos e trabalharíamos juntos, aprendendo da Palavra de Deus o que Jesus queria que crêssemos e fôssemos. Romanticamente, imaginávamo-nos em algum campo missionário distante em que viveríamos até quando bem velhinhos.

Meu vestido, os sapatos e as luvas foram emprestados. O enxoval, comprei com US $ 40 que ganhei com a venda de um artigo para um periódico cristão e complementado pela generosidade de Da. Eulina, minha sogra-mãe amiga, e da Tia Tide de Limeira. Os pais do Lau não mediam esforços para nos ajudar e não somente proveram para o filho como também para sua filha estrangeira—euzinha. Tivemos um casamento simples com a igreja de Araras enfeitada pelo próprio Lau, os tios pastores Ari Barbosa Martins e Benedito Alves, a prima Isa tocando e o primo Claudio solando. Meu pai veio dos Estados Unidos e conduziu-me como um rei à sua princesa até a frente da igreja lotada de parentes e amigos. Tivemos um almoço “em casa” depois do casamento civil, e bolo e balas de côco, na recepção depois da cerimônia. O cunhado nos levou em seu carro até Campinas, onde passaríamos a noite antes de seguir de ônibus a Campos de Jordão no dia seguinte (não tínhamos carro). Um primo pediu carona até Campinas, e foi nos “entretendo” com piadinhas sobre recém casados, até chegarmos ao hotel.

Começamos o casamento sem dívidas e com as insondáveis riquezas de Jesus Cristo—e nada mais. Nove meses depois veio nosso filho Davi, que eu cuidava nos intervalos das aulas. Em casa, estudávamos ao cheiro de fraldas (de morim) sendo fervidas sobre o fogão. Desconfio que ele se alimentava de teologia bíblica junto ao leite materno que eu dava enquanto estudava para terminar o curso. Às vezes nossa colega Edith Moreira (há mais de cinqüenta anos no trabalho missionário entre os ianomâmis) e outros colegas vinham “dar uma mãozinha” a essa mãe nova super atarefada e um pouco atrapalhada. Muitas vezes, recebemos professores ou outros colegas em nossa casa para uma refeição—as horas em que Dr. Shedd humildemente partia o pão conosco marcaram para sempre nossa visão bíblica e prática da Palavra.

Descrever nossa vida iniciante em ministério daria um livro todo e eu quero aqui só localizar nosso contexto existencial para falar das bodas. O Salmo 45 fala do casamento do Rei a quem nós consagramos, antes mesmo de conhecermos a alegria do casamento, a meta de extravasar a graça de Deus, (v.2) ungindo-nos com o óleo da alegria (v.7), pois ele é nosso Senhor (v. 11). A promessa de que “serão teus filhos os quais farás príncipes por toda a terra. O teu nome eu farei celebrado de geração em geração, e assim os povos te louvarão para todo o sempre” (Sl 45.17-18). Essa promessa marca o casamento do Rei a quem servimos e em quem nossas vidas se misturam—com a dedicação: “Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Romanos 11.36—inscrito em nossas alianças).

Vivemos, por um tempo, o “já e ainda não”. Pela graça de Deus, fomos libertos da escravidão do pecado. Somos pecadores que, por Cristo, disseram “sim”, bem cedo buscando em Jeová o que fala o salmo seguinte: “nosso Refúgio e fortaleza, socorro bem presente nas tribulações” (Sl 46.1)—porque angustias e tribulações certamente fizeram parte de nossa vida! Mas “ele pôs termo à guerra ... quebrou o arco e despedaçou a lança, queimou os carros no fogo” (Sl 46.9).

Pela primeira vez em minha vida pude planejar uma festa como queria. Teríamos de limitar os convites, mas abri para igreja em convite geral RSVP. Embora Deus seja dono de todos os bois da terra, ele deu a nós desfrutar de tudo com parcimônia e discrição. Resolvemos convidar cinquenta pessoas: o conselho da igreja e suas esposas e quem mais confirmasse a vinda. Dos mais de cem parentes e amigos que nos acompanham em nossa jornada há muitos anos, sabíamos que muitos não teriam condições de vir, e imaginamos que acabaríamos com cerca de cinquenta à mesa. Lembrei do conto de fadas onde o rei só tinha doze pratos e talheres de ouro e decidiu convidar apenas doze fadas para o banquete, ficando a décima terceira fada furiosa por não ter sido incluída, e amaldiçoando a Bela a dormir durante cem anos. Mas nossa vida não é conto de fadas e Jesus Cristo já nos despertou do sono. Cinquenta era um número sustentável para reunir junto à churrasqueira do sítio; cinquenta eram os anos de vida conjugal, e cinquenta o número de canecas comemorativas que encomendei de um irmão artista. Nossa casa tem portas abertas; tem de ter também portão fechado!

A parábola de Jesus sobre as bodas do Filho do Rei (Mateus 22) começava a ter aplicação prática em nossa vida—muitos convidados não apareceram. Imaginei chamar os pobres das ruas de Mogi, mas não havia como. Não tivemos o problema de penetras que não estivessem vestidos para a festa—todos estávamos de jeans e roupa esporte como convém a gente simples no campo. Na hora da cerimônia de culto de gratidão e renovação dos votos, Lau e eu nos trocamos para algo mais formal—mas quem não permaneceu totalmente ataviada como noiva adornada para o noivo fui eu, depois do culto—tirei os sapatos e fiquei de chinelos velhos, e foi desse episódio a primeira foto que uma convidada postou nas redes sociais.

Tivemos abundância de comida, um lindo, grande e delicioso bolo, abundância de lembranças gostosas e memórias gratas da bondade de Deus de geração em geração. No ano passado, quando Wadislau esteve mal de saúde, não podíamos imaginar que este ano festejaríamos assim. Sentimos muito a falta de Deborah e de Daniel com suas famílias—entendemos, porém, que eles estão servindo a Deus onde foram chamados, e alegramo-nos com a participação do primogênito, que pregou, da esposa, que tocou e cantou, e dos dois netos, carinhosos fotógrafos incríveis. Realmente, nossas Bodas de Ouro abençoaram a todos que aqui estivemos, fechando com chave de ouro nossos primeiros cinquenta anos.

Decorei, ainda jovem, a poesia de Robert Browning dizendo “Grow old along with me; the Best is yet to be” (Envelheça junto a mim: o melhor está ainda por vir... - Rabbi Ben Ezra) e hoje digo que o melhor já veio, está aqui agora, e vai continuar para a eternidade! Somos infinitamente gratos a Deus por este privilégio singular.

O tema do casamento do Rei com sua noiva perpassa a Bíblia toda e cobre de graça todo casamento no Senhor. Em Efésios 5.22-32, o marido é comandado a amar a esposa “como Cristo amou a igreja e se entregou por ela”, e a esposa a ser submissa como a igreja a Jesus Cristo. Pedro (1Pe 3.1-12) começa falando da submissão da mulher “para que o marido seja ganho sem palavra alguma, pelo honesto comportamento, o “homem interior do coração unido ao incorruptível trajo de um espírito manso e tranquilo”; e dos maridos, vivendo a vida comum do lar com discernimento e consideração, tratando a mulher com dignidade”, lembrando que os dois são “juntamente herdeiros da mesma graça de vida, para que não se interrompam as suas orações”!

Pecadores teimosos que somos, Deus nos uniu e deu-nos condições de viver em santificação a vida comum e do lar, de maneira incomum e graciosa, amando como Cristo, sendo revestida como noiva gloriosa ataviada para bodas. Não como a nossa festa singela, limitada, imperfeita, mas para as Bodas do Cordeiro de Deus que foi morto em nosso lugar e reina para sempre. Já pensou na festa perfeita?!
Aleluia! Pois reina o Senhor,
Nosso Deus, o Todo Poderoso.
Alegremo-nos, exultemos e demos-lhe a glória,
Porque são chegadas as bodas do Cordeiro,
Cuja esposa a si mesma já se ataviou
Pois lhe foi dado vestir-se de linho finíssimo,
Resplandecente e puro. Porque o linho finíssimo
são os atos de justiça dos santos.
Então me falou o anjo:  escreve:
Bem-aventurados aqueles que são
chamados à ceia das bodas do Cordeiro.
E acrescentou: São estas as verdadeiras palavras de Deus.
(Ap 19.7-8)



Elizabeth Gomes

sexta-feira, novembro 25, 2016

COMUNICAÇÃO E AMOR NA TRINDADE


Aos domingos, entre o estudo bíblico e o culto, trocamos amizade em torno de um café. A IPP (Igreja Presbiteriana Paulistana) tem gosto nesse encontro de irmãos com riso largo e os “como vai” e “onde é que dói” com a sinceridade de quem espera uma resposta. Mão na mão, e braço estendido ao visitante, desejamos que o amor e a comunicação sejam reflexos autênticos e genuínos do amor e da comunicação de Deus. Outro costume da IPP é o do tempo para perguntas após o sermão—esperando sempre comunicação em amor. No último domingo, um visitante, trazido “pela internet”, fez algumas perguntas. Bengalês, falador pobre no português, hábil no inglês, afável adivinhando afetação, deixou saber que coletava material para um livro sobre o “misticismo das religiões”.

A mensagem seguia a Ep. aos Efésios (Uma herança transmitida pelo Filho, 1.6-12) em que o contexto mostra uma ação da Trindade. Esse aspecto, apenas mencionado, suscitou uma questão de um irmão: “A Bíblia não é definitiva sobre a doutrina da Trindade e o shemá judaico (Dt. 6.4) diz que Deus é um. Tenho para mim que Cristo e o Espírito sejam manifestações de Deus”. Já que voltaríamos o assunto em breve, e nem todos os presentes estavam prontos para seguir a conversa de maneira frutífera, procurei uma resposta simples que realçasse o valor da questão.

A doutrina da Trindade é discutida ao longo da história da igreja, sobressaindo três heresias: (1) o Modalismo (Deus é um e apenas manifesta-se nos diferentes modos do Filho e do Espírito); (2) o Arianismo (de Arius, que diz que o Filho seria mais uma criação de Deus Pai, condenada no Concílio de Nicéia, em 325 AD); e (3) o Triteísmo (três deuses), menos difundido, mas impressionando a mente de muitos crentes (evidentes nas tentativas limitantes de ilustrações como “partes de um ovo”, “estados da água”, “membros de uma família”, etc.). Esses desvios levantam perguntas retóricas. É Deus somente o Um, singular, e Cristo e o Espírito seriam apenas modos de sua manifestação (modalismo)? Nesse caso, quando Jesus Cristo, o Deus encarnado, morreu na cruz para nossa redenção, o Deus único e imortal também morreu? Quando Jesus Cristo, o Filho, comunicava amor ao Pai, em oração, estaria ele apenas encenando com fins didáticos? Esse recurso comunicaria a verdade em amor? Se Deus for um e não muitos, haverá um imanentismo (Deus está em tudo) e, nesse caso, restará uma expectativa de sermos absorvidos pelo tudo, acabando em nada. Se Deus for muitos e não um, haverá um panteísmo (tudo é deus), e a nós sobrará a sina terminal de toda a natureza. A existência seria ora um barulho ensurdecedor ora um silêncio terrível. Ao contrário, a sabedoria bíblica declara que Deus é, ao mesmo tempo, Um e Muitos, singular e plural. Ele criou todas as coisas fora de sua própria essência (transcendência), mantidas coesas na comunicação do seu amor. Certamente, para quem tem o Espírito e, assim, o entendimento da Palavra, essa breve argumentação seria suficiente.

Aproveitando a deixa, o visitante passou a debater— e este caso era diferente. À medida que desalinhavava os seus pontos, reconheci um ranço muçulmano no contato com a história, o material, e os termos mais comuns na literatura do cristianismo. Sua voz e atitude traíam uma motivação noturna. Ele juntava linhas sem nós, sequer atentando às respostas. Uma visão crítica anticristã tornava a crença na Trindade um acréscimo espúrio tardio ao evangelho. “A doutrina da Trindade foi formulada depois do ano 300”, disse ele. Teria sido assim mesmo!? Ou a Trindade era tida como certa em todos os escritos bíblicos, e as dúvidas e correções é que foram formalizadas em Nicéia? Assim, pedindo a Deus que me abençoasse com a coerência da palavra e do trato, reafirmei a convicção de que a doutrina da Trindade é basilar a qualquer aproximação hermenêutica saudável da teologia cristã. Conforme escrevi em outro lugar (por exemplo, Sal da Terra em Terras do Brasis, Ed. Monergismo):
A doutrina em que cremos, isto é, o trinitarismo ortodoxo histórico—ao qual confessaram Atanásio, Basílio, Gregório de Nissa, Gregório de Nizanzus, Tomás de Aquino, Lutero, Calvino, e outros—ensina que Deus é perfeitamente unificado e simples. Ele tem uma essência única, assumida em comum pelo Pai, Filho, e Espírito Santo. São três pessoas consubstanciadas, coerentes, coiguais, e coeternas. Como diz a Confissão de Fé de Westminster: “O Pai não é de ninguém—não é gerado nem procedente; o Filho é ternamente gerado do Pai; o Espírito Santo é eternamente procedente do Pai e do Filho”.

Nas linhas do Credo de Atanásio, cultuamos a um Deus na Trindade em unidade sem misturar as suas pessoas nem dividir a sua essência. Mas, de que adiantaria uma aula de teologia? A doutrina da Trindade é uma das revelações do mistério de Deus agora “dado aos santos”. Os regenerados apreendem esse conhecimento com toda sabedoria e prudência, pois o Deus concedeu-nos a benção da participação de sua própria natureza (cf. 2Pd 1.4), da adoção em Cristo, e da vivificação por meio da ação do Espírito de Deus e do Filho (cf. Jo 1.12; Rm 8.16). O crente tem a mente de Cristo—e, mesmo assim, tem de enfrentar o fato de que um conhecimento infinito não pode entrar na mente finita. O não regenerado, por sua vez, não entende as coisas de Deus, considerando-as loucura, e tratando-as com inimizade (1Co 2.12-16). A maneira de transmitir graça ao não regenerado é por meio de uma amorosa comunicação do evangelho, de modo claro e com suficiente conteúdo. Ao receber a luz do evangelho, ele será confrontado com o próprio Deus na cruz de Cristo—no qual todos os homens morrem, uns para a ressurreição eterna, outros, para a morte eterna. Todos nós, crentes e incrédulos, precisamos saber que essa é a comunicação da verdade de Deus, no amor de Deus. Essa é a ação verbal e viva que todos podem entender, isto é, a pregação do Evangelho, para a qual temos a promessa da ação do Espírito Santo.

Francis Schaeffer diz (The complete works of Francis A. Schaeffer, Vol. 2,, 12–14; 1982. Westchester, IL: Crossway) que somente a Trindade pode explicar a presença da comunicação e do amor. Essas graças são aspiradas por escritores, pintores, atores, e cientistas, sem que eles saibam de onde vêm nem experimentem comunicação efetiva e amor perene. A Bíblia fala da comunicação e do amor como estando presentes antes da criação. “Antes de Gn 1.1, amor e comunicação eram intrínsecos ao que veio a ser” criado. Esse fato bíblico é revelador quanto à natureza de Deus, especialmente, sobre a Trindade. Em Gn 1.26, lemos: Disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Também, depois da queda, Deus disse: o homem se tornou como um de nós (cf. Gn 3.22; Is 6.8). O ensino da Trindade é enfatizado em Jo 1.1-3. “De fato, o conceito tem especial força porque toma a primeira frase de Gênesis e torna-a ... um termo técnico”: No princípio já era o Verbo, e o Verbo já estava com Deus, e o Verbo já era Deus (o imperfeito grego, era, aqui, é mais bem traduzido como já era). Tudo foi feito por ele, e sem ele nada se fez. Adiante, aprendemos quem é a personalidade chamada o Verbo (Logos). Jo 1.14, 15 deixa claro: O Verbo se fez carne e habitou entre nós, e João Batista deu testemunho dele, dizendo:  ... o que vem depois de mim tem, contudo, a primazia, porquanto já existia antes de mim.

A expressão no princípio, repetida em Hb 1.10 e Jo 1,1-13, enfatiza que Cristo já era antes da criação e foi ativo na criação. A mesma expressão ou a mesma ideia, Schaeffer prossegue, é repetida em Cl 1.16, 17, em que Paulo diz: nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra ... Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste. Ainda, em 1Co 8.6 , “Paulo aponta a um paralelo entre Deus criando e o Filho criando: para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para quem existimos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós também, por ele”. Assim, estabelecida a relação do Pai e do Filho com a Criação, Schaeffer argumenta sobre a relação com o Espírito. Gn 2 deixa claro: e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas. É certo que o entendimento da expressão “Espírito do Senhor”, nesse texto, tem levantado questões, mas é verdadeiro que a Bíblia, Antigo e Novo Testamento, ressalta a presença da Trindade no processo criador. “No princípio” determina o fato de que nesse ponto houve a sequência de uma criação ex nihilo (a partir do nada) por meio da Palavra ou Verbo de Deus. Antes do “princípio”, Deus era—eterno, infinito, soberano—e havia a existência pessoal de amor e de comunicação. Amor e comunicação eram intrínsecos à Trindade, diz Schaeffer.

O Antigo Testamento fala de um Filho Deus eterno e de um Espírito Deus pessoal eterno? Considere Pv 30.4, em que, depois de uma série de perguntas sobre o Santo criador da terra, Agur indaga: Qual é o seu nome, e qual é o nome de seu filho, se é que o sabes? Ainda mais, em Is 9.6, numa clara referência a Jesus Cristo e ao Espírito, o profeta diz: Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz. Adiante, em 11.1-5, Isaías descreve o Cristo Jeová Forte e Pai da Eternidade, dizendo que ele nasceria do tronco de Jessé e da raiz de Davi, um renovo sobre quem repousaria o Espírito do Senhor (cf. Pv 8). Novamente, em Is 48.16-17, o profeta diz: ... não falei em segredo desde o princípio; desde o tempo em que isso vem acontecendo, tenho estado lá. Agora, o Senhor Deus me enviou a mim e o seu Espírito. Assim diz o Senhor, o teu Redentor, o Santo de Israel. Mais ainda, o próprio shemá, utilizado para defender a natureza unitária de Deus, traz: Ouve, Israel, Jeová (aquele que É), nosso Elohim (pl., deuses) é o único Jeová (cf. Dt 6.4). Também, Jesus interpreta o texto de Sl 110:1—Disse o Senhor [Jeová] ao meu Senhor [Adonai], do seguinte modo: Como, pois, Davi, pelo Espírito, chama-lhe Senhor ... Se Davi, pois, lhe chama Senhor, como é ele seu filho (cf. Mt 22.42-45)? Em Jo 14—16, Jesus fala dele mesmo, o Filho, e do Pai, e do Espírito, como pessoas coeternas e coiguais numa Triunidade!

Por que, então, a teologia judaica não afirmou a existência da Trindade, no AT? A resposta é pronta: a doutrina da Trindade pertence à teologia cristã em razão do propósito divino da redenção dos escolhidos. Todos os que foram salvos nos tempos do AT, não poderiam compreender a Trindade e sua atuação na redenção (cf. Ef 1.3-14) porque teriam de aguardar a revelação de Cristo. Ele falou com respeito ao Espírito que haviam de receber os que nele cressem; pois o Espírito até aquele momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado (Jo 7.39). Quando prometeu enviar o Consolador para habitar conosco, Jesus explicitou: o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não no vê, nem o conhece; vós o conheceis, porque ele habita convosco e estará em vós (Jo 14.16-17). Até então, era um mistério a ser revelado, segundo o bom propósito de Deus: Ora, todos estes que obtiveram bom testemunho por sua fé não obtiveram, contudo, a concretização da promessa, por haver Deus provido coisa superior a nosso respeito, para que eles, sem nós, não fossem aperfeiçoados (Hb 11.39-40). E Paulo diz: podeis compreender o meu discernimento do mistério de Cristo, o qual, em outras gerações, não foi dado a conhecer aos filhos dos homens, como, agora, foi revelado aos seus santos apóstolos e profetas, no Espírito (Ef 3.4-5).

Concluindo, a essência da comunicação em amor ocorre no seio da Trindade, é manifestada no Pacto eterno, e é revelada em Jesus Cristo (cf. Jo 1.5-18). Somente os que recebem a revelação do mistério da redenção, mistério de Cristo ou mistério de Cristo e a igreja, podem aceitar que há somente um corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos (Ef 4.4-6).
Wadislau Martin Gomes

terça-feira, novembro 22, 2016

ALEGRIA, GENEROSIDADE E GRATIDÃO


Conversávamos outro dia, minha amiga e eu, sobre pessoas que passam necessidades de sustento e manutenção, sem opções para resolver suas carências. Algumas amigas passam por doenças implacáveis e devastadoras. Outros passam por necessidades financeiras que jamais sonhariam quando, mais jovens, eram profissionais bem pagos. Será que temos na Bíblia uma orientação saudável e segura para agir e ajudar a amigos que passam por provações financeiras, de saúde e de natureza familiar?
No último capítulo de Filipenses, o tipo de coisa que Paulo escolhe enfatizar, inclui: integridade nos relacionamentos, fidelidade para com Deus, confiança calma nele, pureza e salubridade nos pensamentos, e piedade na atitude do coração. Em toda área, Paulo quer produzir firmeza, estabilidade, perseverança, persistência, e fidelidade diante de Deus—diante do Deus que se revelou tão maravilhosamente em Jesus Cristo seu Filho. Isso depois de escrever três capítulos sobre generosa gratidão a pessoas que possuíam muito pouco, que em nossas igrejas de hoje seriam vistas como desprovidas e empobrecidas. Portanto, Paulo lembra em dedução lógica, o que havia dito antes sobre a soberania de Deus, conclamando seus leitores a permanecer firmes no Senhor. Ele implora que essa firmeza seja demonstrada na prática, com a solução de uma discussão entre duas mulheres líderes: pensem concordemente. O apóstolo não insiste em que sejam iguaizinhas no pensamento, que tenham cabeças idênticas, mas que vivam em harmonia.
 Isso torna possível a segunda ordem: Alegrem-se no Senhor (v 4)!. Tal alegria se demonstra na moderação pela qual os crentes todos devem ser conhecidos—isso, porque o Senhor está aí. “Seja vossa moderação conhecida de todos os homens. Perto está o Senhor” (4.5). Perto está o Senhor não é tanto que Deus esteja vigiando tudo que fazemos e dizemos, embora inclua isso, mas que a sua proximidade nos incentiva a imitar a vida de Paulo e outros pastores, em contraste aos inimigos do evangelho.
Creio que, mais provavelmente, que Paulo quisesse dizer que o Senhor está espacialmente, ou melhor, pessoalmente perto. Deus não está longe; está bem perto de nós, junto a nós. Como então poderíamos ceder à autocomiseração?
Suponhamos, por um momento, que o Senhor ressurreto e exaltado entre na sala em que você e os seus amigos estão sentados. Suponhamos que não haja dúvida na mente de qualquer pessoa quanto a sua identidade. Como você responderia? Será que correria imediatamente para ele, pavoneando a sua própria excelência? Quando Jesus lhes mostrasse um vislumbre da sua glória e virasse as mãos com as marcas dos pregos, será que você seria rápido para desfilar as suas virtudes cristãs? Pode a autopromoção fazer parte do seu pensamento?
Paulo começa o parágrafo comentando novamente o carinho dos filipenses a suprir para as suas necessidades, enviando-lhe socorro: “Alegrei-me, sobremaneira, no Senhor porque, agora, uma vez mais, renovastes a meu favor o vosso cuidado; o qual também já tínheis antes, mas vos faltava oportunidade” (4.10). A frase “agora, uma vez mais” neste contexto não tem tons rogatórios culpando os filipenses por serem vagarosos como se dissesse “até que enfim” vocês o fizeram. Pelo contrário, quer dizer que, agora, depois de um extenso hiato, eles renovaram a preocupação com o apóstolo, como haviam demonstrado há dez anos. Percebemos que isto é o que Paulo está dizendo, baseado na próxima frase: “também já tínheis antes, mas vos faltava oportunidade” (4.10).
Com perspicácia, Paulo percebe como a sua exuberante gratidão aos filipenses poderia ser mal compreendida. Ele insiste que suas palavras não sugeriam pedido de mais um donativo. Se existe alguma coisa que deseje, diz ele: “o que realmente me interessa é o fruto que aumente o vosso crédito” (4.17). Noutras palavras, Paulo está principalmente contente que os filipenses tenham sido tão generosos no trabalho do evangelho. Não porque ele fosse o receptor dessa generosidade, mas porque, com a generosidade, eles estariam agindo como cristãos. E Deus, que nada deve a ninguém, os recompensaria. Paulo está mais alegre com as bênçãos que eles experimentarão por demonstrarem ser uma igreja doadora e generosa do que com a própria oferta que veio às suas mãos.
Aparentemente, Paulo procura redirecionar algumas das doações futuras: “Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde que Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus” (4.18). Qualquer que seja o caso, quer os filipenses enviem esses donativos generosos a Paulo quer a outros, os donativos eram oferecidos primeiramente a Deus: “como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus” (4.18).
Estas são importantes lições de cortesia e generosidade cristã. Examine como Paulo agradece aos crentes em suas cartas; leia e releia as “ações de graças” de abertura que marcam todas as epístolas com exceção de uma (Gálatas). Seu modelo é agradecer a Deus por aquilo que os crentes têm feito ou pelos sinais de estabilidade espiritual que ele percebe neles. É uma atitude duplamente sábia. Precisamente porque Deus não é devedor a ninguém, os seus filhos podem confiar nele para suprir as suas necessidades: “E o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de suprir, em Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades” (4.19).
Volto ao comentário do início, de que alguns irmãos passam necessidades e parece que não são socorridos. Nossos amigos, no passado, auxiliaram muitos pastores e missionários, tal como pessoas desprovidas dentro e fora da igreja, e nunca reivindicaram o que deram. Existe gente que pensa que “merece” ajuda. A meritologia está tão embutida em nossa cultura que a vemos em dizeres das diversas psicologias que enfatizam auto-ajuda, autopromoção, auto-assertividade, e nas sociologias dos movimentos sociais como as do MSTs. A verdade é que eu não mereço nada. Pecadora indigna, eu nada mereço senão a condenação eterna de um Deus justo e bom. Tudo o que ele fez por mim, tudo que me dá e faz a cada dia, é exclusivamente pela sua graça mediante a obra redentora de Jesus Cristo. Nossos amigos que hoje sofrem necessidade e não merecem passar por isso, não é porque Deus tenha declarado que todo crente será sempre vitorioso e próspero. O pecado existente no mundo, as más escolhas que porventura fizemos, às vezes, até a ingratidão e displicência de outros fizeram com que essas coisas que fazem parte da existência humana, acontecessem e tornaram a sua vida ficasse injustamente desprovida. Também não cabe a nós julgar os méritos de quem sofre— a nós que somos participantes da graça de Deus (Fp 1.7) cabe imitarmos a Cristo e a seus servos, sendo generosos co-participantes da graça de Cristo, que,
reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte,  e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que, ao nome de Jesus se dobre todo joelho nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai (Fp 2.7-11).
Qualquer generosidade que exerçamos será em obediência ao Deus que tudo nos dá. Tem de ser com humildade, e é desenvolvida com temor e tremor, com alegria e cautela. É esta a mensagem que Paulo escreveu à igreja formada por ele em meio a grande perseguição e entrega de vida. Nesse espírito, temos motivo constante de gratidão que se demonstra em continuada generosidade. Nossos amigos não deverão passar por provações insuportáveis. Todos nós poderemos viver sem ansiedade; conhecidas diante de Deus nossas orações. Paulo pode dizer com sinceridade: Posso tudo naquele que me fortalece (Fp 4.13) e concluir “O meu Deus, segundo as sua riqueza em glória, há de suprir, em Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades” (Fp 4.20).
Elizabeth Gomes

sexta-feira, novembro 04, 2016

TEOLOGIA PARA BLOGUEIROS, FACEBOOKERS E OUTROS CONVERSADORES


 
Norman Rockwell - pintura
Uma ilustração antiga vai assim – o menino saía para jantar em casa de um amigo e ouviu uma última recomendação da mãe: E não vá dizer que não gosta de alguma coisa, ein! À mesa, o garoto viu, olhos arregalados, um prato de jiló tão ameaçados como a ordem materna. Não gosta de jiló?, perguntou a mãe do amigo. Gosto, respondeu, de pronto, mas não a ponto de comer. Muitas vezes, cremos, mas não a ponte de praticar. É mais ou menos por aí que vão as “teologizações” na mídia. Há muita coisa boa, de gente boa, graças a Deus! Mas há, também, muita falta de coerência entre o que a Bíblia diz e o que dizemos. Por toda parte vemos ginásticas para cumprir crenças e manter gostos e prazeres pessoais. E vemos tentativas de comunicação, nas quais más posturas e más palavras negam os comportamentos requeridos para uma vida de graça mediante a fé.

Em Efésios 4 (LTNH), Paulo fornece uma lição de teologia da vida cristã – ...peço a vocês que vivam de uma maneira que esteja de acordo com o que Deus quis quando chamou vocês (v. 1b). Nas linhas que se seguem, o apóstolo fala do caráter, da disposição, e do serviço das pessoas chamadas para viver a união da própria Trindade.
Sejam sempre humildes, bem educados e pacientes, suportando uns aos outros com amor. Façam tudo para conservar, por meio da paz que une vocês, a união que o Espírito dá. Há um só corpo, e um só Espírito, e uma só esperança, para a qual Deus chamou vocês. Há um só Senhor, uma só fé e um só batismo. E há somente um Deus e Pai de todos, que é o Senhor de todos, que age por meio de todos e está em todos (vv. 2-5)

Paulo prossegue, dizendo que cada um, dessa totalidade chamada para a salvação, recebeu de Cristo um dom especial ensinado e treinado por pessoas igualmente dotadas e, por sua vez, doadas à igreja: apóstolos, profetas, evangelistas, e pastores mestres, para preparar o povo de Deus para o serviço cristão a fim de construir o corpo de Cristo (cf. vv. 11, 12). Somente dessa forma, diz ainda, chegaremos à necessária unidade da fé e ao conhecimento do Filho de Deus. Somente desse modo seremos pessoas maduras, isto é, alcançaremos a estatura espiritual de Cristo (cf. v. 13). Somente dessa forma deixaremos de ser crianças surfando ondas baratas ao sabor dos ventos de mentiras de pessoas falsas (cf. v. 14). Somente falando a verdade com espírito de amor cresceremos em tudo até alcançarmos a estatura espiritual de Cristo, que é o cabeça (v. 15).

Como discernir textos maduros e textos imaturos, se nosso conhecimento das pessoas se resume, em muitos casos, a um contacto de apresentação seletiva?

Em primeiro lugar, observando criticamente o ajustamento que tais pessoas exibem como membros do corpo da igreja sob o senhorio de Cristo (v. 14). Em segundo lugar, observando como essas pessoas regeneradas abandonam a velha natureza com seus desejos enganosos e como se separam de posturas pagãs caracterizadas por falta de vergonha de expor pensamentos e sentimentos descontrolados e indecentes (vv. 16-19, 22). Em terceiro lugar, observando como essas pessoas aprenderam como seguidores de Cristo, ou “aprenderam a Cristo”, que quer dizer como elas aprenderam a verdade a verdade que está em Cristo (v. 20). As pessoas verdadeiramente dotadas pelo Senhor para servi-lo no crescimento do corpo de Deus despem-se da velha natureza e revestem-se da nova natureza, criada por Deus, que é parecida com sua própria natureza e que se mostra na vida verdadeira... (v. 23).

A comunicação dessa vida verdadeira, e nesta vida verdadeira, implica um constante luta contra todas as formas de mentira. Como expõe o Breve Catecismo de Westminster, sobre o Nono Mandamento (PR 77, 78), a Bíblia requer a “a conservação e promoção da verdade entre os homens e a manutenção da nossa boa reputação, e a do nosso próximo”  proibindo toda forma de mentira, tais como juízos falsos, calunia, difamação, boatos, falsidades, fofocas, tagarelice, insultos, xingamentos, maledicências, falsidades e profecias extrabíblicas.

Deixar a mentira e falar a verdade é uma luta realmente difícil, pois todos somos propensos a considerar as coisas nos limites de nossa própria visão, e não com os olhos de Deus. Alguns que tentam manter honestidade e sinceridade, às vezes, ainda assim, falham em função uma pobre exegese do texto bíblico e desconhecimento da pobreza da natureza humana. O texto de Ef 4.25 diz que nossa motivação para deixar a mentira e falar a verdade com o próximo reside no fato de que somos membros uns dos outros

Novamente, a nossa união com Cristo e nossa consequente unidade no corpo de Cristo é que nos habilita a falar a verdade em amor (cf. D. Powlison, Uma nova visão, Ed. Cultura Cristã). Se atendermos à verdade, também obedeceremos à ordem bíblica de sermos sensíveis à injustiça, irando-nos contra o pecado e a falsidade em quaisquer termos, quer de doutrina quer de comportamentos. Em tudo isso, porém não poderemos ir da ira justa à raiva, pois correremos o risco de sermos tentados pelo diabo (v. 26). Sempre que dermos lugar à ira rancorosa, amargurada, findaremos roubando ao próximo aquilo que, antes, deveríamos proporcionar. Em vez de entrar em contendas inglórias, deveríamos trabalhar para desenvolver os nossos dons e, ainda, para ter com que acudir o necessitado (v. 28).
Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, e sim unica-mente a que for boa para edificação, conforme a necessidade, e, assim, transmita graça aos que ouvem. E não entristeçais o Espírito de Deus, no qual fostes selados para o dia da redenção. Longe de vós, toda amargura, e cólera, e ira, e gritaria, e blas-fêmias, e bem assim toda malícia. Antes, sede uns para com os outros benignos, compassivos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus, em Cristo, vos perdoou (vv. 29-32).

Aquele que consegue ver com os olhos de Deus e, pelo Espírito, entender a prescrição bíblica, certamente cuidará da própria boca, e da escrita. Para que usar palavra torpe? Uma figura torpe? Só para chocar? Note que não quero ser moralista, legalista, e daí em diante, e faço uso de minha liberdade cristã – mas entendo que, mesmo que uma palavra ou imagem não seja torpe, poderá ser que seu uso seja malicioso. De todo modo, a pergunta é: o que digo, escrevo ou exponho, transmite graça ao que me ouve ou vê?


Wadislau Martin Gomes

sexta-feira, outubro 21, 2016

MEDICINA, CINEMA E LIDERANÇA

Cena do filme The Physician

Com minha leitura mais recente, fiquei pensando no que faz tantos médicos tornarem-se exímios escritores. Certamente, as qualidades necessárias para um clínico – observação precisa, ler nas entrelinhas do que o paciente diz e do que não diz, observar o corpo e os seus sinais silentes, muitas vezes, fisicamente invisíveis – dão respaldo para um escritor de primeira grandeza. Outra característica do bom médico que vem a ser melhor escritor, também, é o hábito da pesquisa constante, renovada sob novas perspectivas. Ele não se contenta com o que aprendeu na faculdade de medicina, mas é ávido por aprender sempre, sem superficialidade, ainda que consiga ver “de cara” aquilo que vai pesquisar “mais a fundo”. Vejo isso em minha amiga jovem neurologista, Dra. Claudia, que irradia profunda sensibilidade juntamente a um experiente conhecimento – enquanto, humildemente, diz: “Não sei. Vamos pesquisar...”

Lembro-me de ter visto a mesma característica em velhos médicos missionários que fundaram hospitais pioneiros e tornaram-se referências em suas cidades – Dr. Gordon, em Rio Verde, e Dr. Fanstone, em Anápolis. Seu conhecimento ia muito além da medicina – foram engenheiros arquitetos, administradores, músicos, e pregadores da Palavra de Deus, cuidando do físico e alma das pessoas, porque as viam como uma totalidade.

Na literatura, muitos dos livros que mais me empolgaram foram escritos por médicos: os diversos livros de Oliver Sacks (O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, Alucinações musicais), Raízes, de Alex Hailey, Cutting for Stone, de Abraham Verghese, a ficção científica de Michael Crichton, os livros históricos de diversos períodos de Noah Gordon (especialmente O último judeu e O físico), e até mesmo nosso Dráuzio Varela, que consegue fazer suas biografias de prisioneiros e carcereiros, de enfermos e sarados, leituras fascinantes. No terreno bíblico, há o Dr. Lucas, companheiro e biógrafo do apóstolo Paulo e de todos os primeiros momentos da Igreja, até autores cristãos modernos, como Henry Brand, Roger Hurding e D. Martyn Lloyd-Jones.

Não sou aficionada ao cinema, e quando meu filho emprestou-me o livro Lições de liderança no cinema, de Pablo Gonzalez Blasco, não imaginava que seria uma experiência tão enternecedora, educativa e provocante. Como educadora cristã que escreve, pensei que essas lições de liderança resultariam em algumas “dicas” para palestras ou escritos futuros. O autor é médico com pós doutorado em medicina de família, e autor de diversas obras sobre a humanização da medicina. Cristã que sou, pensei que a sua ênfase no humanismo e constantes citações do papa Bento e de santos católicos romanos de diversas épocas não coadunaria com minha visão da soberania de Deus e de cristianismo bíblico segundo nosso enfoque. Mas suas constantes referências ao pensamento e doutrinas cristãs de Agostinho e C. S. Lewis derrubaram os muros mentais que eu tendo a erigir, e eu quis aprender com Dr. Pablo, que afirma “o amor pela verdade é o substrato necessário para todas as reflexões sobre liderança... o amor pela verdade nos configura e consequentemente nos atinge também o relacionamento com os outros” (p. 24). Lembra a declaração de Jesus em João 8.32: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” e sua suma relacional em João 13.35 e João 15.14.

O livro é prenhe de filosofia prática. “Sim, é possível transformar-se, tornar-se melhor, buscar caminhos novos para a vida, sem aceitar a idade como desculpa para o conformismo” (p. 156), lembra-me Romanos 12.2: “E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus”.

Como um professor/escritor poderia descartar este livro que diz: “A pedagogia bíblica, com suas histórias e parábolas, nos ensina que a gratidão é atitude rara, que deve ser ensinada como um hábito a incorporar desde a mais terna infância. Lá encontramos um exemplo gráfico de um grupo de leprosos curados milagrosamente; apenas um voltou para agradecer?” (p.180)

“A adaptação da maturidade requer entendimento dessa realidade e passar por cima das ingratidões, lombadas naturais no curso da vida, sem queixar-se, sem desistir. É o momento de lembrar os motivos que nos levam a agir, e viver, de verdade, com a convicção de que ninguém nos deve nada, porque nunca nos passamos a conta: o nosso balanço contável situa-se em outro nível”. A citação seguinte parece tirada do velho apóstolo Paulo no capitulo 4 de Filipenses: “aprender a envelhecer sorrindo (Alegrai-vos no Senhor, outra vez digo: Alegrai-vos” (4.4), um sorriso que resume a paz, a adaptação, a atitude aberta que convive com qualquer mudança”(p. 181) “porque aprendi a viver contente em toda e qualquer situação. Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo e em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome; assim de abundância como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece” (Fp 4.11-13).

Referido-se ao filme da história de Nelson Mandela, Gonzalez Blasco diz: “Invictus aponta para uma liderança que é cuidado fino, atenção pessoal, verdadeiro coaching – palavra que logo cairá também no desgaste conceitual pois o nosso mundo não perdoa. O verdadeiro líder não é um gestor macro, mas alguém que olha com carinho no micro, na pessoa, em cada um, no interior. Não lhe interessam estatísticas nem apenas resultados no conjunto, embora saiba que deverá prestar contas, porque o mundo é assim avaliado. Vai atrás de cada um, e tira dele o melhor, e o mundo melhora assim, mais do que com políticas globais...” (p. 221,22). Lembro da parábola das noventa e nove ovelhas no aprisco e o Bom Pastor que vai atrás da uma ovelha desgarrada e perdida (Mt 15.24; Mt 18.12).

Ao ler os comentários cinematográficos, que o Dr. Pablo aplica tão propriamente à medicina da família e geriatria, lembro do dito, (vantiliano, schaefferiano) que “toda verdade é verdade de Deus”, julgo criticamente as suas posições humanistas, mas louvo a sua visão de servir o ser humano: “Responder com generosidade a situações alheias ... é porta que descortina horizontes formidáveis, perspectiva que coloca em jogo os talentos que Deus nos deu, e os faz render. Servir é sempre caminho de crescimento. E todos têm jeito para isso; basta querer” (p. 233).

Concluo com o que diz Dr. Pablo sobre perdão: “Compreender, desculpar e perdoar é possível mediante o amor de Deus e a nossa humilhação. Quer dizer: para perdoar de verdade, sem guardar contabilidade, é preciso esmagar o ego e pedir emprestado o amor divino capaz de cicatrizar as ofensas” (p. 237)

Não tenho a habilidade, precisão e cultura de um médico familiar que escreve com beleza sobre a graça de aprender com cinema. Longe de mim achar que escritos de uma would-be writer pecadora, a quem falta conhecimento apesar da maturidade, tenha escritos para a eternidade. Mas quero ter a humildade e sabedoria de outro exímio escritor e médico, que afirmou em seu prólogo:

“Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído” (Lucas 1.1-4).

– escrevendo sempre narração coordenada, depois de acurada investigação desde sua origem, dar por escrito uma exposição em ordem, com a finalidade de que meu leitor tenha plena certeza da verdade.


Elizabeth Gomes

sexta-feira, setembro 16, 2016

SUICÍDIO, MEU DEUS!?

Duas razões pelas quais deixei passar uns dias do impacto para abordar o assunto do provável suicídio de um irmão: em respeito à dor dos que lhe foram próximos, e com respeito à lembrança de minha própria dor. Tive de lidar com meu próprio coração diante de eventos semelhantes ocorridos na família natural e na família da fé. Ansiei por respostas para questões próprias de criaturas criadas para a eternidade e submetidas ao temor da morte (Ec 3.11). Respostas às minhas dores e dúvidas, e respostas de consolação para os que foram abandonados, feridos da morte de alguém. Nossa alma grita uma e outra destas dores: Oh! Meu Deus!? Pode, um crente, cometer suicídio? Era salvo? Perdeu a salvação? E eu, como fico diante do testemunho do evangelho aos fracos e aos perdidos? Será que falhei para com ele? Será que Deus falhou?

De todas essas, a interrogação que poderá, ou não, ser altruísta talvez seja a primeira. As demais tendem a ter mais conosco mesmo. De fato, nossas perguntas imediatas poderão cuidar mais de nossa fé do que da fé de quem tirou a própria vida. Deus, contudo, quer que o amemos sobre todas as coisas e, ao próximo, como a nós mesmos. Alguém disse, com razão, que ninguém pode julgar o coração de uma pessoa – só o Espírito de Deus e o do indivíduo poderão conhecer o seu íntimo (ICo 2.11). Neste caso, lembremo-nos de que o Senhor é Deus de vivos, não de mortos (Lc 20.38), e ele quer que cada um de nós esteja prevenido para não cair em tentação e para ajudar a outros (1Co 10.12; MT 26.41).
Assim, eis alguns pontos cruciais:

·                        Tirar a própria vida em função de desespero é um pecado de desamor e de ingratidão em relação a Deus, e de falta de amor e de desprezo pela vida dos outros. Ao contrário, dar a própria vida por amor de alguém é uma suprema validação do amor. O exemplo supremo e de significado único é o do Senhor Jesus que, espontaneamente, deu a sua vida por amor de nós (Lc 10.18). Seu amor jamais falha e a morte dos seus santos é o cumprimento da promessa (Jo 11.25).  Em termos humanos, há o exemplo de Sansão (Jz 16.28-30), cuja morte cumpriu o juízo de Deus. Há, também, o exemplo do apóstolo Paulo, que tinha o desejo de partir para estar com o Senhor, mas, por amor dos irmãos, escolhia ficar (Fp 1.23-24).
·                        O Senhor Jesus é o vencedor da morte, e, isto, em dois sentidos: (1) ele morreu para a redenção dos eleitos e para a condenação dos ímpios; e (2) ele ressuscitou para conceder vida eterna aos que são seus. Isso significa que nossa vida eterna está nele e nada, nem ninguém, a poderá tirar, seja algo seja alguém seja eu mesmo (cf. Rm 8.33-39), pois ele nos justificou de todo pecado, incluindo o do suicídio ou o da falha em ajudar a alguém com tendência suicida.
·                        De algum modo, o suicídio está ligado à depressão, mas não poderá ser reduzido a uma experiência psicológica. Como disse J. Black (CCEF), pensamentos e experiências afetivas que finalizam na decisão de cometer suicídio procedem da mesma fonte que a depressão leve, isto é, o coração (Pv 4.23). Não podemos nos esquecer é que todos os nossos pensamentos e afeições giram em torno do tipo de relacionamento que temos com o Senhor. Assim, quando pretendemos fazer cessar a dor ou o sofrimento – desapontamento, abandono, perseguição, culpa, ira, medo, perda, e daí em diante – por meio outro que usurpe o senhorio de Cristo, soberano sobre o nosso querer, sentir ou pensar, simbolicamente já atentamos contra a própria vida.
·                        Um ato de suicídio poderá estar ligado a formas mais severas de transtornos afetivos, cognitivos e ou biológicos. Ainda aqui, temos de manter em mente que a pessoa é singular, e que os diversos aspectos da alma interagem no homem interior e se exteriorizam e finalizam nos atos do corpo. Consequentemente, as afeições do coração – expressadas em pensamentos, sentimentos e comportamentos – são experimentadas em termos químicos hormonais nos processos orgânicos. Abuso de drogas poderá produzir pensamentos suicidas; até mesmo, remédios receitados poderão modificar os processos mentais. Onde isso nos leva? Tanto ao fato de que as coisas que sentimos, pensamos e atuamos na mente ou no corpo, poderão alterar nossa disposição física, quanto ao fato de que nossa disposição física poderá alterar o nosso equilíbrio interior. Nessas situações, haverá necessidade de intervenção especializada, de conselheiro e de médico (às vezes, com urgência). Note que, uma vez que nossa vida está guardada em Cristo, será importante que o cuidador professe uma cosmovisão cristã, podendo contar com o auxílio de não cristãos providos pela graça comum para o caso de socorros emergenciais.
Estando cientes, portanto, do perigo envolvido nesta matéria, o cristão deve estar atento a alguns sinais (J. B. CCEF): (1) pensamentos repetitivos sobre terminar a própria vida, como única maneira de escapar à dor e ou ao problema; (2) uma visão de si mesmo que não inclui a habilidade de tolerar intensa pressão e ou dor interna; (3) um senso de isolação ou abandono acompanhado da crença de que outros significantes não podem, não querem ou não fornecem apoio, conforto ou cuidado; (4) sentimentos de desesperança, acompanhado da crença de não pode achar solução de um problema; (5) sentimento de dor psicológica, que parece intolerável, a qual a pessoa relaciona à sua incapacidade para satisfazer suas necessidades sentidas.

Além de solicitar auxílio de alguém com especialização em áreas da ajuda humana, o que uma pessoa regenerada poderá fazer para auxiliar alguém que mostre sinais de ameaça à própria vida? Primeiro, despertar esperança e responsabilidade por meio de confiar nela acerca de uma ação objetiva (p.e., “Prometa-me que você não fará nada que o fira e, se estiver sob essa tentação, ligue-me e espere-me”). Quando esse alguém estiver em condições de conversar, alimente a conversa de maneira sensata e amorosa. Não tente argumentar; faça perguntas que demonstrem as contradições e falsidades do seu autoengano. Conduza-o a desassociar as noções de dor e de necessidades sentidas; lembre-lhe de como Jesus suportou a dor como suprimento para a nossa verdadeira necessidade. Em uma intervenção pessoal, leve em conta que a redução realista do nível de sofrimento poderá mover a pessoa a escolher a vida (p.e., quando uma pessoa querida, cujo filho havia suicidado, perguntou-me: A dor não passa? respondi-lhe: Não, a dor não passa, mas a promessa de Deus é que ele aumenta a força dos ombros para que a possamos suportar – 1Co 10.13). Finalmente, mantenha em mente que é a Palavra de Deus, e não a sua, e que é o Espírito Santo, e não você, que são os poderes que Deus usa para, por meio de você, alcançar o coração do outro.

Ao considerar o tema do suicídio, a pessoa regenerada terá de manter os ouvidos atentos às palavras de Paulo:

Porque não queremos, irmãos, que ignoreis a natureza da tribulação que nos sobreveio na Ásia, porquanto foi acima das nossas forças, a ponto de desesperarmos até da própria vida (2Co 1.8).

Somente o Senhor tem a última Palavra sobre alguém que tirou a própria vida. Somente o Senhor sabe sobre salvação ou perdição de uma pessoa. Somente o Senhor conhece as profundezas das afeições que moveram alguém ao suicídio. Nós, os sobreviventes, somos instados a cuidar de nós mesmos e da doutrina, e a cuidar uns dos outros. Ah! Que eu faça isto, em humilde oração!


Wadislau Martins Gomes

sexta-feira, setembro 02, 2016

DISCERNIMENTO, ENTENDIMENTO, CONHECIMENTO


Estava conversando com uma amiga sobre as diversas crises de fé que temos e que observamos na vida de nossos irmãos. São dificuldades na política atual, na ética que nos força e de cujos baixos não conseguimos escapar, da vida que nos cerca e que nós mesmos experimentamos, coisas que nos sacodem e, às vezes, nos devoram. “Quantos que corriam bem de ti longe agora estão, outros seguem, mas também sem fervor vivendo estão...“ (Hino Vivifica, 132 HNC). Muitas igrejas (e os indivíduos que as compõem) optam pelo que é conveniente, moderno, duvidoso, porque estão focados mais no pensamento do mundo do que no de Jesus Cristo, de quem tomamos o nome. Ao agirmos sem ortopraxia, anulamos qualquer ortodoxia que proclamamos. Alguns nem querem mais ser ortodoxos. Preferem ser atuais, e sua contextualização anula os textos firmes da Palavra da Verdade. Vemos a cada dia mais as características dos últimos dias, em que virão tempos difíceis. Como dizia um tio amado, mas enganado: Todos nós queremos um pouco de heresia. A advertência descritiva de Paulo ao filho na fé, Timóteo, está mais real que nunca:

Os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder (2Tm 3.1-5).

Pensando na mudança de paradigmas para algo mais bíblico, abri num trecho que eu tomara como temático para mim, sem prestar atenção ao contexto de Oséias. É o da conversão insincera de seu povo (“o vosso amor é como a nuvem da manhã e como o orvalho da madrugada, que cedo passa”- Os 6.4). Se estas palavras que eu desejava, viessem de coração verdadeiramente arrependido, teriam sido muito mais cedo atendidas pelo Deus de misericórdia:

Vinde, tornemos para o Senhor, porque ele nos despedaçou e nos sarará; fez a ferida e a ligará... Conheçamos e prossigamos em conhecer ao SENHOR; como a alva, a sua vinda é certa; e ele descerá sobre nós como a chuva; como a chuva serôdia que rega a terra (Os 6.1-3).

Deus quer de seu povo um coração contrito: “Misericórdia quero, e não sacrifício, e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos” (Os 6.6). Deus disse:

Semeai para vós outros em justiça, ceifai segundo a misericórdia; arai o campo de pousio; porque é tempo de buscar ao SENHOR, até que ele venha, e chova a justiça sobre vós. Arastes a malícia, colhestes a perversidade, comestes o fruto da mentira, porque confiastes nos vossos carros e na multidão dos vossos valentes... Quando Israel era menino, eu o amei, e do Egito chamei o meu filho. Quanto mais eu os chamava, tanto mais se iam da minha presença... Todavia, eu ensinei a andar a Efraim; tomei-os em meus braços, mas não atinaram que eu os curava. Atraí-os com cordas humanas, com laços de Amor; fui para eles como quem alivia o jugo de sobre as suas queixadas, e me inclinei par dar-lhes de comer... (Os 10.12-14; 11.1-4).

O convite insistente vem cheio do amor e da belíssima misericórdia de Deus, que nutre e que cura, que floresce e firma:

 Volta, ó Israel, para o SENHOR, teu Deus, porque, pelos teus pecados, estás caído. Tende convosco palavras de arrependimento, e convertei-vos ao SENHOR; dizei-lhe: Perdoa toda iniqüidade, aceita o que é bom e, em vez de novilhos, os sacrifícios dos nossos lábios... tu és nosso Deus; por ti o órfão alcançará misericórdia. Curarei a sua enfermidade, eu de mim mesmo os amarei porque a minha ira se apartou deles. Serei para Israel como orvalho, ele florescerá como o lírio e lançará as suas raízes como o cedro do Líbano. Estender-se-ão os seus ramos, o seu esplendor será como o da oliveira, e sua fragrância, como a do Líbano. Os que se assentam de novo à sua sombra voltarão; serão vivificados como o cereal, e florescerão como a vide... (Os 14.4-7).

Quando meu neto, Matthew, era pequeno, diferente dos outros que gostavam de arroz com caldo de feijão, e tudo mais, bem misturadinho no prato cheio, ele gostava de separar cada tipo de alimento, não permitindo que se misturassem carne, carboidratos e legumes verdes. Para ele, era questão de discernir cada comida e degustá-la separadamente. Se tivesse no prato arroz com feijão, era capaz de cuidadosamente tirar cada grão de feijão encontrado e colocá-lo num quadrante do prato diferente do de arroz. Depois, comia o arroz, comia o feijão, comia a carne e as verduras e legumes, cada coisa até terminar. Gosto de pensar nisso como a capacidade, desde cedo, de discernir entre um grão e outro, uma verdura e outra. Hoje, que é adulto, ele tem levado essa característica de discernimento aos outros aspectos da vida. Ah! Se entendêssemos que a palavra viva e eficaz de Deus penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, apta para discernir os pensamentos e do coração (Hb 4.12).

Uma das sequelas de um AVC sofrido em 2007 foi que perdi a cristalinidade da voz com que cantava sempre. Mas tenho me descoberto salmista de coração, mesmo com voz de taquara rachada, porque meu louvor não é fruto de voz e respiração treinadas. O meu louvor, como disse o autor de Hebreus, é fruto de lábios que confessam o teu nome (Hb 13.15). Para isso, tive de experimentar primeiramente a disciplina do Senhor, “para aproveitamento, a fim de sermos participantes da sua santidade”, que produz fruto pacífico aos que por ela tem sido exercitado, fruto de justiça (Hb 12.11). Seja esta a oração de cada salmista de coração!

O brilhante Charles Wesley escreveu um hino dizendo “Mil línguas eu quisera ter para entoar louvor” (SH 211), e eu tinha o mesmo sentimento: queria saber expressar o louvor de inúmeros modos e acabo não conseguindo comunicar sequer em meu próprio idioma as profundezas e a amplidão do amor de Deus. “Faz-me conhecer os teus caminhos; ensina-me as tuas veredas; guia-me na tua verdade e ensina-me, pois tu és o Deus da minha salvação,” diz o salmista (Sl 25.4,5). Quero, por esta razão, ter o discernimento, o entendimento e o conhecimento do Senhor conforme disse Jó: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora meus olhos te vêem” (Jó 42.5).

Elizabeth Gomes

terça-feira, julho 26, 2016

O QUE GUARDAMOS DESSES TEMPOS?



No dia quinze de julho, seis anos se passaram da morte de minha mãe. Agora, no dia quatorze de julho, 83 pessoas que gozavam o feriado nacional, em Nice, na França, foram atropeladas e mortas por um caminhão em mais um ato terrorista muçulmano. Outra centena de pessoas ficou ferida. No dia 11 de setembro de 2001, as torres gêmeas da cidade de Nova York foram atacadas por aviões suicidas, e mais de 3000 pessoas morreram em decorrência desse ato infame de terrorismo. Mais pessoas morreram ainda nos ataques coordenados a um avião e ao pentágono. Nos anos desde então, o mundo viu ataques terroristas a maratona em Boston, na França à editora de Charlie Hebdo, a supermercado kasher, a sinagogas, a boates e restaurantes, na Espanha, na Turquia, na Alemanha, em Orlando, em um parque no Paquistão, na Nigéria, em lugares sem conta e sem definição de raça (mas sempre vociferando contra o cristianismo). A maioria européia é pós-cristã, mas está sendo morta sob o nome de ‘cristãos’. Muitos estão temem de que as olimpíadas no Rio de Janeiro venham a ser outro cenário de terror, e outros muitos devolvem os ingressos que compraram para os jogos. E ainda existem milhares de pessoas no mundo que estão sendo atacadas e mortas por sua fé cristã.
A primeira data, o descanso de minha mãe, teve grande impacto sobre mim e minha irmã, sobre centenas de amigos e familiares, e pessoas que receberam seu aconselhamento e suas orações. Muitos missionários e obreiros sentiram a perda de uma mulher de Deus que em 86 anos tocou muitas vidas com o amor de Jesus. Mas não foi uma perda nacional ou internacional. Mamãe estava preparada para estar com Jesus—às vezes almejava ir e não sofrer ou ver mais o sofrimento de pessoas a quem amava aqui no mundo. Eu sinto sua falta, mas já a sentia antes, morando longe e só podendo visitar raras vezes e por pouco tempo. Mas não esqueço a data e, embora eu não estivesse ali no momento em que ela caiu ao atravessar a sala para pegar o aparelho de audição, guardo na memória cada detalhe que me foi relatado. Quero me lembrar, tintim por tintim, porque a história preciosa, recontada, marca minha condição de cristã madura, esposa, mãe e avó, com um vago sentimento de orfandade que se instalou. A minha cabeça até hoje vai cantarolando o Negro Spiritual norte-americano: “Sum’times ah feel like a motherless child’... a long way from home”.
Na verdade, ataques a gente comum, homens, mulheres e crianças, a homossexuais, a judeus, a cristãos, a pessoas de todas as raças e tribos, têm acontecido ao longo da história —desde que cometem o crime de serem “infiéis a Allah”. Infelizmente, muitas perseguições foram perpetradas por “cristãos” contra outros cristãos, judeus, e muçulmanos, na Inquisição. Um médico cristão que dirige o museu da inquisição em Belo Horizonte disse-me que um em cada três dos colonizadores do Brasil eram “novos cristãos”—judeus ‘convertidos‘ à força pela igreja católica romana sob pena de morte. Anda hoje conhecemos gente que viveu o holocausto na Alemanha e Europa Oriental. Ontem morreu um dos mais lúcidos pensadores forjados em Auschwitz e Buchenwald: Elie Wiesel. Eu convivi com um casal querido que foi vítima em Auschwitz e viu muitos dos seus familiares morrerem nos fornos. Hugo e Carole Rosenau se tornaram grandes amigos nossos, em Philadelphia, abençoando nossas vidas. No começo do século XX, os turcos realizaram o maior genocídio de armênios de toda a história, conforme testemunhou uma querida senhora, em Jaú. Ouvimos de gente perseguida na África, Ásia; e mesmo na América. A face da Europa está sendo mudada pela entrada de milhares de imigrantes refugiados, e vemos situações antes de ajuda e apoio tornando-se lugares de ódio e vingança.
Grande parte de nossa nação foi formada por estrangeiros—imigrantes, refugiados, perseguidos em outro lugar, que encontraram lar amigo aqui. Mas como no mundo inteiro, o Brasil está ouvindo vozes de ódio, e muitos atendem a esses sentimentos avessos que se manifestam desde ‘pequenos incidentes’ de preconceito até grandes perigos de terrorismo em massa.
Eu e você somos chamados a guardar na memória dias, meses e anos. Dias de graça, dias de fúria. Dias corriqueiros que só os mais próximos da pessoa ou do evento se lembrarão. Dias singulares que mudaram o curso da história. O tempo para quem passou dos cinquenta (ou sessenta, ou mais...) voa e não passa. Não temos tempo de fazer metade do que pretendemos realizar; temos tempo de sobra para remoer o que está errado nessa vida debaixo do sol. Comecei a escrever esse blog no dia que lembrava a morte de minha mãe. Ontem, quando retomei o assunto, as redes sociais comemoravam duas efemérides: Dia dos Avós, e Dia do Escritor. Participo das duas bênçãos: sou avó de sete netos, e escritora com sete livros publicados. O primeiro “dia” que alguns guardam me enche de orgulho humilde—aquele orgulho de gratidão, de saber que não fizemos por merecer, mas que a graça fez tudo. O segundo me humilha. Sou grata por ser, como o é meu marido e companheiro de vida, escritora. Mas sou humilhada pela imensidão de coisas e assuntos sobre o qual devo meditar na Palavra e escrever para gente que luta, como eu, para entender o que Deus quer de mim (de você). “Não há limite para escrever livros...” diz o Pregador—no entanto, sonho e me esmero por escrever algo que faça diferença em minha própria vida, e na vida dos que lerem. Frustro-me ao ver tão poucos lerem (até os que, orgulhosos, compram nossos livros e postam dizeres sobre eles, muitas vezes só passaram os olhos—não os leram, não os digeriram!). Tão poucos investirem o tempo e o cérebro para aprender mais da Palavra de Deus e aplicar essa Palavra em palavras que enriquecem o coração e a mente. E tenho de admitir que minha maior necessidade é aprender a guardar no coração o Livro-mor.
A Bíblia adverte a não guardar dias, meses, tempos (Gl 4.10) como leis que dominem o tempo e a hora em que estamos vivendo. Ao mesmo tempo, está cheia de advertências para guardar: guardar a boca, a língua, guardar o Dia do Senhor, guardar os preceitos, guardar o bom depósito, guardar os pés, guardar-nos do fermento dos fariseus, guardar-nos firmes, guardar a confissão, guardar-nos dos ídolos, guardar o amor e o juízo. Na minha chave bíblica, encontrei 121 referências bíblicas sobre guardar—o que me lembra o Salmo 121, que fala ainda de quem nos guarda: O Senhor é quem te guarda... guarda tua entrada e tua saída, agora e sempre! E o compilador de provérbios lembra o que engloba todos esses guardados:

Sobre tudo o que se deve guardar,
guarda o teu coração,
porque dele procedem
as fontes da vida. (Pv 4.23)

Elizabeth Gomes