Ao lembrar a Reforma
Protestante—a maior força para avivamento na igreja cristã depois de
Pentecostes—penso em duas mulheres, auxiliadoras
idôneas, que forneceram as condições emocionais e práticas aos maiores reformadores
para conduzirem a igreja à Palavra de Deus e à vida de piedade. Em anos
passados, li várias biografias de grandes mulheres, mas, para este artigo,
limitei-me ao livro de James Good, Grandes
Mulheres da Reforma, cuja leitura recomendo a todos os interessados na
história.
O que disseram, a respeito de
suas esposas quase anônimas, estes homens que transformaram o mundo? Lutero,
sobre Frau Luther, Katherina Von Bora:
Minha
querida Kathe me mantém jovem, e em boa forma também... Sem ela, eu ficaria totalmente
perdido. Ela aceita de bom grado minhas viagens e quando volto, está sempre me
aguardando com alegria. Cuida de mim nas minhas depressões e meus acessos de
cólera. Ela me ajuda em meu trabalho, e acima de tudo, ama a Cristo. Depois
dele, ela é o maior presente que Deus já me deu nesta vida. Se algum dia vierem
a escrever a história de tudo que tem acontecido (a Reforma), espero que o nome
dela apareça junto ao meu. Eu oro por isso...
Nascida em 1499, filha de um
nobre alemão que passava por dificuldades financeiras, Katharina foi levada ao
convento beneditino, aos três anos. Martinho escreveu um ano depois de casado:
Minha
Kathe é, em tudo, tão delicada e encantadora que eu não trocaria minha pobreza
pelas maiores riquezas do mundo... não há na terra um laço tão doce, nem uma
separação tão amarga, como a que ocorre num bom casamento... Não há relação
mais bela, mais amável e mais desejável, nem comunhão e companhia mais
agradável, do que a de marido e mulher num casamento feliz.
O prédio do mosteiro agostiniano
de Wittenberg foi dado de presente a Lutero em 1525, e Katharina o reformou e
administrou o novo lar. Isso permitiu que Lutero gozasse de relativa paz e
ordem em sua vida privada. Dedicada e diligente, Kathe era uma auxiliadora que
propiciava a seu marido condições de escrever, ensinar e pregar.
Tiveram seis filhos, dos
quais quatro sobreviveram até idade adulta; cuidavam de uma parente de
Katherina, e com a morte da irmã do reformador, passaram a cuidar de mais seis
crianças em sua
família. Além dos familiares, era comum haver mais de 30
pessoas no mosteiro, entre hóspedes, viajantes em trânsito e estudantes (que
pagavam por seus estudos, ajudando a equilibrar o orçamento). Tarefas do dia a
dia: uma horta, um orquidário, confecção de material para pescaria e uma
pequena fazenda onde criavam gado, galinhas e fabricavam cerveja caseira.
Katarina gostava de ler e de bordar; tinha conhecimento de enfermagem e
dispensava cuidados médicos ao reformador. Fazia estudos bíblicos devocionais e
memorizava muitas passagens específicas. Quando Lutero estava deprimido,
Katherina sentava a seu lado e lia a Bíblia para ele. Lutero considerava o
casamento a melhor escola para moldar o caráter, e a vida familiar como meio
excelente e apropriado para treinar e desenvolver as virtudes cristãs de
firmeza, paciência, bondade e humildade.
Madame
Calvin, Idelette de Bure e seu
marido John Storder eram anabatistas refugiados de Liege, na Bélgica. Foram
convertidos à reforma e faziam parte da igreja de Calvino em Genebra. Depois da
morte do marido, tendo ela dois filhos, Idelette chamou a atenção de Calvino
por sua piedade, atenta delicadeza, ternura e poder de auto-sacrifício como
esposa, viúva e mãe. Calvino propôs-lhe casamento e, sendo aceito, uniram-se em
matrimônio em primeiro de agosto de 1540, numa cerimônia grande e concorrida.
Seu lar em Genebra, e durante algum tempo em Estrasburgo, tornou-se centro de
emergência para refugiados vindos da França e Bélgica, morada para diversos
teólogos e estudantes de teologia. Cuidava deles ao lado do leito, apoiando-lhes
a cabeça cansada; visitava os enfermos, confortando os que passavam por
sofrimentos. Perdeu, ainda bebês, os filhos que lhe nasceram, e Calvino disse
que embora não tivesse nenhum filho natural vivo, Idelette possuía miríades de
filhos espirituais ao redor do mundo cristão.
A vida de casados de Calvino
e Idelette durou apenas nove anos; ela morreu sabendo que Calvino cuidaria dos
seus filhos como se fossem os seus. Escrevendo sobre Idelette a Farel e a Viret,
Calvino disse:
A
excelente companheira de minha vida, e sempre fiel assistente de meu
ministério... Eu perdi aquela que nunca teria me abandonado, fosse em exílio ou
miséria, ou na morte. Ela foi uma preciosa ajuda para mim, e nunca se ocupava
demais consigo mesma. A melhor das minhas companhias foi tirada de mim... Eu
sei quão dolorosas e devastadoras são as feridas causadas pela morte de uma
excelente esposa. Quão difícil tem sido a mim governar os meus sofrimentos.
Ambas essas mulheres tiveram
a vida planejada e interrompida por outras pessoas, sofreram enormes perdas e
simultaneamente trataram o coração coram
deo (diante de Deus) enquanto lidaram com a dor pessoal. Trabalharam incansavelmente
ajudando a outros. Abraçaram a justificação pela fé, aprenderam o que era uma
vida piedosa por serem eleitas de Deus. Cultas, de fina educação, o casamento
com os respectivos reformadores era surpresa para todos que os conheciam. Aos
18 anos, Katherina juntamente com outras freiras ouviram falar do ensino
bíblico de Lutero. Crendo no que ele pregava, desejaram abandonar a clausura.
Não obtendo ajuda de seus pais no sentido de livrá-las dos votos, decidiram enviar
a Lutero uma carta redigida pela Katharina. O reformador pediu ajuda a um amigo
negociante que abastecia o mosteiro com alimentos. Este Herr Koppe ajudou-as a
fugir, transportando as doze noviças em barris de peixes! Muitas delas retornaram
às suas famílias. Lutero procurou auxiliá-las a encontrar moradias, maridos e
empregos. Dois anos depois da fuga, quase todas haviam seguido seu destino
exceto Katharina, que morou na casa do pintor Lucas Cranach, autor do seu
famoso retrato. Vários pretendentes ao casamento surgiram, mas ela dizia: “Só me casarei com Dr. Lutero ou com alguém
muito parecido com ele”— ao ouvir isso Lutero ria, pois apesar de ele
condenar o celibato, afirmou que “nunca farão com que eu me case”! Acabou
propondo-lhe casamento e ficaram noivos em 13 de junho de 1525, celebrando o
matrimônio doze dias depois.
Tanto a Sra. Lutero quanto a
Sra. Calvino tinham qualidades semelhantes de piedade e amor à Palavra de Deus,
disposição e garra em meio a grandes sofrimentos, habilidades administrativas
que propiciavam ao marido condições de desenvolver seu ministério profícuo de
pregação, e ensino e extensa produção literária. Os dois reformadores sofriam
muitas dores e depressões, e parece que as duas esposas eram hábeis em
apoiá-los e ajudá-los a superar os dias mais negros. Ambas administravam casas
cheias, com múltiplas atividades, multiplicando recursos esparsos para adornar
a vida dos servos de Deus. Enquanto Katharina teve oito filhos, Idelette não
viu nenhum filho de Calvino viver para crescer, mas ambas foram mães
prestimosas que abrigaram no coração a outros filhos. Eram mulheres
simultaneamente comuns e extraordinárias em sua época. Seus
casamentos, antes julgados com reserva por parte dos reformadores bem mais
velhos que elas, deram significado e rumo à vida cristã de cada um. Tais uniões
teve repercussões que até hoje marcam a vida da igreja sem que elas mesmas
tivessem posições ou cargos de mando e ensino. Tanto Katherina quanto Idelette,
que morreram em países e culturas diferentes, quatro anos à parte (a alemã, em
dezembro de 1552, a
suíça, em abril de 1549) viveram na simplicidade de sua fé e elevada esperança,
como companheiras à altura de Lutero e de Calvino. Disse Katherina Von Bora:
“Tudo que tenho feito se resume simplesmente a duas coisas: ser esposa e mãe, e
tenho certeza que uma das mais felizes de toda a Alemanha”. (James Good, Grandes Mulheres da Reforma, trad. Anna Layse Gueiros, Ananindeua,
PA: Knox Publicações, 2009)
Hoje muitas mulheres
engajadas juntamente com seus maridos na vida da igreja poderiam aprender com
estas mulheres que viram o mundo passar da idade medieval para a era das
grandes reformas. Eram fortes na fé e firmes na esperança, mesmo que a saúde e
as intempéries da vida as fragilizassem. Eram auxiliares idôneas de seus
maridos solitários, que demonstraram coração temente a Deus e mudaram o
pensamento do mundo em
que viviam. Na condição de enclausurada, refugiada, freira
fugida ou de viúva perseguida por sua fé— elas não esperavam que as outras
pessoas resolvessem as coisas: sua confiança em Deus fez com que estivessem
atentas aos acontecimentos no mundo e ativas em mudar as circunstâncias que
podiam mudar, dependendo da providência de Deus enquanto agiam lado a lado com
o reformador que admiravam. Ah! que voltemos, nós mulheres de homens de Deus do
Século XXI, a essa vida de piedade atuante que é o evangelho!
Elizabeth Gomes