Sou grata a Deus pelos
nossos filhos que hoje são
pessoas equilibradas, sensatas e tementes a Deus, que criam os seus filhos com sabedoria. Tenho de
confessar, no entanto, que eu nem sempre
fui mãe exemplar—pelo contrário, teve uma ocasião que quase botei tudo a
perder.
Era jovem esposa de pastor, mãe de dois meninos com
uma menina no meio de sanduíche. Eu queria ser esposa ideal, super mãe, mulher maravilha, fazer tudo que
esperavam de mim e agradar a todos em minha casa, igreja, e na sociede em
geral. Acima de tudo, queria ser bem-sucedida e não cometer os erros que meus
pais cometeram na minha criação. Estava focada no meu desempenho, cumprindo a
lei de Deus e as muitas leis de homens e
mulheres que confundem fé e legalismo.
Como sempre, eu estava atarefada. “Que nem barata
tonta,” meu marido às vezes dizia. Era o programa usual de domingo, com mais
alguns pormenores de dia especial. No domingo pela manhã, eu consegui sair
antes da hora com Wadislau e nossos três, que estavam prontos para ir à escola dominical,
onde tudo transcorreu de maneira normal. O ensaio do coral depois da EBD estava
bem mais demorado, porque teríamos um evento especial com todas as igrejas da
nossa denominação logo à tarde. Nós estaríamos
apresentando junto a um grande coral da cidade (os diversos corais
haviam ensaiado, cada um em sua própria igreja, e cantariam juntos na hora
desse culto da Reforma. Chegando em casa, era só esquentar a carne que eu
preparara no dia anterior (ainda bem) e fazer o macarrão, mas assim mesmo seria
difícil colocar o almoço na mesa antes das treze horas—e o encontro das igrejas
em um grande ginásio de esportes estava marcado para as quinze horas. Ainda na
escola dominical, descobri que a missionaria vinda da África estaria se
hospedando em nossa casa, e lembrei que naquela manhã não deu tempo de arrumar
as camas e tirar as roupas do chão do banheiro antes de ela chegar e nós apresentarmo-la
ao nosso lindo lar. Com certeza ela entenderia—não era possível que uma moça
criada em Angola cheio de guerras ficasse perturbada com um pouco de desordem de
uma casa com três crianças, de oito, cinco e três anos de idade.
Acomodamos Dalia Maria no quarto que seria dela nos
próximos dias, indicamos onde colocar a mala e lavar as mãos, e demos as mãos para agradecer o
alimento sobre nossa mesa. Não sei se queimei o molho do macarrão ou o que—o
almoço ficou desfalcado e acrescentamos pãozinho à carne. Eu orei para que o
caçula não sujasse a única camisa limpa e Deborah parasse de mexer na comida
sem comer. Eu estava animada com nossa visitante, que havia sido locutora de
rádio em Luanda antes dos portugueses serem expulsos e sua cidade virar caos
total. Conversava, perguntava, e lembrei a todos de comer a sobremesa depressa porque
deveríamos estar no Grande Culto de Celebração dentro de meia hora.
Deborah saiu da mesa e voltou para a sala com a
frasqueira verde em mãos. Eu trouxera a maleta anos atrás quando vim ao Brasil
ao encontro daquele que seria meu marido. Minha linda menina lançou a bomba:
--Vou embora desta casa. Não quero mais morar com
vocês. Já peguei a mala...
Querendo dizer algo que fizesse ela entender, e sem
saber o que, dizer, disse:
-- Então eu vou junto.
Ela desceu a escada para o térreo, saiu pelo portão
murmurando algo como “ninguém liga pra mim aqui em casa”, e eu saí atrás dela, querendo saber até onde
iria a pantomima. Deborah desde pequena era decidida e expressava seus
sentimentos com dramaticidade. Ela foi
andando a passos largos, atravessou a rua e eu a segui, atravessando logo
atrás. Fui perguntando:
-- Para onde você vai?
-- Qualquer lugar sem vocês!
Pensei em modificar um pouco a tática e apontei para
uma casa uns cinco metros adiante:
-- Quer ver se a mamãe dessa casa fica com você?
-- Não! Só quero ficar longe! Ela apressava o passo
para a frente da próxima casa, e eu perguntei:
-- E essa casa? Acha que vai ser bom morar com eles?
Ela resmungou que não. Apontei para a casa
seguinte. Ela já estava chorando, e
corria mais depressa. Atrás
dela eu a seguia e chorava. Será que minha filhinha estava tão triste
comigo que preferia se aventurar a uma casa estranha do que nosso lar cristão?
-- Não quero! Não vou. Eu quero você, mesmo quando cê
não tem tempo pra mim. Quero o papai. O Davi caçoa de mim, mas quero ele de
irmão mais velho. E o Daninho... O choro agora saía em torrentes e eu a tomei
nos braços, chorando tanto quanto minha princesinha independente de cinco anos.
Voltamos para casa, bem abraçadinhas.
Chegando até lá, fui preparar-lhe um Nescau, que ela tomou ainda de cara
molhada. Lavei meu rosto na pia do banheiro, e o dela com uma toalha umedecida.
Escovei seu cabelo, dei-lhe uma roupa linda para vestir. Acabamos de nos
aprontar e fomos para o carro. Quando tomamos nossos lugares, Wadislau notou
que ela e eu tínhamos chorado, e perguntou:
-- Tudo bem, querida?
-- Tudo bem.
Do banco de trás ouvimos a declaração de Deborah,
expremida entre Davi e Dália Maria, que segurava Daniel ao colo:
-- Minha casa é o melhor lugar do mundo. Eu amo todo
mundo de vocês! Nunca, mas nunca mais vou fugir de casa.
Na conferência, era comovente o cântico coral.
Mais de duzentas vozes cantando “Castelo Forte é nosso Deus, Espada e bom
Refúgio, Com seu poder defende os seus Em todo transe agudo. Com fúria
pertinaz..” Passara a fúria, acabara o transe agudo. Agora eu estava louca para
chegar em casa e sentar no beliche de baixo do quarto dos meninos, bem juntinho
da Deborah, para contar mais uma história para o meu trio predileto. Não me
lembro onde nossa visita dormiu. Para mim e para a Deborah, não havia melhor
refúgio que junto à nossa família.
Elizabeth Gomes