Lembro-me de estar sentada na cozinha de minha avó Kate, vendo o velho de cabelo comprido e mãos retorcidas.
— Então, você é a menina do Dougie, ele disse.
Eu
tinha cinco para seis anos, amava meu pai Douglas e nunca ouvi ele ser chamado
de Dougie, mas soava como boa mistura
de Douglas e Daddy. Acedi. Gato comeu
a língua. Era a primeira e única vez que me encontrei com meu vovô Thomas
Charles. Mais tarde perguntei a meus pais sobre ele e responderam apenas:
— Ele está num hospital. Institucionalizado. Sempre foi meio
louco.
Por que havia quadros tão bonitos pelas paredes da
casa de Grandma Kate, embora todo mundo dissesse que ela era tão pobre e ele
nunca havia dado nada a ela? Por que Grandpa
Charles usa cabelo comprido – homens o usam curto? Exceto nos quadros de Jesus
e Moisés e mais gente da Bíblia. Será que meu avô é dos tempos bíblicos? Será que ele morreu? Uma vez, quando
visitamos o parque e zoológico de Richmond, o papai me disse que o pai dele tinha trabalhado muito nos parques;
que era arquiteto de paisagens
(paisagista). Mais tarde perguntei a mamãe o que era landscape architect, e ela respondeu:
— É um nome
glorificado para jardineiro.
Eu gostava de nomes glorificados . Assistindo
a televisão pela primeira vez na vida, fiquei encantada com algumas das
propagandas: “Shampoo Halo—glorifica
os seus cabelos!” e tinha certeza que usando esse xampu eu não só ficaria
mais linda, como também de alguma forma mais
santa.
Eu tive sempre uma vaga lembrança do avô desconhecido,
que foi pai de doze filhos e deixou minha valente e perfeita avó matriarcal a
criá-los sozinha durante a Grande Depressão. Alguns anos depois, ouvi minha mãe
e meu pai mencionarem que ele morrera na “Instituição”. Nada de grande luto. Só
o vazio.
Hoje em dia, os problemas das doenças mentais são
diferentes. As pessoas não ficam internadas em asilos por longos períodos. Vários
amigos que conheço dos dois lados do Atlântico têm membros da família que lutam
contra doenças mentais. Embora, hoje, não haja mais uma cultura de “internação”
ou de mandar as pessoas que “ficaram loucas” para “instituições”, muitas são as
questões não resolvidas. As famílias têm vergonha de falar delas. Frequentemente,
familiares e amigos desejariam que houvesse simplesmente um jeito de
“trancafiar” o “ofensor”. Membros da família taxados de “doidos” gastam
adoidados. Talvez tenha sido a criança mais linda da casa, mas começa a fazer
coisas estranhas e irresponsáveis. Acaba com todos os pertences da casa. Espera
presentes de natal todo dia. Esconde e guarda comida em lugares esquisitos.
Coisas como essas, quando alguns não se drogam e vão pelados
para a rua em
extrema insanidade. São crianças velhas — jamais cresceram e
nunca souberam o que um jeito manso e gentil poderia fazer para mais uma vez torná-los
belos.
Uma pessoa em recuperação atendeu ao telefone, na
clínica Refúgio que meu marido dirigia em Brasília, e ouviu a pessoa na linha:
— É aí que ficam os loucos? — e ele, sem perder o
compasso, respondeu:
— É. Aqui o melhorzinho baba!
Especialmente
depois de sofrer uma AVC, eu sentia que não só o “melhorzinho” baba, mas o ditado
brasileiro “entre médico e louco, todo mundo tem um pouco” me pareceu mais
verdadeiro. Edward Welch descreve doenças “que caracteristicamente alteram o
intelecto, as emoções ou capacidades comportamentais”. Estas podem “impedir o
entendimento, colocar limitações sobre a expressão do coração, dando ocasiões para
tentação e pecado, suscitando problemas singulares para as famílias ... porque
elas imitam problemas espirituais do coração, são muitas vezes diagnosticados
erradamente por conselheiros e médicos”.[1]
Ora, um blog não é lugar para um profundo e abrangente
ensaio sobre doenças mentais – e com certeza eu não sou qualificada para fazer
análise desses problemas. Tenho alguns amigos que são neurologistas
respeitados, muitos que são psicólogos clínicos e até mesmo alguns psiquiatras,
além dos conselheiros pastorais e de família com os quais tenho maior
conhecimento. Só posso escrever como leitora cristã que deseja saber o que a
Bíblia oferece aos que se encontram perturbados. É principalmente uma questão
de esperança e de encorajamento.
Escrevo
como quem baba – alguém que nem sempre consegue controlar a quantidade de
saliva que produz – muito menos as questões mentais e psicológicas que
confrontamos diariamente. Escrevo como a criança que descobriu que seu avô foi
rotulado de “louco” e mandado para um manicômio. Poderá ser uma jovem mãe que
descobre que a criança que gerou e ama de coração tem uma doença mental que faz
com que ela se perca. Um casal de meia idade que têm de lidar com a senilidade
dos pais. Uma avó dos “anos dourados” a enfrentar a realidade da sua própria
carência quando se esquece mais vezes do que se lembra das coisas, e que se lembra
bem de “muito tempo atrás” — mas que deixa o feijão queimar e o chuveiro ligado
até acabar a água, e que confunde os aniversários dos netos. Escrevo para
amigos que tem medo de “perder o juízo”. Muitos há que querem agarrar com garra cada detalhe do passado para
que não suma, ao mesmo tempo que desejam esquecer as coisas que doem no fundo
mais profundo do coração e que ainda hoje os fazem sentir como “a criança sem
mãe” do Negro spiritual.
As deficiências mentais e
emocionais nos lembram que ninguém é realmente
normal. A deficiência demanda paciência, tempo, confiança, submissão e
esperança – qualidades que a maioria de nós todos, normais, leve ou severamente
deficientes, temos muita falta em nosso mundo pós moderno. Há necessidade de
“consciência de que na vida, em algum tempo e em algum nível, passaremos por
sofrimento físico e/ou psíquico”.[2] Michael Beates faz alguns duros questionamentos:
Por que nós ... exigimos que todo mundo seja normal e
pareça igual? Por que ... nos esforçamos tanto para esconder as pessoas com
deficiências de nossa vista de todo dia? Por que algumas pessoas alquebradas
visível e invisivelmente muitas vezes sentem que têm de esconder seu problema a
fim de se juntar ao povo de Deus para o culto? Finalmente, e talvez mais
importante, que respostas as boas novas do evangelho nos dão para estas
perguntas, e como o evangelho nos dá esperança nessas situações.[3]
Uma amiga querida que luta com a bipolaridade e
personalidade desintegrada; tem ilusões de que, se parar de tomar os remédios “pela
fé”, o Senhor irá curá-la mediante ministrações
televisivas de algum falso evangelista.
Outra pessoa amada fica trancada em seu quarto com seus sonhos, enquanto espera
que seja curada por um novo relacionamento, um novo amor – então, ela enterra
os medicamentos e tenta experimentar novos amores.
Deficiências dessa natureza não são estranhas à Bíblia.
O rei Saul foi atormentado por surtos de loucura para as quais Davi era chamado
para cantar, tocar a harpa e consolar o rei – Primeiro caso de terapia musical que temos documentado (1Sm
14.14-23). Mais tarde, Davi buscou refúgio com o rei de Gate e fingiu-se de
louco para salvar a própria vida (1Sm 21.10-15). Jó ficou totalmente
desprovido, em desalentado e desespero, e sua mulher deu-lhe conselho de louca
(Jó 2.8-10). A razão e o entendimento foram tirados da mente e do comportamento
de um rei da Babilônia, Nabucodonozor, que se comportou como animal irracional
(Dn4). Mais tarde, tanto a razão quanto o governo lhe foram restaurados.
A Bíblia percorre gama imensa de descrições, desde
“símplices” (13) estultícia (9) louco ou loucura (24), estúpido ou estupidez (5)
insensatez (54), falto de razão (3). O livro de Provérbios está prenhe de
contrastes entre sabedoria e loucura, bom senso e insensatez, exemplificando
diversos tipos de “problemas” espirituais, mentais, e emocionais que todos nós
já vimos, quando não os experimentamos pessoalmente.
Na
preparação para entrar na terra prometida, Moisés apresentou a seu povo a
plenitude de bênçãos ou destituição das maldições conquanto eles obedecessem ou
desobedecessem a Palavra de Deus. Fiquei intrigada por uma das maldições
mencionadas: “O Senhor te ferirá com loucura, com cegueira e com perturbação de
espírito ... e te enlouquecerás pelo que vires com teus olhos” Dt
28.28, 34). Uns 2000 anos depois disso, Paulo adverte a Timóteo sobre a maldade
dos “últimos dias”, que, uns 2000 anos depois, parece em cada detalhe descrever
os nossos dias:
...os homens serão
egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos
pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem
domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais
amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhe,
entretanto, o poder ... sua insensatez será a todos evidente (2Tm 3.2-9).
A lista acima descreve tais comportamentos não como
loucura, mas como pecados. Na cruz, Jesus orou: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem” (Lc 21.34).
Há uma deficiência devida a ignorância, a qual é livremente perdoada. Mas ao
olharmos o Evangelho, vemos que o Espírito estava sobre Jesus para curar e
libertar. Beates diz:
...até o fim, continuamos a ver (embora às vezes
sutilmente) um importante fio no tecido do nosso entendimento da fragilidade
(espiritual e emocional) das pessoas no evangelho, e uma fraqueza (física
representando nosso estado espiritual) como condição humana normativa.
Reconhecer esta realidade é o primeiro passo para abraçar o poder vivificador
do evangelho.[4]
Há em nossa família um menino
muito especial que luta com deficiências de aprendizado, desafios mentais e
neurológicos, e de certa forma sempre precisará de ajuda, médica e psicológica,
para um bom funcionamento. Mas ele ama a Jesus e foi ensinado na sua Palavra.
Quando era ainda bem novinho estava numa escola onde negavam a Trindade, e ele
disse a seu pai, referindo-se à professora:
—Pai, diga a ela que Deus é
três em um: Pai ,
Filho e Espírito Santo. Fala para ela como diz na Bíblia!
Mais recentemente, ele tem dependido do Senhor para fortalecê-lo
nas áreas em que é fraco, e ora pedindo que “Deus me use com minhas deficiências para ajudar outras crianças como eu
a conhecer a Jesus”. Temos tanto orgulho deste jovem quanto dos outros
netos. Todos – normais, superdotados ou deficientes.
O Evangelho é que nos dá esperança – inteiros ou “especiais”
– de inúmeras maneiras. Paulo o diz com humildade e triunfo:
Visto que não
foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos
de nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para
envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as
fortes....as coisas humildes do mundo e as desprezadas, e aquelas que não são,
para reduzir a nada as que são, a fim de que ninguém se vanglorie na presença
de Deus. Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou da parte de
Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção, para que, como está
escrito: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor (1 Coríntios 1.26-31).
Elizabeth Gomes