A cantiga ia
assim: “Marcha soldado, cabeça de papel...” Tem crente, agora, cantando assim:
“Marcha cristão, cabeça de papel; quem não for à parada também não vai pro
céu”. Parece coisa de criança – e é! Em um contexto que parece diferente, mas
que de fato tem tudo a ver com a política dos homens e a política Deus, Paulo
disse: “Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava
como menino; quando cheguei a ser homem, desisti das coisas próprias de menino”
(1Co 13.11). Tem tudo a ver, digo, porque os crentes corintianos estavam
travando disputas políticas segundo a visão dos homens. Os temas da
correspondência de Paulo batem nos mais diversos pontos: sabedoria vs. poder, pecado e punição vs. disciplina bíblica (isto é, ensino,
correção, repreensão e reeducação – ou corte), marido vs. esposa, sexo no casamento vs.
satisfação carnal, cerimônia de comunhão com Cristo vs. sociabilidade degenerada, e princípios de fé, verdade e amor vs. jogos de palavras.
O evangelicalismo
de agora (diferente da teologia reformada) confunde muito fé e obras,
justificação e santificação com reivindicação de justiça humana por meio de
virtudes e leis humanas, e missão de Deus com missão da igreja. Isso ocorre em
quase todos os termos da experiência cristã, da esfera da política
governamental à esfera da política eclesiástica. Só como exemplo, quando menino
ouvi que eu não podia dançar porque era protestante. Depois, aprendi que os
missionários vindos do leste norte-americano tinham a dança como pecado, ao
passo que, os do oeste, não podendo ceder à menção bíblica à dança correta como
expressão da alegria do Senhor, fizeram um conchavo político e “inventaram” as
brincadeiras de mocidade. Para dentro e
para fora, É ladrão, sim, é ladrão,
e a portuguesa Comadre, ó minha comadre,
aí eu gosto da sua pequena (os mais jovens que me perdoem o anacronismo),
tudo isso era dança de quadrilha.
De carona na
dança, lendo e ouvindo falar do “dois pra lá, dois pra cá” do bolero político
da esquerda e direita, um cristão honesto poderá se sentir como velho no meio
do salão tentando mimicar coisa moderna. E olha que a figura não sugere centro,
não, exceto que, com os braços descontrolados e os quadris torcidos desmentindo
o acerto do movimento deixa-o como que desnudo no meio do salão.
Sem jeito, meio
perdidos nos salões políticos do século, muitos cristãos se apaixonam, uns
pelos destros, outros pelos canhotos, e seguem na contramão das paradas
populares. Isso é relevante, especialmente hoje com a “descoberta” da
manifestação popular, uma vez que, quer queira quer não, o crente não é um
circunstante neutro na arena política. Como sal da terra e luz do mundo, ele
precisa ter uma cosmovisão bíblica e uma palavra profética.
Primeiro a gente
tem de entender a origem dos termos. Na Revolução Francesa, 1789, a Assembleia Nacional
se dividiu entre apoiadores do rei à direita e os da revolução à esquerda.
Hoje, popularizados, os termos pretendem descrever a esquerda como sendo
formada de pessoas favoráveis ao “movimento” e, a direita, os defensores da
“ordem”. Grosso modo, a direita seria composta de conservadores, meritocratas,
capitalistas. A esquerda seria de progressistas, liberais, comunistas etc., e o
centro, de moderados (sambando ora com a direita ora com a esquerda). É
dislexia política mesmo! Sabe? É como o moço, no banco de trás do carro, dando
direções ao motorista: “Vira pra lá”. “Pra lá onde?” “Direita” (ou esquerda);
quando o carro ameaça a um dos lados, ele corrige: “A outra direita” (ou esquerda),
e o motorista irritado, “Vê se fica centrado, meu!” Já viu isso? Esquerda ou
direita de onde? Centro de quê?
É o seguinte: (1)
o cristão crê que todas as coisas tem seu ponto de referência em Deus (teo-referência,
segundo Davi Charles Gomes) de quem deriva toda autoridade; (2) em todas as
coisas o cristão deve ser, pensar e agir de modo cristocêntrico, pois o Senhor
está sempre presente em todos os afazeres dos homens; e (3) o cristão deve
viver sob o controle do Espírito que aplica a Bíblia ao coração para testemunho
da glória de Deus ao mundo. O princípio bíblico da oposição (luz é luz e treva
é treva ou mal é mal e bem é bem) foi abandonado por nossos primeiros pais em
função da síntese do pecado (mal com bem dá “bal” ou “mem”), e trouxe à baila o
princípio da maldição, uma política de luta de poder: “o teu desejo será para o
teu marido, e ele te governará” (Gn 3.16). Nesse sentido, políticas de direita,
esquerda e centro referem-se a posições opostas à referência em Deus, à
centralidade de Cristo e à direção do Espírito na Palavra. Veja o texto
bíblico:
Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam
coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o
Senhor e contra o seu Ungido, dizendo: Rompamos os seus laços e sacudamos de
nós as suas algemas. Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles. Na
sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá. Eu, porém,
constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião. Proclamarei o decreto do
Senhor: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei. Pede-me, e eu te
darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. Com
vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro. Agora, pois,
ó reis, sede prudentes; deixai-vos advertir, juízes da terra. Servi ao Senhor
com temor e alegrai-vos nele com tremor. Beijai o Filho para que se não irrite,
e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira.
Bem-aventurados todos os que nele se refugiam (Salmos 2.1-12).
Segundo, a gente
tem de entender o nosso momento. O mundo que viu a guerra fria vê agora uma
coisa que não é fria nem quente. Certo que tanto a “direita” quanto a
“esquerda”, sendo políticas humanistas, sempre colocaram o capital e o social
como porta-estandartes, mudando somente o samba enredo. O que deu foi um Samba do crioulo doido: “Foi em
Diamantina, / Onde nasceu JK, / Que a princesa Leopoldina / Arresolveu se casá
/ Mas Chica da Silva / Tinha outros pretendentes / E obrigou a princesa / A se
casá com Tiradentes” – e termina: “O trem tá atrasado ou já passou” (Sergio
Porto; Demônios da Garoa). Hoje, por força da incongruência do método dialético
hegeliano – sempre há uma situação, a tese, que sofre a ação de forças opostas,
a antítese, que gera uma condição melhor que a anterior, a síntese – imposta à
quase totalidade do pensamento moderno, a direita capitalista incorporou
doutrinas socialistas e o socialismo foi levado a se utilizar do capitalismo.
Não tinha outro jeito. No entanto, não se engane, pois, como dizem patriotas ou
companheiros, a luta continua, e o povo na estação nem se dá conta dos trens
que prosseguem em trilhos e direções diferentes: “Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o
caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6) e “Ele
vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais
andastes outrora, segundo o curso deste mundo” (Ef 2.1-2).
Terceiro, a gente
tem de entender que o sistema da fé cristã tem perspectivas claras de justiça,
política, relações individuais e sociais, economia, transformação e daí em
diante – e esse sistema, sendo uma cosmovisão após a visão de Deus, isto é, de
uma consciência divinamente despertada e iluminada, jamais é de esquerda,
direita ou centro, mas vem do alto. O conceito geral dessa política do alto,
com certeza, continuará deixando o cristão em uma posição desconfortável. Ele é
nascido de novo pela ação transformadora do Espírito e sua vida é uma de
transformação. Na verdade, se ele se conformar com este mundo, não provará a
boa, perfeita e agradável vontade de Deus nem verá a si mesmo e à sociedade tal
como Deus quer que ele veja (ver Rm 12.1-4ss). Entretanto, essa inconformidade
não poderá ser manifestada como revolução, “Porque a rebelião é como o pecado
de feitiçaria, e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar” (1Sm
15.23). Em outras palavras, a revolução é uma tentativa “mágica” para mudar o
mundo por meio de abandonar a confiança no controle, presença e autoridade de
Deus, adorando e servindo a poderes humanos para obter transformação. Como,
então, viver a justiça de Deus em um mundo decaído? Como viver em um mundo do
qual fomos chamados e ao qual fomos enviados para proclamar a redenção por meio
da proclamação verbal e do testemunho da vida? Como ser sal da terra e luz do
mundo? O próprio Senhor instrui quanto à prioridade do caráter cristão como
base para a ação política no mundo, em Mateus 5.1-18: “Vendo Jesus as
multidões, subiu ao monte, e, como se assentasse, aproximaram-se os seus
discípulos; e ele passou a ensiná-los, dizendo”:
1. V. 3: Bem-aventurados os humildes [pobres] de espírito, porque deles é o reino dos céus.
(Os princípios da política do reino de Deus somente são vistos e seguidos
quando vêm de Deus e são recebidos na Palavra como vindos do alto e não
procedentes da “sabedoria humana”.)
2. V. 4: Bem-aventurados os que choram, porque serão
consolados. (O cristão é sensível às necessidades humanas e espera somente
em Deus para satisfação de seus desejos e necessidades.)
3. V. 5: Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a
terra. (Mansidão não significa fraqueza, mas a força de caráter que espera
no poder de Deus para viver o reino de Deus na terra. Implica em viver o
cumprimento dos próprios deveres e lutar pelos direitos do próximo.)
4. V. 6: Bem-aventurados os que têm fome e sede de
justiça, porque serão fartos. (Revoltas não satisfazem a alma, pois a ira é
como um saco sem fundo que sempre quer mais; no entanto, o cristão anseia todo
o bem que há em Cristo como bênção também para a vida que é agora; ver Fm 1.6.)
5. V. 7: Bem-aventurados os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia. (Toda ação cristã deve de ser motivada pelo
coração de Deus, e não pela revolta humana, a fim de produzir resultados
segundo o coração de Deus.)
6. V. 8: Bem-aventurados os limpos de coração, porque
verão a Deus. (A única maneira de conseguir a transformação necessária para
viver e pregar a justiça e o direito de Deus é por meio da confissão feita em
fé diante de Deus mediante a obra de Cristo que nos purifica e habilita para
cumprir a missão de Deus entre os homens.)
7. V. 9: Bem-aventurados os pacificadores, porque
serão chamados filhos de Deus. (O mundo só nos verá como filhos de Deus se
nossa vida e palavra forem de paz e não de guerra.)
8. V.10-12: Bem-aventurados sois quando, por minha
causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra
vós. Bem-aventurados os perseguidos
por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus;
pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós. (A disposição
do cristão não é uma de ser aceito pelo mundo quando luta em seu favor, mas de
aceitar a posição de Cristo, de ser alvo de contradição – ver Lc 2.34 – certo
de que a recompensa está no céu.)
9. Vv. 13-16: Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier
a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para,
lançado fora, ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode
esconder a cidade edificada sobre um monte; nem se acende uma candeia para
colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os que se
encontram na casa. Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que
vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus. (A
meta do cristão é refletir a glória de Deus em seu caráter, como sal da terra e
luz do mundo; não é uma ação opcional, mas sim fruto do Espírito que abençoa o
lugar em que sua árvore está plantada; ver Sl 1.)
10. V. 17,18: Não penseis que vim revogar a Lei ou os
Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo:
até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até
que tudo se cumpra. (Assim como o Senhor Jesus Cristo cumpriu plenamente a
lei em nosso lugar e em nosso favor, assim também o cristão, habilitado pelo
Espírito, obedece graciosamente a Palavra de Deus para que sua vida e suas
palavras sejam vistas e ouvidas como testemunhos de uma verdade que não passa.
Os movimentos humanistas de direita, esquerda e centro podem passar, mas o
ponto de referência em Deus, a centralidade de Cristo e o selo do Espírito
Santo no homem interior e em suas relações com o próximo e o mundo, estes
sempre terão valor eterno.
Wadislau Martins Gomes