Contavam meus
pais que quando eu era ainda analfabeta (portanto, menor que quatro anos) fui evangelizar uma vizinha, uma senhora velha (mais de quarenta anos de idade!),
carola, que não gostava de protestantes ou americanos, mas tinha carinho pelas
crianças e me recebeu bem. Eu cantei um ou dois hinos, recitei João 3.16 e Atos
16.31, e fiz um “sermão” como ouvira muitos do meu pai na igreja e minha mãe
com a criançada que vinha ouvir histórias do “livrinho sem palavras”. Eu
“preguei” com muitas palavras bonitas e instava com a senhora para aceitar a
Jesus para poder ir ao céu. a insistia que sempre aceitara Jesus, pois nasceu
na sua Santa Igreja e jamais a abandonaria, mas ninguém podia ter certeza de ir
ao céu—só os santos que rezam por nós. Perguntei-lhe se ela gostaria jque eu
orasse; orei por ela, dei-lhe um beijo e um abraço e peguei a guloseima que ela
tinha me dado e fui contente, correndo para casa. Não sei se essa senhora mudou
de idéia quanto a Cristo, mas daquele dia em diante eu seria uma missionariazinha, como dizia o hino da APEC, e falaria de Cristo ao companheirinho.
Como a gente
grande que eu conhecia, eu considerava a obra de evangelização como parte
integral de ser cristã, mas via-a como um ato de “nós” contra “eles”, de “eu
sei a verdade da Bíblia e você não sabe de nada”—ainda que eu fosse uma criança
disposta, mas um tanto mal-educada, eu praticava o evangelismo de alcançar mais
almas com o arco e flecha do roteiro que havia decorado da Bíblia. Cresci um
pouco e, apesar de altos e baixos, fui “melhorando” meu desempenho cristão
(como dizia o corinho, Sempre melhorando,
melhorando sempre no Senhor!). Aos doze anos, sob forte convicção do
Espírito Santo, vi que eu não era nada e que precisava de Cristo para tudo, e
me entreguei ao convite de me consagrar inteiramente
ao trabalho missionário.
Romantizava a
vida evangelizadora. Lia muitas biografias—não só as juvenis sobre Livingstone
ou a enfermeira Florence Nightingale, como também os livros “adultos” que minha
mãe lia sobre Hudson Taylor, D. L. Moody, Amy Carmichael, Isobel Kuhn,
Elisabeth Eliot. Para algumas amigas eu era “chata”, mas outras abraçavam meu
interesse e formamos até um “Clube em favor dos israelitas refugiados”, quando
comecei a me interessar por evangelismo do povo de Deus, após uma missão fazer
apelo em favor dos judeus do Iêmen que procuravam voltar a Israel.
Na igreja que
passei a fazer parte, comecei aos doze anos a ensinar uma classe de meninas de
oito e nove anos, na escola dominical. O evangelho de João—o mais simples e
mais complexo dos evangelhos—era tema de nosso estudo. Eu estudava a Palavra,
incentivando as meninas a estudar e memorizar também.
Já em Porto
Alegre no ensino médio, tive como mentora Thelma Bagby, diretora do Colégio
Batista, que me estimulou a participar de reuniões de oração, clube bíblico
(nessa época também comecei a frequentar o acampamento Palavra da Vida nas
férias), cantar e dar testemunho nas assembléias, e falar de Cristo a outros
jovens. Dois incidentes se destacam nessa fase.
Um, eu tinha uma
amiga israelita (aliás, tinha muitas amigas descrentes de religiões diversas, e
orava para conseguir convertê-las todas) com a qual passei uma noite inteira
falando de Cristo, começando do Antigo Testamento e percorrendo o Novo, até
participar de inesquecível diálogo:
--Depois de tudo isso que expliquei,
você não entende que Jesus é Yeshua o Messias? Você não quer aceitá-lo como seu
Salvador?
A que ela respondeu:
-- Está certo, Beth. Acredito que
Jesus seja o Messias. Mas nunca vou “aceitá-lo”, como você diz, porque o
cristianismo tem perseguido meu povo por
muitos séculos, e minha família jamais poderia aceitar que eu renegasse tudo
que sou para seguir uma religião antisemita. Não vamos falar mais do assunto.
Segundo
incidente: eu amava minha escola e era destacada entre os colegas do Colégio
Batista da minha faixa etária. Havia uma moça na minha classe--para mim era
velha, pois já casada e mãe de dois filhos—que voltara a estudar com muito
esforço. Eu admirava seu esforço mas não tinha amizade com ela. Um dia, soube
que ela estava doente—daí faltav tanto o colégio—e mais tarde, ouvi dizer que
ela morrera de câncer. Fiquei abaladíssima, não por ela, nem por seus filhos
órfãos, mas porque nunca tinha lhe falado de Cristo, e com certeza ela morreu e
não foi ao céu. A letra do hino “Não me falaram de Cristo” repercutia em minha
mente e eu lembrava do profeta a que Deus ordenou pregar “Quer ouçam, quer
deixem de ouvir”, e de quem requerirá o sangue se não lhes der a mensagem. Veterotetamentariamente, eu era
legalmente responsável pela salvação dos que conhecia, e deveria conhecer mais
gente para obter mais estrelas na minha coroa de galardões de testemunha.
Essa idéia de
obras mesclada à obra de Cristo foi repetida muitas vezes e de muitas formas no
decorrer de minha vida na igreja. Lembro-me de uma irmã contando sobre outra
pessoa que atrapalhou determinado trabalho cristão, que lastimou: “Quantas
pessoas poderiam ter sido salvas e não o foram porque o mau testemunho dele
impediu a ação de Deus”!
Por mais bem
intencionado fosse meu espírito evangelístico, essa “teologia de olho de boi”
em que o alvo era evangelizar, custe o que custar, com ou sem conhecimento da
Palavra de Deus, revelava de cara duas falácias: falta de fé na soberania de
Deus, de quem vem tanto o querer quanto o realizar, e desconhecimento de que é
o Espírito Santo que convence do pecado, da justiça e do juízo—nossos esforços
nada acrescentam ao Reino de Deus, ainda que devamos buscar o reino e a justiça
de Deus.
Quando estudava
na Palavra da Vida, inicialmente pensava, como Lau naquela época, em missões
indígenas. Um campo obscuro, o mais difícil possível, seria o cantinho onde
Deus nos usaria para trazer centenas de ameríndios para Cristo. A medida que fomos
conhecendo outras formas de evangelismo, fomos nos interessando por estas, e ao
sair do IBPV para o campo missionário, o fizemos com a meta de evangelizar os
israelitas (cumprindo um desejo de desde a mais tenra juventude). Fomos a BH
com a cara e a coragem, o aval de algumas igrejas mantenedoras, muitos estudos
superficiais de como evangelizar judeus, muito entusiasmo e muita falta de
discernimento.
À medida que
estudávamos mais a Palavra, crescia uma visão reformada de evangelismo e
missões como parte integrante, não dividida em departamentos estanques, do
propósito de Deus para a igreja toda. Aprendemos que a ordem de Jesus era
“Indo por todo o mundo, fazei discípulos
de todas as nações, batizando-os no nome do Pai, e do Filho, e do Espírito
Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vs tenho ordenado. E eis que
estou convosco todos os dias até a consumação do século.”
Não é só ir, é
ao ir, onde quer que formos, fazer discípulos de todas as nações. É inseri-los
na igreja da qual somos parte—não levá-los à igreja, mas ser igreja,
(batizando-os) em nome do Pai, Filho e Espírito Santo—a obra é de toda a
Trindade, é ensinar a guardar todo o conselho de Deus (tudo que vos tenho
ordenado) e a promessa é: “Eis que estou convosco até a consumação do século”.
Não´se trata de contar quantas almas ganhamos para Cristo—é apresentar à pessoa
toda, mente e coração, a verdade libertadora. Essa obra do Deus Trino salva a cada um e todos quantos foram
chamados--não somente do inferno, mas dos grilhões do passado, de nossa vida
presente, e de um futuro em que conheceremos como também somos conhecidos. O
livro Sal da Terra em Terras dos Brasis[1]
explica essa visão de evangelismo e missões aplicado dentro da cultura
brasileira de uma forma clara e bela, mostrando que a multiforme sabedoria de
Deus é muito mais do que passagem para um céu de anjinhos—é conhecer Cristo que
nos redime, em quem estão todos os tesouros. Conhecer Cristo e o poder da
ressurreição, bem como a comunhão nos seus sofrimentos, é ensino prático de
toda a vida para uma vida eterna aqui, agora e para sempre. Isso muda nosso
enfoque de evangelismo e missões—expande e enriquece todos os aspectos da vida,
e não se limita a chavões que tenhamos decorado, nem a quatro passos ou três
perguntas que tenhamos aprendido. É uma escolha, sim, mas não nossa—Ele nos
escolheu e nos deu vida, estando nós mortos em nossos delitos. Porque ele nos
chamou, nós podemos atender o seu chamado.
Hoje não tenho
mais a profissão nem a pretensão de ser missionária. Participo de uma igreja
que entende e vive a missão de Deus. Cada dia que passa, estou aprendendo do
Senhor Jesus, e acabo compartilhando o que aprendo, até mesmo dos meus erros e
minhas falhas, a filhos e netos, amigas e conhecidas, fazendo amizade mesmo com
desconhecidos, que passam a fazer parte da mesma família da fé. “O que ganha
almas é sabio”, porém, meu alvo não é ganhar almas -- é glorificar a Deus em
tudo, e nele ter meu prazer. Ele já me “ganhou” da cabeça aos pés, de dentro
para fora e de fora para dentro, com seu imensurável amor!
Elizabeth Gomes